sexta-feira, 13 setembro, 2024
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    o fim da doutrina Chevron

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    A Suprema Corte dos Estados Unidos está prestes a tomar uma decisão histórica. Nos processos Relentless Inc. vs. Department of Commerce e Loper Bright Enterprises v. Raimondo , ela está analisando o pedido de superação de um dos seus precedentes mais conhecidos: Chevron [1].

    Instituída na década de 1980 [2], a doutrina Chevron estabelece que, quando a lei é ambígua e há uma regulamentação razoável sobre o assunto por parte de uma autoridade administrativa, os juízes devem aceitar esse entendimento.

    O precedente garante certa competência regulatória residual às agências reguladoras, permitindo que elas atuem para complementar ou esclarecer as leis em aspectos não expressamente determinados pelo legislador.

    O seu efeito foi reduzir o espaço de criação do Direito conferido ao juiz, que passou a estar vinculado às decisões das agências, desde que razoáveis.

    Com o argumento de que as agências possuiriam mais conhecimento técnico e legitimidade política do que os juízes para atuar em aspectos não claramente determinados pelo legislador, a Suprema Corte estabeleceu as bases do que, no Brasil, hoje chamamos de deferência técnico-administrativa. É essa importante decisão que pode estar com seus dias contados.

    Nos dois casos em julgamento, questiona-se a constitucionalidade de uma resolução do National Marine Fisheries Service (Noaa Fisheries) que obriga as empresas de pesca a contratar um inspetor federal e levá-lo em suas expedições, a fim de evitar a pesca predatória.

    Divulgação/Greenpeace

    Segundo os autores, o custo de contratação do inspetor (US$ 710 por dia) muitas vezes pode superar os lucros de um dia de pesca, tornando a resolução irrazoável.

    Argumento para o fim
    No entanto, os autores não se limitam a requerer a anulação da resolução com base na doutrina Chevron (já que, em tese, ela não seria razoável); há um pedido mais amplo: o fim do precedente.

    E, ao que tudo indica, esse segundo pedido tem grandes chances de ser aceito. Em audiência realizada no início de janeiro, quatro dos Justices mais conservadores da corte já deixaram claro que são favoráveis à revogação da doutrina Chevron. Basta mais um voto para que a maioria seja alcançada.

    O argumento implícito por trás do fim parece ser um só: ao conferir um espaço de autonomia às agências para fixar a interpretação a ser adotada em casos de lacunas ou indeterminações legislativas, a doutrina Chevron retira do Poder Judiciário uma competência que lhe seria inalienável, a de dizer o Direito.

    Caindo o precedente, a palavra final para esclarecer a lei em casos de indeterminação e ambiguidade passaria aos juízes.

    Com todo respeito, enxergamos mais problemas do que soluções nessa forma de pensar. Temas que envolvem interesses multidisciplinares, cuja decisão precisa considerar aspectos técnicos, científicos ou políticos de grande complexidade, não têm no juiz o seu decisor mais qualificado, seja por falta de legitimidade política, seja por falta de conhecimento especializado.

    Outro ponto relevante diz respeito ao fato de que os juízes, ao contrário dos administradores/gestores, não possuem um dever de accountabilty claramente delimitado perante os cidadãos. Então, como responsabilizá-los por decisões equivocadas que afetem de maneira negativa temas como implementação de políticas públicas, regulamentações farmacêuticas e alimentícias ou mesmo a área das novas tecnologias?

    Separação de Poderes
    O tema é central à separação de Poderes. Definir quem faz o que num ambiente complexo tem sido desafiador. O Brasil tem diversas discussões que remetem a essa questão central.

    Comorecordou a Juíza Elena Kagan, em determinados casos a questão submetida a julgamento envolve um grau de especificidade e tecnicidade tão intrincados que os magistrados não possuem sequer condições de compreender a controvérsia, muito menos de solucioná-la da forma mais apropriada.

    E concluiu: “precisamos deixar para as pessoas que de fato têm conhecimento sobre tais assuntos a responsabilidade pela tomada de decisões”.

    De fato, Chevron está fundamentada em uma racionalidade importante: em determinadas situações, a melhor decisão que o juiz pode tomar é aceitar a solução já encontrada pelo órgão setorial responsável, desde que baseada em uma interpretação razoável das leis. Ir além disso deve ser extraordinário e envolve um pesado ônus argumentativo.

    As decisões tomadas por agências reguladoras são revestidas de legitimidade pela capacidade técnica dos profissionais que as formulam, que, da mesma forma que os juízes, estão sujeitos ao dever de fundamentar seus atos. Essa, aliás, é a sua função principal.

    Afastar a necessária deferência às interpretações das agências é, em certa medida, atacar diretamente a razão de ser da própria atividade regulatória.

    No Brasil, esse é o entendimento que parece prevalecer e que se mostra chancelado pela nossa Suprema Corte [3] — sem desconsiderar, claro, o casuísmo que envolve tais análises (o famoso cada caso é um caso, tão ao gosto dos juristas).

    Seja como for, esperamos que a mudança que se vislumbra no horizonte norte-americano não venha a impactar a ainda pouco consolidada doutrina da deferência administrativa no Brasil.

    O respeito à separação dos Poderes é, acima de tudo, uma exigência republicana; o Judiciário não pode vir a usurpar o espaço de atuação conferido pela Constituição ao Poder Executivo, e vice-versa; se há uma lição a ser retirada da doutrina Chevron é essa: em determinados casos, o melhor que o juiz tem a fazer é seguir as decisões tomadas por aqueles que estão em melhor posição para tomá-las.

    Atribuir aos juízes o papel de superego da Administração é causa de grandes confusões, e poucas soluções.

     

    [1] Trata-se não só de uma das decisões mais importantes e influentes do Direito Administrativo em escala global, como também é a decisão mais citada pelos juízes federais americanos.

    [2] Veja o caso aqui: https://www.oyez.org/cases/1983/82-1005.

    [3] Por todos, a decisão no AgR no RE n. 1.083.955/DF.

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