domingo, 7 julho, 2024
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    Estresse e indecisões caracterizam partida de não autóctones da TI Apyterewa

    A saída de habitantes e lavradores da terra indígena (TI) Apyterewa, em São Felix do Xingu, no Pará, está causando conflitos, problemas sociais, violência, e discordância no Supremo Tribunal Federal (STF). A reserva foi estabelecida em 2007, mas a retirada de não autóctones está ocorrendo somente agora e já resultou em no mínimo uma morte. Autóctones afirmaram à CPI das ONGs que nem eles desejam a retirada dos habitantes não autóctones da região.

    A ação foi temporariamente suspensa, em 28 de novembro, por uma determinação do ministro do STF, Nunes Marques. A decisão, no entanto, foi revogada no dia seguinte pelo presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso. Ela garantiu que a desintrusão promovida pelo governo federal, que tem como finalidade tornar a área de uso exclusivo para cerca de 2500 autóctones, fosse retomada.

    Desintrusão é o nome dado para o processo que outorga aos autóctones posse e direito de uso exclusivo de áreas demarcadas por meio da expulsão à força de habitantes e lavradores não autóctones por ação de agentes do governo federal.

    Ela foi iniciada na terra indígena Apyterewa em 1º de outubro, ainda está em andamento e já gerou vários momentos de estresse. O caso mais grave ocorrido no processo foi registrado em 16 de outubro quando um confronto acabou com a morte de um homem de 37 anos, baleado por uma arma de uso da Força Nacional. O governo alega que o homem tentou tomar a arma de um agente do órgão quando teria sido acidentalmente atingido pelos disparos da arma.

    Apesar de o governo federal afirmar que os órgãos envolvidos na ação trabalham para uma saída pacífica e voluntária, a desintrusão da terra indígenas Apyterewa mostrou que o processo tem ocorrido em meio a uma série de estresse e indecisões. Mesmo após a morte do homem, o governo federal não paralisou as ações da desintrusão.

    O clima de conflito motivou a realização de uma vistoria da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Organizações Não-Governamentais (ONGs) do Senado. Na ocasião, habitantes pediram a revisão do laudo antropológico que embasou a criação da Terra Indígena, alegando que estavam nas áreas antes da delimitação da área.

    Habitantes pedem revisão de laudos antropológicos e relatam violência

    A terra indígenas Apyterewa foi homologada em 2007 e gerou conflito com habitantes não indígenas que alegam que habitavam a região antes dessa data. Para eles, os laudos antropológicos que fundamentam a demarcação devem ser revistos. O pedido foi manifestado durante uma vistoria da CPI das ONGs que foi até São Félix do Xingu para verificar a situação e ouvir a população envolvida na desintrusão na semana passada.

    Em uma audiência pública que reuniu cerca de mil pessoas, habitantes levaram cartazes com os dizeres: “Queremos perícia no laudo antropológico Apyterewa”. Os pedidos de revisão foram destacados juntamente com os casos de violência e ameaças.

    O que permite ao governo federal declarar que uma área é indígena é um laudo feito por antropólogos que afirma que uma população indígena historicamente ocupava uma região. Por vezes esses laudos se baseiam no encontro de resquícios de aldeias ou objetos usados por determinada etnia, mas são na maioria das vezes muito polêmicos.

    Do outro lado estão habitantes das regiões que dificilmente conseguem comprovar com documentos que realmente têm a propriedade das terras em que vivem.

    Em seu relato, a habitante Marcilene Frutuoso Oliveira, pediu por justiça após perder sua casa e todos os seus pertences. “Olho para a minha bandeira e vejo escrito ‘ordem e progresso’. Eu preciso ver a ordem e progresso na minha região”, relatou. A habitante também detalhou a repressão contra habitantes, com fuzis apontados para eles, pedindo que saiam de suas casas. “[Eles dizem] Vai para fora porque vocês não têm direito a nada. [E me pergunto] Onde mora a justiça nesse país? A casa de pais de família derrubada, uma mãe dormindo na rua com seus filhos”, questionou. “Hoje eu tenho esperança. Eu quero a revisão do laudo antropológico”, cobrou.

    A produtora agrícola Abadia Aparecida Mendonça também lamentou como a desintrusão está sendo realizada. “Nós estamos sendo tratados como bandidos, sendo que estamos vivendo aqui há mais de 30 anos. Eu quero pedir que olhem por nós, pois os hectares dos autóctones estão lá, estamos lutando pelos nossos. Não somos invasores; quem é invasor é a Funai, quando eles chegaram, já estávamos aqui”, relatou.

    A necessidade de revisão do laudo antropológico da terra indígenas Apyterewa já foi alvo de investigação da CPI da Funai e do Incra, ocorrida entre 2015 e 2016, na Câmara dos Deputados. Na época, deputados levantaram possíveis irregularidades na ampliação da área. Os parlamentares apontaram que, originalmente, uma reserva indígena foi criada por meio de uma portaria da Funai em 1987, com 266.800 hectares. Já em 2004, outra portaria do Ministério da Justiça ampliou a área para os atuais 773 mil hectares no processo que foi finalizado em 2007.

    A CPI da Funai e do Incra apontou ainda que nesta mesma área o Incra criou, em 1994, um assentamento de Reforma Agrária para mais de 200 famílias. O assentamento, no entanto, estaria sobreposto em áreas destinadas a terras indígenas, o que gera um caos fundiário.

    O antropólogo Edward Luz reforça o argumento de que o caso precisa ser revisto e chama as desintrusões de “reforma agrária às avessas”. “Há outras formas de conduzir esses processos. A desintrusão é a forma mais radical e a pior política pública que poderia ser adotada, pois as pessoas que são expulsas não têm como recomeçar a vida”, disse Luz.

    Para ele, uma das formas mais adequadas para resolver o problemas seria propor aos habitantes um termo de ajustamento de conduta (TAC), transformando os não autóctones em auxiliares em processos de reflorestamento e gerando renda na área por meio de agroflorestas, por exemplo.

    Conflitos foram filmados e relatados por habitantes; Governo contesta uso de força

    Os habitantes da terra indígena Apyterewa que resistiam à desintrusão afirmam ter sido expulsos de suas casas, além de terem sido privados de ir e vir e de ter acesso a alimentos enquanto o prazo de 30 dias para saída pacífica corria.

    Um dos advogados que acompanha o caso, Vinícius Borba afirma ainda que as forças de segurança não cumpriram o prazo. “Desde o dia dois de outubro, as forças de segurança confiscaram os botijões de gás daquelas pessoas, o que não constava em decisão judicial nenhuma”, afirmou Borba. Além disso, mais de 100 crianças teriam ficado sem aulas durante a desintrusão.

    “Removeram todos os equipamentos públicos daquela localidade.[…] As forças de segurança começaram a ir de casa em casa, cortar energia e internet. Fecharam os comércios, as pessoas ficaram sem comida. Também passaram a proibir a entrada de comida na localidade”, relatou o advogado.

    Em diversos momentos, habitantes filmaram a ação de agentes do governo que entravam na área com caminhões para retirar o gado criado pelos habitantes. Por outro lado, vídeos compartilhados por habitantes da área, mostram também, que as viaturas e caminhões da operação de desintrusão foram apedrejados. Além disso, habitantes montaram barricadas para impedir o acesso dos agentes do governo a algumas áreas.

    Em nota, o governo federal destaca a ação dos habitantes para impedir as determinações judiciais que envolvem o caso da morte do homem na terra indígena Apyterewa:

    “Por duas vezes no dia 16 de outubro [data em que o homem foi morto com uma armada Força Nacional] os invasores tentaram atacar os membros da operação. Durante um dos ataques, incendiaram uma tenda usada para atendimento e para o registro de não indígenas, que funciona como base para a avaliação e inclusão nos programas sociais do governo federal. Em outra tentativa, bloquearam o acesso à base da operação com troncos de madeira e atacaram os veículos com paus, pedras e até coquetéis molotov. “Esses grupos que estão ilegalmente na Terra Indígena Apyterewa tentam obstruir o cumprimento da decisão judicial já mencionada”, destaca a nota do governo.

    Um relatório apresentado pela Secretaria Geral da Presidência da República sobre a desintrusão na terra indígena Apyterewa aponta que foram realizadas 665 inspeções, sendo que 508 estruturas já foram desocupadas. Dessas, 212 já foram inutilizadas, tendo sido queimadas ou derrubadas. Houve ainda pelo menos quatro detenções, incluindo duas de líderes do movimento de resistência à desintrusão.

    Indígenas e agricultores pedem para coexistir na terra indígena

    Apesar da atmosfera de tensão gerada pela desintrusão promovida pelo governo federal, indígenas e não indígenas que participaram da audiência da CPI das ONGs falaram sobre a possibilidade de convivência na área de 773 mil hectares.

    O senador Plínio Valério (PSDB-AM), presidente da CPI das ONGs, questionou se as comunidades indígenas são a favor da remoção dos moradores. O indígena Karê Parakanã, da comunidade Parakanã, respondeu dizendo que não são favoráveis a nenhuma expulsão, afirmando que há espaço para todos na região.

    O presidente da Associação Vale do Cedro, Vicente Paulo, também se manifestou a favor da permanência dos indígenas. “Não queremos que retirem os povos indígenas de suas terras. Queremos justiça e representamos mais de 2 mil famílias”, disse o morador da área. José da Silva, representante da Associação Aprimiba, também se posicionou de maneira semelhante. “Apyterewa é muito grande, não somos contra os povos indígenas”, disse.

    Karê Parakanã entregou ainda uma garrafa de água barrenta ao presidente da CPI como evidência de que os indígenas não têm água potável e vivem “abandonados”. “Nós precisamos de estrutura dentro da nossa comunidade, precisamos de água potável, escola para as nossas crianças, saúde para todos nós. Estou aqui para falar da nossa realidade”, disse o indígena ao presidente da CPI das ONGs.

    Desintrusões visam garantir usufruto exclusivo para indígenas

    Os processos de desintrusão de terras indígenas foram intensificados no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em entrevista para o programa Voz do Brasil, no começo de outubro, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou que há pelo menos 32 terras indígenas no Brasil que poderão passar pelo processo de desintrusão. Críticos do processo dizem que ele isola os indígenas e impede que eles tenham oportunidade de desenvolver suas comunidades.

    As ações de desintrusão têm como um de seus fundamentos a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, proposta em agosto de 2020 pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) no Superior Tribunal Federal (STF). Este foi o instrumento jurídico utilizado pela Apib para garantir medidas de proteção às comunidades indígenas para conter o avanço da pandemia nos territórios indígenas. Na ação, a entidade pediu a retirada dos não indígenas das Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapo, Arariboia, Mundurucu e Trincheira Bacaja.

    De acordo com informação do Ministério dos Povos Indígenas, em 2023 ocorreram desintrusões nas terras indígenas Alto Rio Guamá (PA), Yanomami (RR) – ainda em curso – , Apyterewa (PA) e Trincheira Bacajá (PA) – também ainda ocorrendo. Essas desintrusões envolvem uma série de órgãos do governo federal, a exemplo da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Agência Brasileira de Inteligência (Abin) além da Polícia Federal e da Força Nacional.

    O caso da desintrusão da terra indígena Alto Rio Guamá também foi marcado por tensão. Lá houve destruição de escolas e unidades de saúde que haviam sido construídas pelo próprio poder público. Inúmeras famílias tiveram que retirar seus pertences de casa sem sequer saber para onde iriam, gerando um problema social para os municípios.

    Há ainda o que o Ministério dos Povos Indígenas chamou de ações pontuais e rotineiras dos órgãos públicos em terras indígenas, que não podem ser chamadas de desintrusões. É o caso de incursões do Ibama nas terras indígenas Munduruku e Vale do Javari, bem como em seus arredores, organizadas para combater ilícitos ambientais.

    Governo Lula criou comitê interministerial para tratar de desintrusões

    Com o objetivo de dar andamento nas mais de 30 desintrusões mencionadas pela ministra Sonia Guajajara, o governo Lula também criou, em setembro, o Comitê Interministerial de Desintrusão de Terras Indígenas. De acordo com o governo, o objetivo é garantir aos povos originários o direito ao usufruto exclusivo de seus territórios.

    Na análise de especialistas, no entanto, a medida traz mais insegurança jurídica para as desintrusões e pode reforçar o uso das forças de segurança nas ações. A advogada especialista em direito ambiental, Samanta Pineda criticou a criação do comitê, em entrevista para o canal Agro+, especialmente em relação ao momento em que tal medida foi publicada, antes da decisão do STF e da votação do Congresso sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas. “O poder executivo se meteu na confusão antes de termos uma finalização, ou pelo menos um direcionamento, de pra onde está indo esta discussão [sobre o marco temporal]”, disse a advogada.

    A questão levantada pela advogada Samanta, sobre o tempo em que a medida foi publicada, diz respeito aos processos de desintrusão já que, sem o marco temporal, qualquer área do país pode ser requerida por indígenas e, portanto, se tornar passível de uma desintrusão. “Quando se prepara o terreno para essa desintrusão, e quando se dá condição de executar e operacionalizar essas medidas, há uma sinalização de que é possível garantir a desocupação das áreas, mesmo que elas sejam ocupadas por produtores há décadas”, pontou a advogada.

    Além de toda a tensão envolvendo as desintrusões, o presidente do STF, ministro Barroso emitiu, no dia 9 de novembro, uma decisão que pode agravar ainda mais a situação. Na decisão, proferida no âmbito da ADPF 709, o ministro estabeleceu o prazo de 60 dias para o governo federal “expulsar invasores” das sete terras indígenas mencionadas no processo.

    Para o ministro, os planos elaborados a partir da ADPF “se mostraram insuficientes para enfrentar o problema da invasão de terras indígenas”, além de identificar “graves atrasos no cumprimento de suas determinações, especialmente em relação à desintrusão”. Na decisão, Barroso pontuou ainda que “é importante que existam previsões específicas para o sufocamento de ocupações ilegais e a destruição de equipamentos utilizados, em particular, no garimpo, na criação de gado e na pesca”.

    Tendo em vista que das sete terras indígenas relacionadas na ADPF, somente duas estão em curso, a partir da decisão de Barroso, as desintrusões das Terras Indígenas Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapo, Arariboia e Mundurucu devem iniciar até o começo de 2024 e devem ser executadas no prazo máximo de 12 meses.

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