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Existe uma pretensão que difere da contratuada ou da indenizatória. Não se trata de responsabilidade civil contratuada, nem aquiliana. Seu designativo é pretensão restitutória. Existem comportamentos que não geram prejuízo, mas que resultam no dever de restituir um enriquecimento adquirido às expensas do direito alheio.
Suponha que eu tenha deixado meu carro na oficina por alguns dias, para ser reparado. Durante uma das noites em que o meu carro estava lá, o mecânico pega o veículo e sai com ele. Aproveita a noite; passeia com amigos; utiliza o meu carro.
O carro não sofreu danos de nenhum tipo. Nenhum dano foi causado. A quilometragem aumentou, porém de forma absolutamente irrelevante. O valor de mercado do meu carro permanece exatamente o mesmo. Não alterou em nada o valor que eu conseguiria obter em uma eventual venda.
Há responsabilidade civil extracaracterística ou aquiliana nesse cenário? Há obrigação de reparar? A resposta é não. Não houve prejuízo. Mas tenho o direito de exigir do mecânico ou do proprietário da oficina — de quem o mecânico é preposto — a restituição do enriquecimento às custas do meu patrimônio.
Afinal, o carro é meu e eu não autorizei aquela pessoa a utilizá-lo. É um uso indevido e uma usurpação do meu direito de propriedade. O montante, nessa situação, deve corresponder a uma diária de locação: o que uma empresa de locação como Localiza, Unidas ou Movida cobraria para alugar um carro semelhante ao meu.
O exemplo mencionado é classificado na Alemanha e em boa parte do globo como enriquecimento sem causa por interferência (Eingriffskondiktion). Ou seja: alguém interferiu em algum dos meus direitos e se enriqueceu à minha custa.
Mesmo sem ter sofrido prejuízo ou empobrecimento, é cabível que eu reivindique o que a outra pessoa obteve como vantagem sobre o meu patrimônio. Essa vantagem tem sido denominada pelo STJ como “lucro de intervenção”.
A intervenção que ocasiona a obrigação de restituir pode ocorrer sobre direitos de posse de bens materiais (ex.: uso do imóvel de outrem sem autorização), sobre propriedade intelectual (ex.: uso de direito autoral ou propriedade industrial sem prévia autorização), ou sobre qualquer outro direito alheio.
Outro tipo de enriquecimento sem razão também é frequente. Imagine que eu receba um Pix de R$ 1 milhão por engano. Posso gastar esse valor e jamais devolvê-lo? Claro que não. Só porque houve um equívoco por parte de quem realizou a transferência, não sou obrigado a devolver? Sou sim.
Essa é outra pretensão restitutória. Na Alemanha, esse tipo de caso é chamado de enriquecimento sem causa por prestação (Leistungskondiktion). A diferença principal é que, aqui, o titular do direito o cede por equívoco. Trata-se de um Pix feito por engano.
Já no enriquecimento por interferência, a parte que se enriquece à custa da outra interfere no direito sem autorização do seu titular. É o caso do mecânico que dá uma volta no meu carro.
Há vários outros exemplos interessantes. O que desejo ressaltar, no entanto, é que, no Brasil, pouco se estuda acerca do enriquecimento sem causa.
ConJur
Rodrigo da Guia, docente da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), um dos raros pesquisadores do enriquecimento sem causa no Brasil, escreveu certa vez que o “desenvolvimento histórico da vedação ao enriquecimento sem causa no direito brasileiro poderia ser resumido como a crônica de um instituto desconsiderado”. Infelizmente, é verdade.
Cláudio Michelon, brasileiro que hoje é professor em Edimburgo, atribui o atual cenário a Beviláqua. Inspirado no Código Civil francês,
Beviláqua questionava seriamente a obtenção sem motivo como categoria jurídica.
Apesar de à frente de seu tempo em diversos assuntos (nos quais fortemente influenciado, principalmente, pela doutrina alemã) [5], Beviláqua foi antiquado até para os padrões de sua época quando o tema era obtenção sem motivo.
Em 1892, no famoso arrêt Boudier, a Corte de Cassação francesa já havia reconhecido a existência da reivindicação restitutória como figura jurídica independente. Supriu a lacuna do Code civil. [6] Mas Beviláqua e o seu projeto de Código Civil de 1900 — que veio a tornar-se o Código Civil brasileiro de 1916 — não incorporaram nada disso.
O silentio do Código Civil francês — que, infelizmente, inspirou Beviláqua — foi corrigido pela jurisprudência francesa em 1892 e, posteriormente, foi definitivamente consertado na Reforma do Código Civil francês de 2016.
A França evoluiu. O Brasil permaneceu estagnado. O Código Civil de 2002 não promoveu nenhuma reforma substancial nessa matéria.
Essa constatação é surpreendente. O Direito Civil brasileiro foi fortemente influenciado pelo Direito Romano, que dispunha de um sistema sofisticado e extremamente interessante de reivindicações restitutórias. [7]
O estado da técnica do Direito Civil brasileiro atual é: nós não apenas temos ignorado boa parte do que se escreve no mundo sobre obtenção sem motivo, como não aplicamos e não entendemos nem o que os romanos já haviam estabelecido e fixado.
Carlos E. Elias de Oliveira e João Costa-Neto têm escrito sobre o tema insistentemente e defenderam que deve haver uma disciplina de Direito Civil, nas Faculdades de Direito, de ao menos um semestre, dedicada exclusivamente ao Direito do Enriquecimento sem Causa. É o que acontece na Alemanha ou no Reino Unido, por exemplo. [8]
O Superior Tribunal de Justiça, quando invoca a obtenção sem motivo, é quase que exclusivamente para dosar indenizações por danos morais. [9] Mas esse é um erro grave. Em primeiro lugar, o suposto “princípio da obtenção sem motivo” não está em nenhum lugar do Código.
Foi inventado pela jurisprudência. Em segundo lugar, em qualquer lugar do mundo, obtenção sem motivo é uma reivindicação diferente da responsabilidade aquiliana. Aplica-se justamente quando não há dano. São conceitos distintos.
Outro exemplo de equivoco e de confusão conceitual é a Súmula 403/STJ:
“Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.”
O STJ teve de dizer que cabe indenização mesmo sem haver prejuízo, porque realmente não costuma haver dano nesses casos. Não é caso de indenização, mas de restituição.
Quem usa imagem sem autorização tem de devolver ao titular dessa imagem cada centavo do que ganhou indevidamente. Não era preciso — e nem tecnicamente adequado — criar uma hipótese de dano moral in re ipsa. O correto seria perceber que o problema é outro.
Quem usa a imagem de alguém indevidamente tem que pagar: mas não danos morais, e sim restituição, a título de obtenção sem motivo.
Não estou propriamente a criticar o resultado a que chega a súmula, mas a forma como se chegou a ele.
Existe um problema de cultura jurídica. Não é mera abordagem diversa. É erro mesmo. O resultado prático até pode ser o mesmo nos casos citados acima. Mas esse tipo de falta de clareza conceitual conduz (ou pode conduzir) a erros graves em outros casos.
Dou três exemplos
No caso Prada, o STJ confundiu totalmente dano moralcom enriquecimento injustificado (STJ, REsp 1.730.067/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15/12/2020).
No processo Coco Bambu v. Camarões — ainda em análise no STJ —, discute-se acerca de transgressão de trade dress. Um restaurante acusa o outro de competição desleal.
Não posso e não tenho ponto de vista a expressar sobre o caso em si. Nunca tomei posição a esse respeito. Contudo, sei que a decisão do TJ-RN — o acórdão questionado — determinou que uma das partes indenizasse a outra por danos morais (STJ, 4ª Turma, AREsp 1.303.548/RN, Rel. Min. Raul Araújo, pendente de julgamento).
Em princípio, não se trata de danos morais. Um restaurante não alegou que sua reputação foi atacada ou menosprezada.
O argumento central do processo é que um restaurante adotou o conceito-imagem ou o “estilo” do outro — o trade dress —, replicando-o para realizar competição desleal. Teria imitado pratos do cardápio, recrutado funcionários, copiado o layout de cores e imagens da fachada e do interior do restaurante, entre outros aspectos.
Não posso confirmar se tudo isso é verdade. Mas o que foi solicitado claramente não diz respeito a danos morais. Ninguém difamou ninguém. Não houve transgressão de direitos pessoais ou da reputação ou fama. Teria ocorrido a apropriação indevida de um modelo de negócio por práticas desleais de concorrência. E esse tipo de comportamento, se confirmado, resulta em enriquecimento sem justificativa; e não em danos morais.
Na Alemanha, o caso seria classificado como enriquecimento sem justificativa por intervenção. Também seria assim classificado um outro caso julgado pelo STJ: a atriz Giovanna Antonelli teve sua imagem utilizada por uma farmácia sem sua autorização. Entrou com processo contra a farmácia.
O TJ-RJ, em um primeiro momento, desejava condenar a farmácia a pagar uma quantia baixa a título de danos morais (STJ, REsp 1.698.701/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Villas Bôas Cueva, j. 2/10/18). Porém, o argumento da atriz — acatado pelo STJ — foi o seguinte: a farmácia utilizar seu nome não acarreta somente um desconforto e um dano psicológico (se houver).
O que de fato acarreta é um enriquecimento indevido às custas do prestígio que a atriz construiu ao longo de sua carreira. Se a farmácia desejava se utilizar desse prestígio, deveria ter pago o cachê devido pela publicidade. Portanto, o mais importante é fazer com que a farmácia restitua todo o lucro obtido pelo uso indevido da imagem da atriz.
Neste caso, existe uma diferença muito interessante, a qual é um dos grandes temas debatidos no Direito Civil Comparado. No exemplo do mecânico que pegou meu carro, mencionei que ele deveria pagar o equivalente a um dia de locação de um veículo similar em uma locadora do mercado (Localiza, Unidas, Movida, etc.). Parte do Direito inglês denomina esse montante de reasonable fee. [10]
No entanto, no caso de Giovanna Antonelli, a solução não pode ser a mesma. Caso a farmácia apenas pague o cachê normal da atriz, estaria recebendo um incentivo gigantesco para utilizar imagens de celebridades sem autorização, pois, no final das contas, “pior do que está não fica”.
Se pagasse apenas o cachê ou reasonable fee, mesmo após todo o processo, a farmácia só teria que desembolsar o mesmo montante que já estava legalmente obrigada a pagar. Praticando ou não o ato ilícito, o valor a ser desembolsado seria o mesmo. Haveria um forte estímulo para desobedecer a lei.
A solução aqui, portanto, é o chamado disgorgement of profits. A farmácia deve restituir cada centavo do lucro obtido à custa da imagem da atriz. O cachê padrão de uma campanha publicitária opera como base para a restituição.
No entanto, a atriz tem o direito de recuperar cada centavo do que a farmácia obteve ilegalmente devido à sua imagem. O cálculo desse valor não é simples. Por isso, o STJ enviou o caso para liquidação por arbitramento (perícia).
O legislador brasileiro estaria acertando se estabelecesse critérios mais seguros para o cálculo do valor de restituição, como já fez no art. 210 da Lei de Propriedade Industrial.
O caso de Giovanna Antonelliquase igual ao caso “Paul Dahlke”, decidido em 1956 pelo BGH, o STJ alemão. [11]
A conexão entre o enriquecimento injustificado e a propriedade intelectual, inclusive marcas, patentes e concorrência desleal, é minuciosamente pesquisada na Alemanha há mais de 100 anos. Um dos textos fundamentais sobre o assunto foi divulgado em 1909 (!) pelo brilhante estudioso do direito romano alemão Fritz Schulz — um dos meus heróis jurídicos. [12]
O Brasil ficou estagnado no tempo e perpetuou o equívoco de Beviláqua. Necessitamos aprofundar os estudos sobre enriquecimento injustificado. A Comissão de Reforma do Código Civil deu alguns passos significativos nesse sentido.
Estabeleceu, por exemplo, o termo inicial dos juros nas demandas restitutórias. Mas creio que também é fundamental fomentar um diálogo esclarecedor e uma mudança de cultura jurídica. Nossos magistrados e advogados precisam compreender que dano moral é uma coisa. Enriquecimento injustificado é outra.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
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[1] A referência pode ser encontrada em nosso manual: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Método, 2024, p. 742.
[2] Exceções, louváveis, que, infelizmente, confirmam a regra: MICHELON, Cláudio. Direito Restitutório: Enriquecimento injustificado, pagamento indevido, administração de negócios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007; NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento injustificado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010; SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento injustificado: o lucro da intervenção. São Paulo: Atlas, 2012; LINS, Thiago. O lucro da intervenção e o direito à imagem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016; ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: JusPodivm, 2019; MORAES, Renato Duarte Franco de. Enriquecimento injustificado: e o enriquecimento por intervenção. São Paulo: Almedina, 2021; COSTA-NETO, João; NÓBREGA NETO, Elias C. A quantificação do enriquecimento injustificado por intervenção e o disgorgement of profits no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024; OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Método, 2024 [1. ed. 2022], pp. 741-766.
[3] SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento injustificado: as obrigações restitutórias no direito civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2022 [1. ed. 2018], p. 25.
[4] Cláudio Michelon, Direito Restitutório: Enriquecimento injustificado, pagamento indevido, administração de negócios (São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007) 19-26.
[5] Jan Peter Schmidt, Zivilrechtskodifikation in Brasilien (Tübingen, Mohr Siebeck, 2009) 43-48, 342-353.
[6] Cass. req. 15 Junho 1892, arrêt Boudier, GAJC, t. 2, 12e éd., no 239.
[7] Cf., por exemplo, Fritz Schulz, Direito Romano Clássico (Oxford, Clarendon Press, 1951) 610-619; Vincenzo Arangio-Ruiz, Istituzioni di diritto romano (Napoli, Jovene, 1957) 360 ss.; Max Kaser, Das römische.Direito Privado, A antiga lei romana, a lei pré-clássica e clássica, 2ª edição (Munique, C.H. Beck, 1971) 592-600; M Talamanca, Fundamentos de direito romano (Milão, Giuffrè, 1990) 611-614; Schmoeckel, J Rückert e R Zimmermann, Comentário histórico-crítico ao BGB, Direito das Obrigações: Parte Especial §§ 657-853 (vol. III/2, Munique: C.H. Beck, 2013) 2593-95; Iole Fargnoli, ‘Condictio como ação de reembolso’ in U Babusiaux et al, Manual de Direito Privado Romano (vol. 2, Tübingen, Mohr Siebeck, 2023) 2008-16.
[8] Cf. J Costa-Neto e Carlos E E de Oliveira, Código Civil, 3ª ed (São Paulo, Método, 2024) 743.
[9] STJ, Quarta Turma, AgInt no AREsp 868.437/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 16/3/2017, DJe 28/3/2017; STJ, Terceira Turma, AgInt no REsp 1.801.537/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 30/9/2019, DJe 3/10/2019; STJ, Quarta Turma, AgInt no REsp 1.406.227/PR, Rel. Min. Marco Buzzi, j. 4/5/2020, DJe 7/5/2020.
[10] Cf. referências: J Costa-Neto e Carlos E E de Oliveira, Código Civil, 3ª ed (São Paulo, Método, 2024) 741-766.
[11] BGH 8.5.1956, BGHZ 20, 345.
[12] Fritz Schulz, ‘Sistema dos direitos sobre a aquisição de intromissão’ (1909) 1 Arquivo para a prática civilística 1.
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