segunda-feira, 1 julho, 2024
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    ‘Discórdias’ causam incerteza no campo jurídico


    Há muito tempo se afirma que a estabilidade jurídica é um dos pilares do nosso sistema legal, sendo que, pelo menos desde 1988, esse princípio tem origem na Constituição. Embora a proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (artigo 5º, inciso XXXVI) seja mais comumente mencionada, a proteção da estabilidade foi explicitada em sentido mais amplo no próprio caput do dispositivo constitucional.

    Nesse sentido, o Código de Processo Civil editado em 2015 previu mecanismos para a uniformização da jurisprudência, a fim de reduzir a ocorrência de decisões divergentes para solucionar causas idênticas ou para padronizar a aplicação de determinado entendimento jurídico. Desde então, houve uma proliferação de edição de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em regime de repercussão geral e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sob a sistemática de recursos repetitivos.

    Embora tais instrumentos sejam de especial importância devido à observância obrigatória dos enunciados editados, o princípio da estabilidade jurídica fez com que o legislador fosse além e previsse também o respeito e a coerência em relação ao posicionamento jurisprudencial como um todo e não apenas aos chamados precedentes vinculantes. Pelo menos em teoria, isso diminui os riscos daquilo que se denominava de “loteria processual”, especialmente quando processos idênticos poderiam ter desfechos distintos dependendo do órgão julgador.

    Nessa mesma linha, no ano de 2018, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro foi alterada para incluir novos dispositivos, sendo que praticamente todos — senão todos — tendentes a preservar a estabilidade jurídica. No que diz respeito a este ensaio, destaque-se o artigo 30, segundo o qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a estabilidade jurídica na aplicação das normas”, inclusive por meio da edição de súmulas administrativas. Em movimento bastante similar ao que foi feito pelo legislador processual, esse dispositivo ganhou um parágrafo único especificamente para explicitar o caráter vinculante da jurisprudência administrativa.

    Dado os sinais evidentes e independentemente das críticas sobre a necessidade de uma mudança de hábitos para uma incorporação apropriada da cultura de precedentes em nosso sistema jurídico, não se pode negar os reflexos da estabilidade jurídica no âmbito da atividade jurisdicional (judicial e administrativa), especialmente no respeito à jurisprudência.

    Embora haja fundamentos separados para embasar a necessidade de uniformização da jurisprudência nas esferas judicial e administrativa, a matriz constitucional não permite orientação diversa da de que a estabilidade jurídica também pressupõe — talvez fosse melhor dizer impõe — uma coerência da jurisprudência administrativa com a judicial, pelo menos daquela proveniente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

    Nesse contexto, aliás, é o voto recentemente proferido pelo ministro Gilmar Mendes quando do julgamento do agravo regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.208.460, oportunidade na qual afirmou a possibilidade “de que órgãos autônomos — como CNJ, CNMP, o Tribunal de Contas da União, dentre outros — profiram decisão no sentido de afastar a aplicação de determinado ato normativo por vício de inconstitucionalidade, desde que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal seja clara em reconhecer a inconstitucionalidade da matéria”.

    No mesmo voto, o magistrado ainda pontuou que, em oportunidade anterior (MS nº 31.667/DF), a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal já havia decidido que “nosso sistema não impede que a administração pública deixe de aplicar disposição normativa inconstitucional, assim entendida como aquela em confronto com a lei maior”.

    ou com base em interpretação vista como incompatível pela Suprema Corte, em jurisprudência consolidada (MS 31.667/DF – AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, 2ª Turma, j. 11.9.2018)”.

    É inegável que surgirão questionamentos sob a alegação da autonomia e independência das instâncias administrativas, mas mesmo que se concorde abstratamente com esses argumentos, não se pode ignorar um problema prático que é a insegurança jurídica (e possíveis prejuízos) causados por posicionamentos divergentes das instâncias administrativa e judicial, especialmente quando esta última apresenta algo já consolidado, ainda que não vinculante.

    Foi o que ocorreu, por exemplo quando o Tribunal de Contas da União (Acórdão nº 971/2023) determinou que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) se abstivesse de “aplicar primariamente a doutrina da actio nata subjetiva a situações regidas por contratos administrativos de concessão”.

    Assim se afirma, pois a decisão foi tomada mesmo diante de um cenário em que o STJ possui casos julgados aplicando a teoria da actio nata subjetiva, inclusive por parte de sua corte especial (AgInt no EAREsp nº 1.662.149/MA, proferido em caso envolvendo responsabilidade civil). Este posicionamento também é encontrado na jurisprudência das turmas que julgam matérias afetas ao Direito Público que contam com diversos julgados reconhecendo a aplicabilidade do entendimento. No âmbito da 1ª Turma, por exemplo, o AgInt no REsp nº 1.807.655/RO e o AgInt no REsp nº 1.737.182/MA, enquanto que no âmbito da 2ª Turma, o REsp nº 1607763/SC e o AgInt no REsp nº 1.716.638/SC.

    Ressalte-se, ainda, que ainda que o acórdão proferido quando do julgamento do REsp nº 1.470.568/SP, que apreciou questão envolvendo especificamente um contrato administrativo (de arrendamento de área portuária), contenha afirmação que pode gerar dúvida sobre a adoção da teoria da actio nata subjetiva, deixou claro que “o termo inicial do prazo prescricional a publicação do contrato”, ou seja, somente após a ocorrência de um ato que tornou presumido o conhecimento do ato.

    Além disso, mesmo considerando a questão relativa à independência e autonomia das instâncias administrativas, não se pode esquecer que é a Constituição que atribui ao STJ a competência para uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional e ao STF a missão de dar a última palavra sobre o sentido das normas constitucionais. Isto é, quando alguma instância administrativa confere interpretação divergente daquela já traçada por algum Tribunal Superior, pode-se dizer, em última análise, que estaria configurada uma invasão de competência a macular o ato de ilegalidade.

    A respeito disso, e especialmente no que se refere a decisões administrativas que se relacionem com normas constitucionais, é importante destacar que a obrigatoriedade da observância é ainda mais abrangente quando se considera que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a eficácia expansiva das declarações de inconstitucionalidade realizadas fora do controle abstrato (embargos de declaração nas ADIs nº 3.406/RJ e 3.470/RJ). Se isso não for suficiente, penso que ainda será por outra via, uma vez que estará atentando contra a segurança jurídica que a Constituição busca proteger.

    De qualquer modo, o que se está a propor aqui não é uma batalha de argumentos para sustentar submissão da instância administrativa frente à jurisprudência judicial, mas sim um viés de cooperação e de observância dos entendimentos já estabelecidos, a fim de evitar que os “conflitos” entre as jurisprudências administrativa e judicial acarretem um cenário de insegurança jurídica que prejudica não apenas a criação de um melhor ambiente de mercado, como ainda gera ineficiência na medida em que sobrecarrega ainda mais as atividades do Poder Judiciário.

    O que se pretende, na verdade, é provocar uma reflexão para o fato de ser mais importante a missão de zelar pela segurança jurídica, especialmente a partir da necessária coerência entre instâncias judiciais e administrativas.

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