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Posicionamento
O sistema organizacional estabelecido pela Constituição da República de 1988, no que se refere ao controle externo da administração pública, vinculou à incumbência de fiscalização financeira e orçamentária dos Tribunais de Contas a competência para atribuir punições patrimoniais aos gestores de recursos financeiros, bens e valores públicos, em situações de despesas ilegais ou irregularidades nas contas, conforme estabelecido por lei (artigo 71, VIII, da CRFB/88). Apesar disso, a efetivação desse poder coercitivo logo suscitou controvérsias sobre a autoridade para execução das decisões condenatórias dos Tribunais de Contas, especialmente quando um tribunal estadual impõe uma penalidade a um agente público de outra esfera federativa.
Tribunal de Contas da União
Com o intuito de dirimir os desentendimentos a respeito desse assunto, o plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 1.003.433/RJ, Tema 642 da repercussão geral, em 13 de outubro de 2021, seguindo o voto emitido pelo ministro relator Alexandre de Moraes, estabeleceu uma tese na qual cabe ao município prejudicado a autoridade para a efetivação do crédito proveniente de multa aplicada pelo Tribunal de Contas estadual a um agente público municipal, devido a danos causados ao erário público.
Interpretações ambíguas e o julgamento da ADPF 1.011
A tese fixada pela Suprema Corte, no entanto, não eliminou interpretações ambíguas por parte das instâncias inferiores do Poder Judiciário. A falta de precisão terminológica em relação às diferentes formas de responsabilidade adotadas nos processos de controle externo, bem como a falta de definição da natureza jurídica das penalidades impostas pelos órgãos de controle, abriu espaço para interpretações equivocadas sobre o alcance do entendimento refletido no Tema 642.
Dessa forma, surgiram decisões de tribunais judiciais ampliando a aplicação do precedente a todas as modalidades de penalidades pecuniárias aplicadas por cortes de contas estaduais a agentes públicos municipais, sempre atribuindo ao município a competência para iniciar o processo executivo. Esse foi o caso do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que, em diversas ocasiões, reconheceu a falta de legitimidade do ente estadual para executar, judicialmente, multas simples aplicadas pelo TCE-PE, baseando-se na orientação estabelecida no RE nº 1.003.433/RJ.
Contrário a esse conjunto de decisões, o governador do estado de Pernambuco propôs a ADPF 1.011, cuja análise ocorreu em 1º de julho último, ocasião em que o plenário da Suprema Corte seguiu, por unanimidade, a linha de entendimento do relator, ministro Gilmar Mendes. Em seu voto, o ministro argumentou que a ação de controle abstrato não tinha por objetivo revisitar o entendimento firmado no Tema 642, que se limitou a analisar a controvérsia sob a ótica da decisão recorrida, não pretendendo esclarecer a sua abrangência no que diz respeito às diferentes formas de responsabilidade financeira e às respectivas modalidades de penalidades patrimoniais impostas pelos Tribunais de Contas estaduais.
Spacca
De outra forma, ao analisar o caso específico subjacente ao RE nº 1.003.433/RJ, a Suprema Corte optou por não ampliar a discussão para analisar, de forma abrangente e minuciosa – com exceção do voto proferido pelo próprio ministro Gilmar Mendes naquela ocasião – todas as nuances envolvendo as penalidades patrimoniais advindas do controle externo, agrupando adequadamente e decidindo sobre todas as hipóteses e a respetiva autoridade para execução dependendo do tipo sancionatório.
Inspiração no Direito lusitano
Diante dessa lacuna interpretativa, e fundamentado na base constitucional contida no artigo 71, inciso VIII, da CRFB/88, o voto do relator identificou duas formas de responsabilização financeira, cuja inspiração remonta ao Direito peninsular.português (especialmente os artigos 65 e 66 da Legislação de Organização e Procedimento do Tribunal de Contas de Portugal).
Uma reintegratória, associado à reposição de verbas públicas, objeto de desvio, pagamento indevido ou ausência de cobrança ou liquidação nos termos da legislação, correspondendo à atribuição de dívida. No contexto federal, remete à situação de responsabilidade por dívida preconizada no artigo 19, da Legislação nº 8.443/1992 (Legislação Orgânica do TCU), cuja redação é reproduzida na maioria das legislações subnacionais.
Outra sancionatória, que consiste na aplicação de penalidades pecuniárias em decorrência de determinadas condutas previstas em legislação. Na esfera federal, os comportamentos que sujeitam o transgressor à punição estão descritos nos artigos 57 e 58 da Legislação nº 8.443/1992 e, para todos os entes federativos, as situações veiculadas no artigo 5º da Legislação nº 10.028/2000, que versa sobre as infrações administrativas contra as finanças públicas.
Tipos e natureza das punições
Com base em tal dualidade de regimes, à luz do parâmetro oferecido pela LOTCU, seria possível agrupar as punições patrimoniais de acordo com as seguintes modalidades de responsabilidade financeira: (1) imposição do dever de recomposição do erário (artigo 19 da LOTCU); (2) multa proporcional ao dano causado ao erário, que decorre diretamente – e em razão – do prejuízo infligido ao patrimônio público (artigo 57 da LOTCU) e; (3) multa simples, aplicada em razão da inobservância de normas financeiras, contábeis e orçamentárias (artigo 58, incisos I a III da LOTCU), ou como consequência direta da violação de deveres de colaboração (obrigações acessórias) que os agentes fiscalizados devem guardar em relação ao órgão de controle, a exemplo do dever de atender às diligências expedidas pelo relator do processo no órgão de contas (artigo 58, incisos IV a VII da LOTCU).
Em todos os casos, é importante notar que o artigo 71, §3º, da CRFB/88, confere às decisões condenatórias dos Tribunais de Contas a natureza de título executivo extrajudicial, cuja cobrança dar-se-á perante o Poder Judiciário, mediante a iniciativa do órgão ou entidade legitimada. Aí está o cerne da questão.
Legitimidade para cobrança
Quanto à primeira forma de expressão do regime de responsabilidade financeira, referente à recomposição de verbas públicas (atribuição de dívida), a jurisprudência do Supremo Tribunal se consolidou, ao menos desde o julgamento do RE nº 580.943 AgR/AC, em 2013, no sentido de que a legitimidade para a execução do acórdão condenatório da Corte de Contas recai sobre o ente federativo lesado, que detém, portanto, a titularidade do crédito a ser restituído. Afastou-se, nesta medida, a legitimidade do próprio TC, do Ministério Público junto ao órgão de contas ou mesmo do Ministério Público Estadual, para requerer a cobrança.
No que tange à multa proporcional ao dano causado ao erário, haja vista cuidar-se de penalidade acessória (decorrência direta do dano causado ao erário), deve seguir a mesma sorte da responsabilidade reintegratória, na forma do artigo 98 do Código Civil – princípio da gravitação jurídica – cumprindo a sua execução ao ente prejudicado. Essa, vale dizer, foi a hipótese levada à apreciação no âmbito do RE nº 1.003.433/RJ, objeto do Tema 642 de repercussão geral, atribuindo ao município prejudicado pela prática de atos lesivos ao erário a legitimidade ativa para a execução do crédito fiscal decorrente da multa de até 100% do valor do prejuízo causado, aplicada pelo Tribunal de Contas estadual (no caso, o TCE-RJ).
Por fim, relativamente à cominação de multa simples, aplicada em razão da inobservância de normas sobre gestão fiscal, ou como consequência da violação dos deveres de colaboração com o órgão controlador, trata-se, segundo argumentou o ministro relator, de modalidade autônoma em relação ao dever de recomposição ao erário (e da respectiva multa proporcional), porquanto não detém função retributiva, mas punitiva e de prevenção geral contrafuturas transgressões, além de atuar como instrumento de reafirmação da autoridade das decisões ou diligências determinadas pelos tribunais.
Basta observar, a este respeito, que a dosagem da penalidade simples não depende de qualquer consideração acerca do eventual dano causado ao erário. Em vez disso, o legislador estabelece parâmetros fixos para a determinação do valor da sanção pecuniária, o que adquiriu novas formas com os §2º e 3º da Lindb, acrescentados pela Lei nº 13.655/2018.
Neste caso, destaca-se o interesse direto dos Tribunais de Contas na imposição e cobrança de penalidades patrimoniais destinadas a reafirmar e conferir força normativa à validade e eficácia das normas de Direito Financeiro. Por isso entendeu-se adequado atribuir ao ente político que o Tribunal de Contas – que impõe a sanção simples – integra a legitimidade para cobrança das penalidades derivadas da desobediência às normas de gestão pública. Ao Estado, portanto, caberia acionar a cobrança judicial das sanções pecuniárias impostas aos agentes municipais.
Vale ressaltar que o STJ já estabelecia certa distinção entre os casos de débito e penalidade para efeito de legitimidade para execução de acórdãos das Cortes de Contas, como se depreende do AgRg no REsp nº 1.181.122/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques. No entanto, mesmo nessas situações, a distinção não considerava a autonomia das penalidades simples em relação à penalidade proporcional ao débito, tratando-as sob uma mesma configuração.
Distinção e pacificação
No desfecho proposto pelo ministro Gilmar, na ADPF 1.011, e acolhido à unanimidade pelo Plenário do STF, considerou-se indevida a aplicação do Tema 642 ao caso sob exame no RE nº 1.003.433/RJ. Sem embargo dessa diferenciação (distinguishing) às hipóteses de penalidade simples, em vista do ponto de conexão temático entre as matérias tratadas no RE e na APDF, o relator propôs incorporar à tese fixada no tema 642 o seguinte item: “2. Compete ao Estado-membro a execução de crédito decorrente de penalidade simples, aplicadas por Tribunais de Contas estaduais a agentes públicos municipais, em razão da inobservância das normas de direito financeiro ou, ainda, do descumprimento dos deveres de colaboração impostos, pela legislação, aos agentes fiscalizados”.
Além de parecer inovador somar à tese fixada em processo de índole subjetiva (RE), nada obstante o regime de repercussão geral, a compreensão firmada em outro de caráter objetivo (ADPF), a fim de elucidar o entendimento da corte sobre o assunto, é bem de ver que, finalmente, essa longeva controvérsia tende a encontrar sossego na jurisprudência da Suprema Corte.
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