segunda-feira, 8 julho, 2024
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    O Direito da Previdência segue em círculos em busca de definições ideais



    Reflexão

    “Quando se caminha em círculos, não se é suficientemente veloz”. Recebi esse ensinamento do mestre Humberto Gessinger. Isso se aplica ao Direito — e também ao Direito Previdenciário. Seguimos em círculos, transformando interpretações de conceitos em critérios ou “conceitos sem substância” — é sobre isso o nosso artigo de hoje.[1]

    De acordo com Ronald Dworkin, o conceito é o tronco da árvore. As pessoas concordam com relação ao tronco da árvore, mas discordam com relação aos galhos, ou seja: algumas aplicações periféricas. As concepções são os galhos da árvore. O artigo 193 da CLT oferece uma previsão parcial do que sejam atividades perigosas. Apesar das discordâncias em relação à interpretação correta do que o conceito de periculosidade significa para o vigilante, a jurisprudência previdenciária reconhece as consequências do risco, que existe apesar da arma de fogo, e não por causa dela. Além disso, o perigo acentuado gera um estresse mental (desgaste psicológico) no trabalhador. Essa é uma conquista hermenêutica! No entanto, ainda somos vítimas do “enigma semântico”[1], pois muitas vezes não conseguimos enxergar além dos critérios padrões de caracterização do labor especial.

    A doutrina trata os conceitos, como há muito denuncia o professor Lenio Streck, como se fossem critérios, ou seja, como se tivessem seus significados previamente fixados por critérios de convenção semântica.[2] Assim, por exemplo, nos manuais vamos encontrar que a “permanência” é a exposição do trabalhador a agentes nocivos de forma não eventual nem intermitente. Genial! Qualquer um poderia ter escrito um manual que reproduz textualmente o que está na lei! E mais, aquele que ler o manual vai saber tanto quanto quem o escreveu!

    Esse texto é superficial e, quando levado às últimas consequências, pode ir contra a finalidade do benefício da aposentadoria especial. Ele impede a compreensão das coisas. O conceito de permanência não pode ser lido como “não houve suspensão aos agentes nocivos” (por um instante sequer). Acontece que, dependendo do agente nocivo, a exposição durante uma fração de segundos, todos os dias (e aqui devemos considerar a profissiografia), coloca em risco a saúde e/ou integridade física do trabalhador, como no caso de agentes biológicos ou eletricidade. Em poucas palavras, o tempo de exposição ultrapassa os limites que desafiam a capacidade do trabalhador permanecer em segurança e/ou ficar livre de algum evento indesejado, sendo real o risco de contaminação e/ou qualquer outro prejuízo à saúde. E isso porque trabalhamos com o risco de dano.[3] No julgamento REsp 1578404/PR, o ministro Napoleão Nunes Maia compreendeu o nosso apelo:

    8. Seguindo os ensinamentos do Professor Lenio Streck, o também jurista Professor Diego Henrique Schuster, afirma que tanto na legislação como na jurisprudência previdenciária já se superou o pleonasmo habitual e permanente, não ocasional e nem intermitente, esclarecendo que a permanência não pode significar exposição durante toda a jornada de trabalho. O que importa, destaca o autor, é a natureza do risco, sua intensidade, concentração inerente à atividade pelo qual o trabalhador está obrigatoriamente exposto e capaz de ocasionar prejuízo à saúde ou à integridade física (SCHUSTER, Diego Henrique. Direito Previdenciário do Inimigo: um discurso sobre um direito de exceção. Porto Alegre, 2019)

    Qual o problema, objeto da nossa crítica? O problema reside no fato de tentarmos, primeiro, definir as coisas e, depois, aplicá-las por subordinação. Transformamos os critérios em obstáculos, e não condição de possibilidade — como parte da aplicação do direito. É claro que precisamos de critérios seguros e controláveis, porém, não podemos nos perder neles. Além disso, existem limites semânticos. Lenio Streck explica: “É claro que conceitos e coisasnão estão aderidos. Igualmente, não são dispostos de forma que o intérprete possa atribuir qualquer conceituação à coisa. Ao deparar-se com um texto, o intérprete já antecipa um significado. Mesmo ao mencionarmos o Código de Hamurabi, estaremos de alguma forma atribuindo um sentido a algo. No contexto da interpretação do direito, isso implica dizer que não há texto sem norma, nem norma sem texto” [4]

    .

    Querem identificar onde reside a questão? A aplicação do direito abrange não apenas os aspectos linguísticos da declaração normativa, mas também os elementos não linguísticos, ou seja, o recorte da realidade social. Esse recorte pode modificar o sentido de tudo. Afinal, “como a norma resulta sempre da interpretação do texto e considerando que este não é apenas uma manifestação linguística, mas sim um acontecimento, o sentido atribuído ao caso é a síntese hermenêutica, que tem na diferença ontológica a sua condição de possibilidade” [5].

    A norma jurídica não é previamente existente, não é abstrata e só deve ser entendida “quando problematizada diante do caso concreto no qual será aplicada após complexa atividade interpretativa que envolve a combinação do programa normativo e do âmbito normativo. A interpretação, compreensão e aplicação da norma jurídica são atos que ocorrem simultaneamente diante da problematização de um caso concreto” [6]. Por isso, é inadequado afirmar que primeiro se decide para depois buscar o fundamento da decisão: tal conduta constitui, na verdade, arbitrariedade do intérprete [7]. A interpretação e a aplicação ocorrem simultaneamente, o chamado “círculo hermenêutico”. “Não pensem num bambolê jogado ao chão. Imaginem uma espiral de caderno, onde o fim de cada volta não significa a volta ao início” (HG).

    Isso justifica, por vezes, a equivocada aplicação da Súmula 343/STF. Não é apenas a indeterminação de significado de alguns termos contidos na norma que acarreta problemas de interpretação, mas cada uma das diferentes situações concretas — que modifica o significado da norma. Na relação texto-contexto, o sentido da declaração poderá ser diametralmente oposto: “Warat usava o seguinte exemplo para demonstrar esse viés pragmático que a filosofia da linguagem ordinária trouxe ao direito: ‘é proibido fazer (ou usar) topless na praia’ pode ter um sentido diametralmente oposto se o enunciado se referir à praia de Ipanema ou de nudismo. Wittgenstein, em sua segunda fase (Investigações Filosóficas), demonstrou que é o contexto de uso que dá sentido às palavras. E isso foi muito útil, embora não suficiente, para a construção de uma crítica à teoria tradicional do direito” [8].

    A condução frente a agentes biológicos e periculosidade
    Haver respostas diametralmente opostas entre si — partindo do mesmo enunciado, contudo, situações diferentes — não significa existirem múltiplas respostas, tampouco interpretação controvertida sobre o mesmo texto legal, mas uma resposta apropriada para o caso concreto.

    Mas retornando ao conceito de permanência. Os agentes periculosidade e biológicos, por exemplo, demandam do julgador uma conduta diferenciada, ou seja: voltada para as consequências do risco. Isso porque não se aplica a eles a média ponderada, ou seja, não se exige a exposição prolongada. Na média ponderada no tempo, o foco está nas enfermidades com longos períodos de latência. Nesse sentido, a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região afirma: “a exposição a agentes biológicos não exige permanência para caracterizar a insalubridade do trabalho, sendo possível o cômputo do tempo de serviço especial pelo risco de contágio iminente”. Pertinente a transcrição do seguinte trecho:

    O risco biológico corresponde à possibilidade de exposição ocupacional a agentes biológicos, de modo que o contato com tais agentes não necessita ser permanente para caracterizar a insalubridade do trabalho, sendo possível o cômputo do tempo de serviço especial diante do risco de contágio sempre presente.

    NesseNo que se refere ao grau de concentração dos agentes biológicos, não é preciso realizar avaliação. O pensamento difere do que geralmente é feito para exposição a outros agentes, já que não há “acúmulo” da exposição prejudicando a saúde, mas sim a possibilidade de contaminação. A avaliação da nocividade, portanto, é qualitativa [9].

    No caso dos agentes biológicos, o conceito de habitualidade e permanência difere daquele utilizado para outros agentes nocivos, pois a proteção não está relacionada ao tempo de exposição (causador do eventual dano), mas sim ao risco à integridade física. No caso do risco, não se trata de desgaste físico ou danos resultantes do tempo de trabalho, mas sim da probabilidade de ocorrência de um evento indesejado (por exemplo, acidente), cuja magnitude pode ser grave ou irreversível [11]. Isso porque o risco pode ser percebido a partir do binômio probabilidade/magnitude, objeto central do livro “Aposentadoria Especial: entre o Princípio da Precaução e o Princípio da Proteção Social” [12].

    A probabilidade é uma demonstração racional prognóstica; ou seja, uma suposição quanto a resultados futuros, baseada em eventos e situações já experimentadas (ou não), com um alto grau de consenso acerca de sua ocorrência. Délton Winter de Carvalho [13] é quem melhor analisou a ficção operacional representada pela probabilidade: “a probabilidade consiste num critério de racionalização das incertezas descritivas que marcaram os processos de decisão tomados no presente, porém, orientados ao futuro, cujo escopo consiste em produzir uma comunicação de risco a fim de evitar a ocorrência de danos indesejados no futuro”.

    O significado da magnitude
    Por outro lado, a magnitude traduz o potencial lesivo de uma determinada atividade, conduta ou produto; estando, portanto, relacionada com a intensidade do impacto futuro e com a profundidade da lesão dos valores protegidos [14]. Neste diapasão, o elemento irreversibilidade humana (constatação da impossibilidade de se poder voltar ao passado) pode desenvolver um papel importante na análise das atividades perigosas, assim como a vulnerabilidade. Assim, mesmo sendo baixa a probabilidade de o risco se concretizar em dano, devem se pesar as consequências. Niklas Luhmann [15] exemplifica: “a obtenção de energia nuclear é um risco, embora possamos partir de que somente a cada mil anos ocorre um acidente grave (sem que, não obstante, saibamos quando). O fundamental nesta questão é o grau de sensibilidade em relação às probabilidades e à magnitude dos danos, isto é, as construções sociais sujeitas a influências temporais”.

    Esse entendimento já foi amplamente internalizado pela jurisprudência previdenciária. Tanto é assim que a Turma Nacional de Uniformização, no julgamento dos Temas 210 e 211, fixou as seguintes teses:

    “Para aplicação do art. 57, § 3º, da Lei 8.213/91 à tensão elétrica superior a 250 v, exige-se a probabilidade da exposição ocupacional, avaliando-se, de acordo com a profissiografia, o seu caráter indissociável da produção do bem ou da prestação do serviço, independentemente do tempo mínimo de exposição durante a jornada;”

    “Para aplicação do art. 57, § 3º, da Lei 8.213/91 a agentes biológicos, exige-se a probabilidade da exposição ocupacional, avaliando-se, de acordo com a profissiografia, o seu caráter indissociável da produção do bem ou da prestação do serviço, independentemente do tempo mínimo de exposição durante a jornada.”

    Desse modo, é suficiente a probabilidade de um evento indesejado (contaminação ou eletrocussão), baseada em eventos e situações já experimentadas, com um alto grau de consenso acerca de sua ocorrência, para que, em comparação a trabalhadores que exerceram suas atividades em ambientes livres de agentes nocivos, justifique a necessidade de um tratamento diferenciado. A quantificação desse tempo ou seu agrupamento em categorias, isto é, por meio de análises matemáticas (por exemplo:40%, 50%, 60% do período de trabalho), representa uma ilusão inocente da modernidade. Qualquer tentativa de estabelecer um limite pode levar à ocultação de diversas outras reais possibilidades.

    Em última análise, a noção de continuidade não pode ser medida de forma precisa. Portanto, não adianta o magistrado examinar de maneira lexicográfica os conceitos de costume e continuidade. O que é necessário é que a exposição esteja intrinsicamente ligada à atividade — ou a alguma delas — desempenhada diariamente, com subordinação. Tanto é que na I Jornada de Direito da Seguridade Social foi aprovado o seguinte enunciado: “a exposição permanente (não ocasional e nem intermitente) está relacionada à atividade (profissiografia) do segurado e não é necessário que essa informação conste, expressamente, no PPP”.

    No plano abstrato, são criados, como já vi o professor Lenio Streck dizer, “conceitos sem coisa”. O conceito de “permanência” foi transformado num “conceito sem coisa”, ou seja: quando aplicado, por subsunção, a qualquer agente nocivo, sem qualquer problematização do caso concreto. Antes de tudo, o conceito de permanência implica reconhecer uma promessa de cuidado — não se descreve o conceito sem compreender para que serve a aposentadoria especial! Outro exemplo de “conceito sem coisa” é a Súmula 71/TNU. Qual a importância, no plano da fundamentação das decisões judiciais, da citação do enunciado “o mero contato do pedreiro com o cimento não caracteriza condição especial de trabalho para fins previdenciários”, senão fazer deduções e, com isto, deixar de lado a especificidade do caso?

    Concordo com o professor Lenio Streck: “não existem ‘casos’ em abstrato, por isso, a inviabilidade de construção de discursos prévios de justificação”. Infelizmente, o caso concreto vem disputando espaço com frases feitas, elaboradas a partir de um discurso prévio (no abstrato), ou seja, longe da realidade.

    Bah1: Ver em DWORKIN, Ronald. Law1s Empire. Cambridge: The Balcnap Press, 1986.

    Bah2: Recentemente: STRECK, Lenio Luiz. Obstáculos epistemológicos dificultam a compreensão do ‘caso Daniel’. In: Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 04 mar. 2021. Disponível em: < Acesso em 28 jun. 2022.

    Bah3: SCHUSTER, Diego Henrique. Aposentadoria especial e a nova previdência: os caminhos do direito (processual) previdenciário. 2.ed. Curitiba: Alteridade, 2022.

    Bah4: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 23.

    Bah5: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 148, 225 e 239.

    Bah6: CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Coisa julgada & questões prejudiciais: limites objetivos e subjetivos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 47.

    Bah7: ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicia: o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: RT, 2014, p. 67.

    Bah8 STRECK, Lenio Luiz. A relação “texto e norma” e a alografia do Direito. Revista Novos Estudos Jurídicos — Eletrônica, [s. l.], v. 19, n. 1, p. 2–20, jan.–abr. 2014. DOI: 10.14210/nej. v. 19. n1.p2-20.

    Bah9: TRF4 5033602-88.2018.4.04.9999, QUINTA TURMA, Relator ALEXANDRE GONÇALVES LIPPEL, juntado aos autos em 08/12/2023.

    Bah10: TRF4 5023371-02.2018.4.04.9999, QUINTA TURMA, Relatora GISELE LEMKE, juntado aos autos em 07/05/2020.

    Bah11: Um exemplo de risco grave e iminente são as exposições superiores ao valor máximo descrito no anexo 11 da NR-15.

    Bah12: É importante esclarecer que os termos “probabilidade” e “magnitude” apareceram de forma inédita na doutrina brasileira e mundial a partir do livro “Dano ambiental futuro”.

    Bah13: CARVALHO, Délton Winter de. Aspectos probatórios do dano ambiental futuro: uma análise sobre a construção probatória da ilicitude dos riscos ambientais. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; CALLEGARI, André Luís (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS – mestrado e doutorado, n. 8. Porto Alegre: Liv. do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2011. p. 96.

    Bah14: ARAGÃO, Alexandra. Princípio da Precaução: manual de instruções. Revista do CDOUA, n. 22, ano XI, 2008. p. 30.

    Bah15: LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. Universidad de Guadalajara, 1992. p. 147.

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