segunda-feira, 8 julho, 2024
spot_img
Mais

    Últimos Posts

    spot_img

    Nogueira e Lima: STF e implementação da Convenção de Montreal

    No dia 25/5/2017, o Supremo Tribunal Federal, após discussões prolongadas, resolveu a questão sobre a aplicação da Convenção de Varsóvia-Montreal (decretos-lei 20.704/31 e 5.910/2006, respectivamente) ao transporte internacional aéreo de carga. Ficou estabelecido que, “conforme o artigo 178 da Constituição da República, as normas e tratados internacionais que limitam a responsabilidade das empresas aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prioridade sobre o Código de Defesa do Consumidor[1].

    Essa decisão vinculante do STF encerrou os debates acadêmicos e jurídicos sobre a supremacia do tratado em relação à lei interna e, em particular, sobre a possibilidade de limitar a compensação do cliente em caso de perda/dano à carga (como previsto no artigo 22, item 3, da Convenção de Montreal — Decreto nº 5.910/2006), com base na “regra constitucional da compensação irrestrita”, destacada na decisão do ministro Antonio Cezar Peluso, que estabeleceu a repercussão geral do assunto no Supremo [2].

    Apesar disso, em decisões recentes, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) tem adotado a interpretação de que as faturas comerciais relacionadas à carga transportada e entregues ao transportador, como documentos que fazem parte do conhecimento de embarque, são suficientes para cumprir o requisito exigido pelo item 3 do artigo 22 da convenção [3]. Isso ocorre também com base no previsto nos artigos 4º e 11 da mesma convenção, para eliminar qualquer restrição à compensação em caso de perda ou dano.[4].

    Trata-se, com o devido respeito, de uma interpretação equivocada que, de maneira indireta, busca reviver a questão já decidida pelo Supremo sobre a aplicação do limite previsto na convenção, além de, é claro, impor uma séria violação ao referido dispositivo normativo.

    Com efeito, o artigo 22, item 3, é completamente claro sobre as condições legais para isentar o transportador da responsabilidade, que são, (1) ter o valor da carga declarado no próprio conhecimento de transporte (sendo irrelevante que a fatura comercial ou os documentos fiscais o mencionem) e, cumulativamente, (2) pagar à transportadora um valor adicional como garantia de seguro para ter direito ao montante total da dívida em caso de extravio da mercadoria [5].

    Como se pode observar, o Decreto nº 5.910/2006, que incorporou a Convenção de Montreal, exige uma declaração especial do remetente, não sendo suficiente o que eventualmente conste das faturas anexadas ao contrato de transporte ou que acompanhem o conhecimento, uma vez que, caso contrário, simplesmente não haveria limite de indenização algum (dado o fato conhecido de que tais documentos sempre fundamentam o transporte, inclusive para fins alfandegários, e são sempre mencionados no conhecimento de transporte).

    Para cumprir o primeiro requisito do item 3 do artigo 22, é, portanto, essencial que exista uma declaração específica do cliente-remetente, feita com a finalidade de afastar o limite de indenização, em um campo indicado no conhecimento de transporte (= documento que representa o contrato de transporte).[6] AWB — conhecimento de transporte aéreo no transporte aéreo) [7]. É importante ressaltar que esse manifesto especial do cliente tem o propósito de distinguir de outras “declarações” ou referências incidentais ao valor da carga que possam constar do negócio de transporte (por exemplo, declaração fiscal, anotações em faturas — faturas comerciais —, notas-fiscais de entrada etc.!) [8].

    Vale acrescentar que os artigos 4 e 11 da Convenção de Montreal (que, como mencionado, também são citados em alguns dos casos anteriores do TJ-SP), não estão necessariamente relacionados com a identificação dessa declaração especial de valor. O artigo 4 se aplica no caso de não emissão do conhecimento de transporte, algo que raramente ocorre no transporte aéreo internacional de mercadorias, já que sempre há a emissão do AWB, inclusive por exigências regulatórias. Por sua vez, o artigo 11, item 1, da Convenção, apenas estabelece que o conhecimento de embarque tem a presunção das condições de transporte nele indicadas, nada mais. Ou seja, essas disposições não excluem nem restringem a regulamentação do artigo 22, 3, que obriga que o valor financeiro da mercadoria esteja devidamente escrito de forma clara e inequívoca no campo apropriado do AWB, quando esse for emitido.

    No entanto, é importante também observar que não é suficiente apenas afirmar o valor da carga no local específico do conhecimento (AWB), pois a lei exige que o cliente-expedidor também pague uma taxa adicional, semelhante a um seguro de carga[9]. Ao que nos parece, esses precedentes do tribunal de justiça estão rejeitando, da mesma forma, esse segundo requisito, sem o qual não se pode sequer considerar uma indenização completa (integral), independentemente de ser capaz ou não de identificar, diretamente ou “indiretamente”, o valor da carga em transporte.

    Resumindo, sem o cumprimento dessas duas exigências legais, caso ocorra extravio ou danos à carga durante o transporte aéreo internacional, mesmo que culpa da transportadora e seus funcionários, a indenização será limitada a 17 direitos especiais de saque por quilograma.

    Nessa linha, a 2ª Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça), no recentíssimo julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 1.289.629/SP, estabeleceu que a declaração especial deve constar no conhecimento de carga, sem a qual a responsabilidade da transportadora é limitada [10]. A 3ª Turma, em precedente da ilustre ministra Nancy Andrighi, datado de março de 2023, também alertou que a “declaração especial não deve ser confundida com outros documentos“, assim como que “aceitar documentos que não sejam a Declaração Especial de Valor seria uma interpretação ampla da Convenção de Montreal, o que poderia violar as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil” [11]. Em outras palavras, é irrelevante que o conhecimento mencione a existência de faturas e o valor da carga nelas.

    A propósito, especialmente em casos de ações regressivas de seguradoras contra as transportadoras, é necessário adotar uma interpretação objetiva do artigo 22, 3, da convenção. Isso porque, como se sabe, nesses casos, muitas vezes o cliente-expedidor prefere não declarar o valor no conhecimento— AWB —, na área designada para tal, o valor da carga e, consequentemente, também não paga o frete adicional à transportadora, optando por contratar, por motivos econômicos, um seguro “por fora”, através de uma seguradora ativa no mercado. Nessa situação, se a mercadoria vier a ser perdida ou danificada durante o transporte [12], a seguradora, embora tenha indenizado o cliente pelo valor total dos prejuízos sofridos (cumprindo, nesse caso, o contrato de seguro), ao responsabilizar a transportadora terá os mesmos direitos que seu cliente originalmente possuía (artigo 786, Código Civil) [13], e, assim, receberá apenas o limite tarifado legalmente.

    Na verdade, conforme afirmou um voto fundamentado do culto ministro Antonio Carlos Ferreira, trata-se aqui de uma questão de assumir riscos, sendo inconcebível cogitar uma indenização regressiva integral para a seguradora, fora do que a lei especifica [14]. E também é uma questão de boa-fé do cliente-embarcador, como menciona Marco Fábio Morsello, um professor eminente da Faculdade de Direito da USP e desembargador do TJ-SP, em sua obra indispensável sobre responsabilidade civil no transporte aéreo [15]; afinal, o cliente não pode pagar apenas o frete mínimo, calculado sem levar em consideração o valor real do bem (que não é declarado no conhecimento), e depois do evento danoso, decidir buscar uma indenização total (para si próprio ou regressivamente, via seguradora), como se essas regras legais não existissem!

    Portanto, em nossa opinião, não é possível atribuir ao artigo 22, item 3, da Convenção de Montreal. Qualquer compreensão ampliada, para além do seu texto manifesto e totalmente claro, segundo a qual a compensação será regularizada, inclusive nas disputas regressivas de seguradoras, a não ser que exista, simultaneamente, (1) a declaração explícita do valor da carga <em=no próprio documento de transporte, no campo/lugar/espaço designado para essa finalidade (sendo sem importância, para isso, a menção ou entrega de faturas em que conste a estimativa dos produtos); e (2) o pagamento de uma taxa adicional (quantia adicional ou suplementar) ao transportador (para fins de compensação total em caso de extravio ou danos ao objeto transportado).

    [3] “Art. 22. (…) 3. No transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o remetente tenha feito ao transportador, no momento da entrega do volume, uma declaração especial de valor da entrega no local de destino e tenha pago uma quantia suplementar, se necessário”.

    [5] Aliás, essa norma, embora estipulada no acordo internacional, nunca foi uma novidade no sistema brasileiro de transporte, como se pode perceber, por exemplo, pelo artigo 750 do Código Civil e pelo artigo 262 da Lei nº 7.565/86, cujos preceitos são parecidos. Na verdade, qualquer indivíduo que já tenha se mudado sabe disso, quando precisa preencher o campo do formulário da empresa de transporte em que é possível declarar o valor dos objetos a serem transportados, para que seja calculado o seguro caso haja danos. Se não declarar o valor, não receberá uma compensação adequada caso o funcionário da empresa quebre o lustre, a geladeira, as taças de cristal ou qualquer outra coisa!

    [8] Além disso, trata-se de uma interpretação evidente, pois qualquer pessoa pode conhecer o valor de um objeto ou sua estimativa (por exemplo, 1 kg de ouro, a camisa 10 que o Pelé usou na Copa, etc.), mas não é permitido impor à empresa de transporte uma indenização total por extravio da mercadoria, se o cliente não fez nada para garantir uma indenização completa, indicando (= declarando) o valor do objeto transportado no documento de transporte e pagando a tarifa adicional correspondente (conforme o artigo 22, parágrafo 3, da Convenção).

    Antonio de Pádua Soubhie Nogueira é advogado em São Paulo e Brasília, mestre e doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), relator do Tribunal de Ética e Disciplina III da OAB-SP desde 2010, associado efetivo do Iasp e ex-presidente da sua Comissão de Direito Processual Civil e sócio titular de Antonio de Pádua Soubhie Nogueira Advocacia.

    Jorge Oliveira Lacerda de Lima é advogado em São Paulo, especialista em Direito Processual Civil pela Aasp-USP e sócio de Antonio de Pádua Soubhie Nogueira Advocacia.

    spot_img

    Últimas Postagens

    spot_img

    Não perca

    Brasília
    céu limpo
    11.5 ° C
    11.5 °
    11.5 °
    82 %
    0.5kmh
    0 %
    seg
    28 °
    ter
    29 °
    qua
    30 °
    qui
    29 °
    sex
    28 °

    18.118.122.158
    Você não pode copiar o conteúdo desta página!