sexta-feira, 28 junho, 2024
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    Cherstenton e a importância de defender a integridade jurisprudencial na Lei de Licitações



    Ponto de Vista

    Com o início de um novo ano, surge um novo modelo de licitação no sistema jurídico brasileiro. Isso acontece porque a antiga Lei Federal nº 8.666/1993 foi completamente revogada. Agora, o modelo nacional de licitação é baseado exclusivamente nos princípios estabelecidos na Lei 14.133/2020.

    Essa mudança de ano (e de legislação) nos traz o debate entre a tradição e a inovação. Por um lado, a chegada do novo ano possibilita novas e empolgantes oportunidades de progresso, por outro, as tradições têm o papel de manter nossos laços com o passado, permitindo que nos reconheçamos como sociedade.

    Esta relação entre inovação e tradição já foi discutida por vários filósofos. No entanto, uma visão peculiar, mas muito interessante, sobre o tema é a regra da “cerca de Chersterton”. Conforme a regra enunciada pelo filósofo inglês Gilbert Keith Chersterton, você nunca deve destruir algo, modificar uma regra existente ou romper com uma tradição, se não entender a razão pela qual ela foi criada.

    Isso porque, ao destruir algo que não se compreende, não se tem conhecimento das possíveis consequências desse ato.

    Nesse sentido, recentemente, em outubro de 2023, o Tribunal de Contas da União emitiu uma decisão relevante sobre o conceito de inexequibilidade da proposta em obras e serviços de engenharia no Acórdão de Relação nº 2198/2023.

    Conforme o artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020, “são consideradas inexequíveis as propostas cujos valores sejam inferiores a 75% do valor orçado pela administração”.

    O texto não difere significativamente daquele previsto no artigo 48, inciso II §1º da Lei nº 8.666/1993, que também estabelecia a mesma presunção de inexequibilidade para obras e serviços de engenharia. Na realidade, as diferenças nas normas dizem respeito apenas à alíquota (que passou de 70% para 75%) e à base de cálculo (que agora inclui apenas o orçamento estimado pela administração pública), ou seja, são diferenças quantitativas apenas.

    No final das contas, as normas são bastante semelhantes, então era razoável supor que a aplicação se manteria estável. Portanto, era seguro presumir que a presunção legal de inexequibilidade prevista no artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020 era apenas relativa, sendo possível para o proponente comprovar a exequibilidade de sua proposta, conforme o entendimento da Súmula nº 262 do Tribunal de Contas da União [1].

    No entanto, o tribunal, por meio do Acórdão de Relação 2198/2023 [2] — Plenário decidiu que a presunção legal de inexequibilidade seria absoluta, não havendo possibilidade de realizar diligências para comprovar a adequação de sua proposta.

    Essa decisão foi baseada na análise da nova legislação, pois, de acordo com o documento, o artigo 59, §2, que permite a realização de diligências para demonstrar a exequibilidade da proposta, não se aplicaria aos casos de obra em uma interpretação detalhada da lei.

    Em outras palavras, o artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020 é considerado uma norma especial que elimina a possibilidade de diligências para comprovar a exequibilidade da proposta conforme o artigo 59, §2º da Lei 14.133/2020.

    Além disso, a análise técnica enfatizou que o artigo 59, §5º da Lei 14.133/2020, que prevê a exigência de garantia adicional, “apresenta providências a serem tomadas para os casos em que a proposta é inferior a 85% do valor orçado. Ou seja, nestes casos, pode haver uma dúvida quanto à exequibilidade da proposta”.

    Em resumo, a interpretação dada pelo tribunal estabelece um nível de certeza de exequibilidade: propostas abaixo de 75% do valor orçado seriam absolutamente inexequíveis; propostas entre 75% e 85% seriam possivelmente inexequíveis; e propostasacima de 85% do montante planejado seriam plenamente executáveis.

    Pela razão de diversos motivos, a interpretação não parece ser a mais apropriada.

    Primeiramente, não houve modificação normativa relevante que justificasse uma alteração tão brusca do entendimento já consolidado de presunção relativa de inexequibilidade.

    De fato, a Lei 14.133/2020 reitera o mesmo regulamento da anterior, apenas incorporando em seu texto a Súmula 262 do TCU, provavelmente, para assegurar maior segurança jurídica aos gestores [3].

    Entender que a inclusão do artigo 59, §2º da Lei 14.133/2020 impediria a realização de averiguações para atestar a exequibilidade das obras seria compreender que, ao adotar o entendimento jurisprudencial, a lei o superou em verdadeira contraditio in terminis.

    Em segundo lugar, a interpretação de que a disposição do artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020 seria especial em relação à disposição do artigo 59, §2º da Lei 14.133/2020 não parece ser a mais adequada.

    Esse entendimento surge de uma análise meramente topográfica da lei, criando hierarquia indevida entre os parágrafos do texto legal, como se aqueles que viessem primeiro condicionassem absolutamente a interpretação dos últimos.

    No entanto, a interpretação jurídica deve ser realizada de maneira coerente, de modo que as normas jurídicas devem, tanto quanto possível, ser entrelaçadas e se influenciarem mutuamente.

    Nesse sentido, nos parece que o artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020 não traz norma especial sobre a inexequibilidade, mas sim que traz uma definição do conceito de inexequibilidade aplicada às obras e serviços de engenharia.

    Em outras palavras, a referida norma apenas apresenta um conceito objetivo do que seja inexequibilidade, conceito esse que, após compreendido, será aplicado às outras normas que tratam sobre ele, inclusive àquela prevista no artigo 59, §2º da Lei 14.133/2020.

    Se é fato que a ordem dos parágrafos pode não ser a mais adequada, também é fato que nada indica que a norma do §4º do artigo 59 excluísse a aplicação da norma do §2º do artigo 59 da Lei 14.133/2020. E não sendo o legislador conhecido por sua excelente organização de textos normativos, não parece adequado que se confie a aplicação de norma tão importante a esses detalhes.

    Inclusive, ainda que em outro contexto, não se pode deixar de lembrar que o Superior Tribunal de Justiça afastou a aplicação do critério interpretativo topográfico quando da análise da aplicação de causas de privilégio a homicídios qualificados. Ainda que em outra área do direito, a mensagem é clara, a topografia normativa não é um método interpretativo plenamente confiável (dentre outros, o HC nº 199.602 – SP).

    Em terceiro lugar, a exigência de garantia adicional não pode ser vista como medida capaz de evitar a realização de averiguações para comprovar a exequibilidade de uma proposta. Isso porque não há relação necessária entre exequibilidade e garantia.

    Se é fato que a garantia será exigida daquelas propostas com maior risco de inexecução, também é fato que a prestação da garantia não garante a exequibilidade do objeto e nem a sua não prestação culmina na pecha de inexequibilidade do contrato. A garantia adicional é um modo de assegurar a execução pelo menor preço ofertado e não um mecanismo que indica a capacidade da proposta ser exequível. São institutos diversos, que se comunicam, mas não idênticos.

    Além das razões de doutrina jurídica, ainda pode-se analisar a questão sob dois ângulos investigativos.

    No âmbito prático, a decisão traz uma presunção de confiabilidade quase absoluta nos orçamentos estimados da administração pública. Isso porque ao se impor o rótulo de inexequível a qualquer proposta que fique abaixo de 75% do orçado pela administração pública, confia-se que o preço orçado nunca será destoante do preço de mercado, pois, caso seja, haverá superfaturamento dopacto. Isso destoa consideravelmente das ideias mais atuais de certame como mecanismos de revelação de informações em contratos oficiais.

    Além disso, dependendo de quão imprecisa for a reprecificação, o valor mínimo pode se converter no valor atuante e inquestionável no concurso público, de forma que todos os concorrentes podem acabar apresentando a mesma proposição (75% do orçamento estimado), e ela seja decidida por critérios secundários.

    Isso sem mencionar que a determinação de inexequibilidade de propostas abaixo de 75% do orçamento estimado praticamente impossibilita qualquer uso benéfico da contratação integrada, seja porque impede o uso de métodos construtivos excessivamente econômicos, seja porque, sendo realizada somente com base em anteprojeto, sua reprecificação possui uma margem de precisão de 20% (vide OT IBR nº 4/2012).

    Ou seja, é possível que a reprecificação em regime de contratação integrada gere, por si só, uma reprecificação 20% acima do valor efetivo do mercado, permitindo ao concorrente uma margem de apenas 5% entre o valor de mercado efetivo e o valor estimado pela administração.

    E, em âmbito econômico, pode-se notar que essa presunção absoluta de inexequibilidade cria um valor mínimo para o processo licitatório. E, da teoria econômica, se extrai que o valor mínimo ou ficará abaixo do valor de equilíbrio (e portanto será inútil) ou ficará acima do valor de equilíbrio, obrigando o agente (Estado) a pagar mais pelo produto [4].

    Essas duas dimensões eram suficientes para que o artigo 40, inciso X da Lei 8.666/1993 previsse a vedação de fixação valores mínimos no certame, norma não repetida no texto da Lei 14.133/2020, mas que parece ainda salutar aos procedimentos licitatório, senão por previsão normativa expressa, pelo menos pela aplicação da lógica econômica inerente às licitações.

    A princípio, a análise acima é perfunctória, mas não parece que a presunção absoluta de inexequibilidade para obras e serviços de engenharia seja o melhor caminho para os procedimentos licitatórios nacionais.

    Se é certo que a interpretação da nova lei deve garantir inovações e novas e positivas práticas para as aquisições públicas, também é certo que não devemos esquecer que a jurisprudência à época da Lei 8.666/1993 foi criada com base em décadas de experimentações, discussões, estudos, erros e acertos administrativos e a modificação irrefletida e precipitada do arcabouço jurisprudencial pode trazer efeitos deletérios ao procedimento como um todo.

    Nesse sentido, é importante que a jurisprudência dos tribunais de contas se esforcem na busca por integridade, coerência e manutenção das diretrizes postas na legislação e na sua comunicação e transição adequada para a nova licitação, sob pena de destruirmos décadas de debates sobre licitações públicas e reiniciarmos do zero discussões há muito superadas.

    No mais, o novo ano trará novos desafios e conquistas ao mundo jurídico e, como operadores do direito, devemos ser capazes de inovar quando preciso, mas que também de preservar a cerca de Chesterton e não destruir anos de normas, discussões e entendimentos jurídicos jurisprudenciais, construídos após anos de análises, sem compreendermos a fundo os seus fundamentos.

    [1] Súmula 262 TCU: O critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas “a” e “b”, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta.

    [2] É importante destacar que o Acórdão foi aprovado por Relação, não havendo o devido aprofundamento jurídico sobre o tema, o que não mitiga a relevância da discussão.

    [3] Em verdade, as modificações do regramento das licitações foram mais relacionadas a incorporações em seu texto de previsões já existentes em outros diplomas nomativos específicos e na jurisprudência consolidada do que na criação de novos regramentos, por todos: A nova Lei de Licitações: um museu de novidades? (

    [4] A análise se encontra simplificada, mas pode ser aprofundada na obra Mankiw, N. G. Introdução à economia – Tradução da 8ª edição norte-americana. Cengage Learning Brasil, 2019.

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