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O retorno dos trabalhos do Senado em 2024 promete o revolvimento da PEC nº 77/2019, [1] que, dentre outros tópicos, propõe-se a diversificar a designação de vagas nos tribunais superiores.
No que diz respeito ao STF, centro de debate político da proposta, três seriam escolhidos pelo Senado, três pela Câmara dos Deputados e cinco pelo presidente da República.
A par da legitimidade para transformações, a justificativa do projeto se apoia em comparações frágeis na esfera internacional, visto que refletem cenários jurídicos de todo distintos quando não conflitantes com a realidade constitucional brasileira.
O texto de justificativa para tornar plural a designação de vagas aduz que a tarefa solitária do presidente da República “não se coaduna com a separação de poderes, aproxima-se mais de um sistema imperial”.
Curioso observar, no entanto, que a nomeação nesses moldes surgiu justamente nos Estados Unidos, a democracia mais longeva do mundo, sob a perspectiva da separação de poderes. No “Federalist Paper” nº 71, Alexander Hamilton defendia que o poder de nomeação do presidente da República seria contrabalanceado pela rejeição senatorial, no afã de garantir que o Poder Executivo sempre levasse em consideração a opinião da Câmara Alta, enquanto salvaguarda de nepotismos ou ataques à impessoalidade.
Ao contrário do que se passa nos EUA, em que o Senado rejeita com frequência os indicados, essa efeméride não floresceu no Brasil.
Das 167 designações, apenas uma foi rejeitada, de tal forma que a PEC nº 77/2019 pretende aboli-la e adotar a solução conciliadora de que os ministros não passem mais pelo crivo de ninguém, tão logo sejam designados.
A afronta à separação de poderes é evidente e de todo infirma de inconstitucionalidade a nova redação que pretende revogar o atual parágrafo único do artigo 101 da CF/88.
Deveras, a ordem democrática pressupõe a discordância de vontades e vigilância entre Poderes, pois, se “a redistribuição se faz no sentido de tudo, ou quase tudo, se dar ao Poder Executivo, ou a um corpo, que não é responsável, tem-se a ditadura”, segundo Pontes de Miranda. [2]
Nesse obstáculo incorre a PEC nº 77/2019 ao excluir qualquer designação ao STF da apreciação de um segundo Poder da República. Note-se que não há inconstitucionalidade em diversificar de onde são oriundos os nomes, mas tão somente na exclusão de segunda apreciação.
Em verdade, somente seria justificável a revogação em comento caso adotada a concepção napoleônica de separação de poderes, que não admitia a ação recíproca de Poderes[3] — esta sim, de feição imperial.
O Estado democrático de direito, porém, exige que o princípio se manifeste enquanto determinação coletiva da democracia e proteção da liberdade individual, que somente pode ser realizada quando existe escrutínio das decisões fundamentais da República, de modo que não basta a separação de tarefas, órgãos e funções. [4]
Disto decorre que o significado e o propósito (“Sinn und Zweck”) da separação de poderes somente podem ser concretizados se, simultaneamente, intensifiquem-se três pontos, na vertente de Ulrich Battis e Andrea Edenharter: legitimem a autoridade estatal por procedimentos jurídicos; racionalizem a ação do Estado meio da alocação de competências funcionais adequadas; e controlem-no por meio da interação entre vários órgãos.[5]
Ora, não há dúvidas de que retirar a designação para o STF daapreciação de uma segunda potência em nada justifica a ação do Estado, mas antes a fragmenta por falta de controle, o que torna a revogação do parágrafo exclusivo do artigo 101 da CF/88 inconstitucional, por violação clara ao artigo 60, § 4º, da CF.
Legislativo sobre o Executivo
Ressalte-se que é viável modificar quem e em que medida será responsável pela designação dos ministros do STF. Em nada o constituinte deixou a escolha estanque, mas apenas presumiu, por nossa consolidada afeição ao direito constitucional americano em questão de designações, que o processo deveria ocorrer à maneira hamiltoniana. Alterá-lo, entretanto, não pode ser feito sem contrapartida.
Visto que o constituinte originário previu a fiscalização do Legislativo sobre o Executivo nas designações ao STF, é óbvio que não se pode emendar a constituição com norma que suprima a fiscalização rigorosa da separação de poderes original.
No âmbito das cláusulas pétreas, nenhuma erosão constitucional é permitida, motivo pelo qual não servem à proteção de dispositivos, mas de princípios neles delineados, o que pressupõe o aprimoramento das instituições. [6]
Da mesma forma, não se visam a perpetuar ad aeternum os institutos constitucionais existentes, mas impõem condicionamento das mudanças a preservação, além de seus demais escopos, do núcleo essencial da separação dos poderes, [7] que, com certeza, estaria resguardado em menor potência sem a revisão das designações ao STF por outro Poder.
Não somente. A justificativa da PEC nº 77/2019 falha, também, no campo conceitual por comparar situações de difícil contraste sem maior ponderação. Conforme suas linhas, seria lógico justificar a transformação elencada para “nos aproximar de modelos já existentes no mundo“ e cita como modelos os ordenamentos francês, italiano e alemão.
Antes de avançarmos nesse debate, é crucial esclarecer que não nos filiamos à tradicional perspectiva do direito comparado que sugere observar unicamente os cânones do norte global enquanto detentores de virtude para fortalecer instituições, como sugerem K. Zweigert e H. Kötz, no clássico “An Introduction to Compartive Law”. [8]
De fato, torna-se cada vez mais necessário que olhemos para distintos ordenamentos jurídicos que tenham não necessariamente raiz comum com o nosso, mas que lidem com problemas semelhantes, em especial os do sul global, com o objetivo de identificar caminhos possíveis para aprimorar as instituições que enfrentam problemas de legitimidade e efetividade diante das desigualdades sociais e crises políticas convergentes. [9]
Seria benéfico, portanto, que as PECs fossem para além das lentes europeia e americana para averiguar se há uma trilha institucional possível que possa ser visualizada pelo prisma brasileiro.
Modelos de França e Itália
Entretanto esses parênteses, devemos salientar que as designações ao “Conseil Constitutionnel” não guardam precision como modelo a ser seguido pelo Brasil pela mera transposição de que sua composição tem “nove membros não vitalícios, dos quais três são indicados pelo presidente da República, três pelo presidente da Assembleia Nacional e três pelo presidente do Senado”, como consta no texto da PEC nº 77/2019.
Isso se deve ao fato de que ignora que nesse sistema os ex-presidentes da República podem escolher se sentar no Conselho. Mesmo que essa premissa raramente tenha sido utilizada na tradição francesa, evidencia que não estamos nos aproximando de qualquer protótipo. [10]
Além disso, oculta-se que desde a Lei Constitucional de 23 de julho de 2008,o Parlamento da França pode rejeitar os nomes indicados pelo presidente da República ao Conselho Constitucional. Tudo para enfatizar que a revogação do parágrafo único do artigo 101 da CF/88 nos afasta da saúde da separação de poderes.
Diante do modelo italiano, a justificativa da PEC nº 77/2019 estabelece que para a “Corte di Cassazione”, os membros dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo podem escolher, cada qual, cinco membros.
Ocorre, entretanto, que, tal como o padrão francês, não se pensam os métodos de eleição para o Supremo Tribunal sob a perspectiva federalista, de extrema importância ao Brasil. Significa afirmar que não se pode esquecer que o STF é órgão que não pode se eximir de suas funções federativas, uma vez que foi criado para solucionar, também, impasses dessa ordem. [11]
Não por outra razão, o parágrafo único do artigo 101 da CF/88 traz a revisão senatorial de todas as nomeações presidenciais ao STF, como forma de resgatar sua função federativa, discussão que, por óbvio, está ausente nos elencados modelos unitários.
E nem se diga que o projeto possa ter considerado esse aspecto ao afirmar que na Alemanha os membros do Tribunal Constitucional Federal são eleitos por ambas as Casas Parlamentares: “Bundestag, equivalente à Câmara dos Deputados, e Bundesrat, equivalente ao Senado“.
O “Bundestag” é composto por representantes submetidos à autoridade dos governos estaduais, com mandato imperativo, cuja bancada somente confere votos por unanimidade, i.e., por “Land”. [12]
Além disso, não é gerado por duração preestabelecida, visto que se compõe de sessões regulares, nas quais a composição de seus membros se altera a cada eleição estadual que não ocorre em caráter síncrono no território alemão.
O transparente, ainda que breve, confronto com a realidade nacional permite perceber que a comparação dos métodos de indicação requer muito mais rigor do que a justificativa da PEC nº 77/2019 parece querer transmitir em termos simples.
Nesse diapasão, crucial que as discussões futuras sobre a PEC nº 77/2019 em tema de nomeações ao STF tenham em mente dois aspectos centrais, muito além da batalha se suas alterações são benéficas ou não ao Brasil: a uma, que redunda em flagrante inconstitucionalidade a revogação do parágrafo único do artigo 101 da CF/88 nos moldes propostos, sem qualquer contrapartida que dê vazão à fiscalização inerente à separação de poderes encastelada no artigo 60, § 4º, da CF; e, a duas, que não se mostram suficientes as comparações com modelos escolhidos sem parâmetro e densificação capazes de elucidar as cidadãos por qual razão a transição se mostra benéfica ao país.
[1] Cf. JULIÃO, Fabrício. Marcelo Castro vai apresentar PECs para acabar com reeleição. Poder 360. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/congresso/marcelo-castro-vai-apresentar-pecs-para-acabar-com-a-reeleicao/>. Acesso em 26 fev. 2024.
[2] Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Independência e Harmonia dos Poderes. Revista de Direito Público, v. 20, p. 9-24, abr./jun. 1972, p. 11-12.
[3] Cf. PINTO, Bilac. Separação de poderes, delegação legislativa e exercício de funções jurisdicionais por órgãos da administração (Parecer). Revista de Direito Administrativo, v. 6, p. 243-274, out. 1946, p. 246.
[4] Ver MÖLLERS, Christoph. Doutrina da Organização de Poderes na Constituição Fundamental de Bonn. Teoria e Realidade Constitucional, n. 23, p. 71-115, 2009, 111-114.
[5] Ver BATTIS, Ulrich; EDENHARTER. Introdução ao Direito Constitucional. 7.ª ed. revis. Berlim: De Gruyter, 2022, p. 218.
[6] Ver MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 14.ª ed. revis. e atual. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 183 e 188.
[7] Ver KLOEPFER, Michael. Manual das Instituições Constitucionais na Lei Fundamental. Berlim: Duncker & Humblot, 2022, p. 65.
[8] Ver ZEIGER, Konrad; KÖTZ, Hein. Uma Introdução ao Direito Comparado. 3.ª ed. Trad. ing. De Tony Weir. 3.ª ed. Oxford: Clarendon, 1998, p. 33-32.
[9] A propósito, conferir DAVIS, Kevin E.; PARGENDLER, Mariana. Heterodoxia jurídica no sul global: desigualdade e direito contratual comparado. Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, v. 1, n. 1, p. 267-298, 2021.
[10] Ver JAN, Pascal. PLUEN, Olivier. Os antigos presidentes da República, membros de direito do Conselho constitucional: um anacronismo bem vivo. Petites affiches, n. 239, p. 27-38, 2016, p. 30. A última vez que um Presidente da República escolheu se sentar no “Conseil Constitutionnel” foi entre 2012 e 2013, na figura de Nicolas Sarkozy. Outro ex-presidente vivo que poderia assumir seria François Hollande, por exemplo, jurou que nunca faria parte.
[11] Ver BARBOSA, Rui. O Supremo Tribunal Federal na Constituição brasileira (1914). In: Pensamento e ação de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 161-165.
[12] Nas palavras de Rainer-Olaf Schultze, “os constituintes não visaram a autonomia dos estados nem a competição entre estados como a melhor solução, mas sim, a influência dos estados” (Ver Tendências da evolução do Federalismo alemão: dez teses, in: HOLFMEISTER, Wilhelm; CARNEIRO, José Mário Brasiliense (Orgs.). Federalismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 15).
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