domingo, 7 julho, 2024
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    Ainda há evidências ou ‘tudo é questão de perspectiva’?


    Umberto Eco possui um livro brilhante intitulado Nos Ombros dos Gigantes. Há um capítulo dedicado a uma crítica severa ao niilismo e ao relativismo. Se eu contesto a existência de uma porta e, ao tentar atravessá-la, acabo por quebrar meu nariz, essa circunstância não constitui uma boa evidência do fato “porta”?

    Spacca

    Eco também aponta que a declaração de Nietzsche “não há fatos, apenas interpretações” apresenta uma falha: ele, Nietzsche, não seria apenas uma interpretação?

    Assim como Eco, eu também acredito em evidências. Aliás, apenas existem interpretações porque existem fatos. Recentemente testemunhamos que vários veículos de comunicação aderiram a uma forma de niilismo. Em vez de verificarem a ocorrência de fatos, optaram por narrativas. Falsas.

    Baseadas nelas, teria sido noticiado que o ministro Dias Toffoli, do STF, teria isentado uma multa de 10 bilhões da empresa JBS. Tudo isso em uma decisão indevidamente unilateral e sem se declarar suspeito justamente porque sua esposa é advogada do escritório que defendeu a empresa multada.

    A mesma construção/opção por narrativas também ocorreu com a decisão na qual Toffoli suspendeu — em um caso semelhante ao da JBS — a multa que tinha sido aplicada à Odebrecht (atual Novonor), em um acordo de leniência, estabelecido em circunstâncias igualmente pressionadas. Uma das manchetes chegou a afirmar, de forma alarmante, que “decisão de Toffoli escancara ‘liberou geral’ de multas por corrupção”. A diferença em relação ao caso da Novonor é que não havia o argumento da esposa do ministro ser advogada.

    Aos fatos. Antes de fugir para as montanhas, é aconselhável dar alguns passos para trás — e não com os pés de Curupira — para descobrir o que realmente aconteceu. Afinal, as evidências existem. Se tivessem investigado de forma mais aprofundada, teriam encontrado evidências ocultas sob as interpretações.

    Vejamos. Primeiramente, as decisões foram unilaterais porque, assim como elas, existem centenas. Além disso, nenhuma parte da questão decidida por Toffoli inova em relação aos precedentes da Suprema Corte.

    Em segundo lugar, esqueceram de mencionar que Toffoli não atendeu ao pedido principal da J&F — que era a suspensão das transações jurídicas estabelecidas pelo grupo antes do acordo de leniência. Com isso, o conglomerado ainda não conseguiu revisar a venda da Eldorado, uma transação que está sendo questionada há um bom tempo.

    Em terceiro lugar, ao identificar irregularidades na celebração do acordo (isso também foi constatado no caso da Novonor, ex-Odebrecht), Toffoli apenas suspendeu o pagamento da multa que foi imposta à J&F para que eles pudessem continuar operando, seguindo o artigo 219 da CF. Portanto, a decisão tem caráter cautelar. Não houve perdão. O ministro determinou que a empresa reavalie com a CGU se houve ou não algum problema nos acordos de leniência.

    Quarto, no caso da JBS, o valor da multa de R$ 10,3 bilhões está completamente incorreto; o próprio MPF já corrigiu uma série de erros de cálculo e reduziu para R$ 3,5 bilhões. Além disso, a empresa já pagou R$ 2,9 bilhões desse valor.

    Por último, as decisões apresentam todos os atributos que se esperam de um juiz: responsabilidade e fundamentação sólida. Isso porque, ao identificar dúvida razoável sobre o requisito de voluntariedade nos acordos de leniência, Toffoli percebeu a importância da situação e, por meio de decisões técnicas, embasadas na jurisprudência do próprio Supremo e sensatas, determinou a suspensão.do pagamento das penalidades e permitiu a reanálise dos apêndices dos pactos.

    Sexto, em relação à JBS, as alegações de existência de impedimento ou suspeição do ministro no caso são, no mínimo, equivocadas, chegando à beira da ofensa. Bastava consultar um fato, a ADI 5.953 — que declarou a inconstitucionalidade de lei que estabelecia o impedimento do juiz nos processos em que a parte for cliente do escritório de advocacia do cônjuge —, até mesmo porque, no caso, a cônjuge do ministro sequer atua no caso. Aliás, considerando tratar-se de uma grande banca de advogados, validar esse raciocínio poderia inclusive inviabilizar o trabalho do escritório perante o Supremo. Portanto, nada a objetar da decisão de Toffoli.

    Sétimo, a concessão de acesso ao material da operação spoofing é medida que já tinha sido adotada em relação a outros acusados da operação lava jato, diante das graves acusações de conluio entre acusadores e juízes. As empresas signatárias dos pactos têm o direito de saber a dimensão do vício da atuação do Ministério Público. Não esqueçamos que, ao contrário do que acontece no resto do mundo, por aqui os pactos contêm sérios indícios de terem sido forçados, além de que, ao punirem os dirigentes, também puniram as empresas, jogando fora a água suja com a criança dentro.

    Oitavo e último, todos os pactos devem ter como pressuposto a boa-fé objetiva. Há cheiro de violação a esse pressuposto. Nesse sentido há o precedente da Reclamação 43.007, em que está reconhecida a ilicitude dos abusos cometidos pela operação lava jato, invalidando delações e suspendendo a leniência da Odebrecht. O que fez a J&F? Simples. Requereu a extensão dessa decisão para que lhe fosse possibilitado o acesso ao material da “spoofing”, a fim de ver a amplitude das ilegalidades e seus reflexos no acordo assinado. A decisão de Toffoli apenas aplica a isonomia. E, no caso da Novonor, trata-se da “aplicação da aplicação”, por assim dizer.

    Como se percebe, existem fatos. Que valem mais do que as narrativas. O livro de Umberto Eco ensina muito. Eco se vale da frase do monge Bernardo de Chartres: “quem vê mais, um anão ou um gigante? Certamente um gigante, respondem Chartres e Eco, pois os seus olhos estão situados em nível superior aos do anão. Mas se o anão fica sobre os ombros de gigantes, quem vê mais?” Assim também nós somos anões sobre os ombros de gigantes. No caso, os fatos são os gigantes. Respeitemos os gigantes. Deixemos que nos falem.

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