Depois da manifestação que reuniu uma multidão em apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 25 de fevereiro, a administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) procura fortalecer os vínculos com os evangélicos por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 05/2023. Este projeto tem como objetivo conceder isenção fiscal a igrejas e locais de culto, sinalizando um provável reinício nas interações entre esse segmento e o Governo.
Entretanto, legisladores entrevistados pela Gazeta do Povo levantam dúvidas sobre a efetividade dessa medida, questionando a possibilidade de uma melhoria substancial na relação. Além disso, os evangélicos tendem a manter discordâncias com o governo em questões de valores morais. Uma nova mobilização já está prevista para a próxima semana, pois o STF (Supremo Tribunal Federal) agendou uma nova sessão na qual a posse de maconha poderá ser descriminalizada.
O senador Carlos Viana (Podemos-MG), líder da Frente Parlamentar Evangélica no Senado, é um dos parlamentares que compartilham a opinião de que a imunidade fiscal para igrejas não garantirá o apoio dos evangélicos ao governo Lula. Quando questionado sobre o assunto, ele afirmou que a aprovação da PEC é uma questão já acordada entre o Legislativo e o Executivo.
“Na minha perspectiva, isso não altera em nada a relação entre as Frentes Evangélicas, a comunidade evangélica e o presidente Lula. Não estamos reivindicando nenhum privilégio, é algo que está previsto na lei. As igrejas já possuem uma isenção tributária garantida pela Constituição”, declarou o senador.
Ele acrescentou que a bancada foi pega de surpresa pela decisão do governo Lula de revogar a isenção. “Acreditávamos que esse assunto já estava resolvido durante o governo Bolsonaro. Fomos surpreendidos pela decisão do governo de reabrir o debate, mas estamos aqui prontos para colaborar com transparência, pois buscamos uma solução definitiva para um direito já estabelecido”.
Na visão do senador Magno Malta (PL-ES), a atitude do governo é uma “cilada” para os evangélicos. “O PT é capaz de tudo, inclusive apoiar uma proposta que amplie a isenção tributária das igrejas: qual seria o propósito disso? Eles querem que nós nos posicionemos para que construam a narrativa deles. A cilada está muito mal elaborada. Quem quiser saber se os evangélicos desejam se aproximar do PT, basta observar as imagens do dia 25/02”, destacou o parlamentar.
A declaração do político sobre Israel, ao comparar os ataques israelenses ao grupo terrorista Hamas na Faixa de Gaza ao Holocausto, desencadeou protestos nas ruas e no Congresso Nacional. Discretamente, o governo busca reverter o desgaste junto aos parlamentares e a PEC 05/2023 é vista pelos congressistas como uma forma de estender uma mão amistosa.
Nos bastidores do Salão Verde, os governistas evitam o assunto para não gerar mais conflitos com a bancada evangélica, uma das mais numerosas do Congresso Nacional – atualmente com 228 parlamentares. Apesar dos sinais positivos e de estar pronta para ser levada ao Plenário da Câmara, a proposta não tem uma data definida para ser votada.
Por outro lado, há quem enxergue de forma favorável as movimentações do governo. O autor do projeto original, o deputado federal Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), afirmou à reportagem que a concordância de diversos ministérios em relação ao projeto indica o desejo do governo de se aproximar desse segmento.
“Tenho a impressão de que o governo irá apoiar, porque os benefícios trazidos pelas igrejas, tanto no âmbito espiritual quanto social, são significativos. Eu costumo dizer: igreja forte é sociedade mais justa, igreja forte é país mais forte, é família mais forte. Acredito que o apoio do governo será benéfico”, afirmou o parlamentar.
Ele complementou: “O governo demonstra que não tem nada aem oposição às igrejas. Penso que a Frente Parlamentar Evangélica ficou muito agradecida”.
Aproximação pode não ter efeito com eleitores
A análise de Crivella sobre a atitude do governo, no entanto, pode não ser válida para o eleitorado evangélico – atualmente fiel a Bolsonaro e crítico contundente das agendas identitárias apoiadas pelo PT. De acordo com o cientista político Adriano Cerqueira, do Ibmec de Belo Horizonte, a praticidade da Frente Parlamentar Evangélica em relação ao governo tem um limite.
“Os líderes evangélicos se transformam em figuras políticas à medida que conseguem permanecer próximos dos fiéis que tendem a se tornar seus eleitores. Se esses líderes começarem a tomar decisões que vão se distanciando das convicções e dos interesses dos seus eleitores fiéis em ambos os sentidos, eles perdem essa base de eleitores. Assim, há um limite para a praticidade deles”, explicou o analista.
Cerqueira também ponderou que a movimentação do Planalto evidencia a dificuldade que o PT enfrenta ao tentar se aproximar do setor evangélico, mesmo cortejando lideranças no Legislativo.
“Com essa medida, o governo está agradando mais aos pastores e aos deputados pastores do que propriamente aos eleitores. É uma estratégia de cima para baixo que o PT está adotando. Isso evidencia a dificuldade do PT em fazer algo que Bolsonaro conseguiu fazer: estabelecer uma ligação direta com esse eleitorado sem precisar de intermediação. O PT ainda precisa iniciar um diálogo com alguma liderança e contar com essa liderança para melhorar a imagem do partido”, acrescentou.
O cientista político Juan Carlos Arruda, CEO do Ranking dos Políticos, afirma que “a iniciativa em torno da isenção fiscal representa um passo concreto em direção a uma maior compreensão mútua e colaboração”. No entanto, ressalta que o Executivo precisará se empenhar mais para reverter a rejeição dentro desse segmento.
“A aprovação da isenção fiscal é um avanço positivo, mas a construção de uma relação sólida exigirá esforços contínuos para abordar as preocupações e aspirações específicas desse eleitorado, consolidando, assim, uma verdadeira ‘bandeira de paz’ entre o governo e a comunidade evangélica”, destacou Juan.
Segundo Leandro Gabiatti, doutor em ciência política e diretor da Dominium Consultoria, não apenas a presença, mas também a realização do ato pelo pastor Silas Malafaia, demonstra o quanto Bolsonaro está próximo das igrejas, especialmente das evangélicas neopentecostais.
Neste cenário, o analista político avalia que a esquerda deve intensificar a tentativa de se aproximar das igrejas evangélicas. “A esquerda almeja estabelecer canais de diálogo e de proximidade com os setores da igreja evangélica, pois reconhecem o poder político eleitoral que a igreja possui”, disse Gabiatti.
Conflito com bancada teve início com medida da Receita Federal
Além de tentar contornar a controvérsia causada pelas declarações do presidente junto aos evangélicos, o governo também enfrenta outra questão que gerou atritos com parlamentares. Em 17 de janeiro deste ano, a Receita Federal revogou a isenção fiscal que havia sido concedida por Bolsonaro aos líderes religiosos.
A medida estabelecida pelo ex-presidente isentava os salários e remunerações pagos pelas igrejas aos pastores e líderes religiosos. No meio evangélico, essas remunerações são conhecidas como prebendas, enquanto no meio católico são chamadas de côngruas.
A norma assinada pelo então secretário especial da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes, considerava que apenas o dinheiro pago por prestação de serviços, como aulas e palestras, era considerado salário. Isso excluía a remuneração regular oferecida pelas entidades religiosas. Com a revogação realizada pelo governo Lula em janeiro, as igrejas voltaram a pagar Imposto de Renda e a Contribuição Social.sobre todo e qualquer pagamento realizado ao corpo clerical.
A interrupção foi interpretada pelos legisladores do setor como “perseguição”. Em comunicado divulgado no mesmo dia, os parlamentares expressaram ver “com grande estranheza” a determinação do governo.
“Ficam muito evidentes os ataques que continuadamente vêm sendo realizados ao grupo cristão por meio das instituições governamentais”, afirmou o documento emitido pela Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional. Os parlamentares também mencionaram que medidas desse tipo “afastam a comunidade cristã” do governo federal.
Na época líder da FPE, o deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM), considerou “lamentável” e “incompreensível” a decisão da Receita Federal. “Lamentável. Para um governo que diz reconhecer a importância das religiões e a necessidade de aproximação do grupo, tomar uma atitude assim é incompreensível”, declarou em mensagem enviada à imprensa.
Relações entre Lula e evangélicos foram marcadas por conflitos em 2023
Apesar de buscar uma reaproximação com o grupo evangélico, a ligação entre Lula e essa comunidade enfrentou diversos abalos ao longo de 2023. O Planalto chegou a tentar uma aproximação ao articular com a Frente Parlamentar Evangélica a ampliação da isenção de tributos para entidades religiosas durante a primeira votação da Reforma Tributária (45/2021) na Câmara dos Deputados, em junho.
A iniciativa aprovada pelos legisladores isenta organizações de ajuda e beneficentes ligadas a templos e igrejas de pagar certos impostos, como IPTU, IPVA, Imposto de Renda, ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação) e ISS, por exemplo.
A manutenção do benefício durante o processo de aprovação da reforma, que ocorreu em dezembro, gerou certa expectativa do governo para uma possível reaproximação. Contudo, a resolução 715 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que defendeu aborto e tratamento para mudança de gênero aos 14 anos, e as primeiras declarações de Lula sobre Israel resultaram no afastamento da bancada. Em novembro, o político afirmou que o estado liderado por Benjamin Netanyahu praticava “terrorismo” na Faixa de Gaza.
“Israel fazendo o que está fazendo com hospitais, crianças e mulheres […] é uma atitude igual ao terrorismo. Não tem como dizer outra coisa. Se eu sei que está cheio de criança naquele lugar, pode ter o monstro lá dentro, eu não posso matar as crianças porque eu quero matar o monstro. Eu tenho que matar o monstro sem matar as crianças”, disse o presidente à época.
O governo tentou uma nova reaproximação quando o advogado-geral da União, Jorge Messias, era um dos cotados para assumir o lugar da então ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF). Ao participar da VI Conferência Regional da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, Messias solicitou “a torcida dos evangélicos” para a gestão de Lula.
“Destaquei a importância da contribuição dos evangélicos para o debate democrático. Os convidei a conhecer e fazer parte dos conselhos de participação social do Poder Executivo. Deixei uma mensagem de paz e pedi orações para que nosso país seja um lugar de entendimento e harmonia”, escreveu.
Para a indicação de Flávio Dino ao STF, o governo também buscou o apoio de senadores da Frente Parlamentar Evangélica para que o então ministro da Justiça e Segurança Pública tivesse uma aprovação mais ampla. A senadora Eliziane Gama (PSD-MA), que também é evangélica, foi escolhida para conquistar o apoio e manteve contato com os colegas.
Em dezembro, o governo voltou a tentar se aproximar do grupo por meio dos programas de ajuda financeira, como o Bolsa Família. O objetivo era capacitar membros de igrejas para cadastrar pessoas em situação de vulnerabilidade nos programas sociais, como Bolsa Família, Farmácia Popular, Minha Casa, Minha Vida e Luz para Todos.
A próxima semana promete trazer ainda mais tensão para a relação de Lula com os evangélicos. O STF agendou a continuação de uma votação que pode resultar na descriminalização da posse de maconha. Legisladores da oposição já estão se mobilizando para envolver a Frente Parlamentar Evangélica em um esforço para que o Congresso legisle sobre o assunto de modo que a decisão do Judiciário não prevaleça. Enquanto isso, o governo Lula está apostando em políticas de redução da população carcerária que entram em conflito com a ideia de combate às drogas. Mais uma vez, governo e evangélicos devem se encontrar em posições opostas.
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