domingo, 7 julho, 2024
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    O rapto internacional de menores por um dos progenitores

    A Carta Magna [1] estipula que o Estado possui a obrigação de resguardar os menores em todas as esferas possíveis. Quando os direitos da criança ou adolescente são ameaçados por um de seus próprios progenitores, o papel de proteção do Estado se torna ainda mais crucial.

    No mundo contemporâneo, no qual as relações interpessoais frequentemente extrapolam limites territoriais, é cada vez mais comum a formação de casais com membros de nações distintas, os quais se veem compelidos a escolher entre uma das nações — ou até mesmo uma terceira — para estabelecer residência, ter filhos e criá-los.

    São situações em que inevitavelmente ao menos um dos membros do relacionamento tem que deixar seu país e sua cultura para se estabelecer com sua família em uma nova nação, onde será então estabelecida a residência usual dos membros desta família.

    Quando ocorrem separações ou divórcios nas famílias assim descritas, verifica-se uma situação recorrente: a retirada de menores do país em que residem por um dos progenitores (“genitor que leva”) para estabelecer domicílio em país diferente (“Estado de desembarque)” à revelia do outro progenitor (“genitor deixado para trás”), seja por este não ter sido consultado previamente, seja por ter negado autorização para tanto (situação mais grave, pois a viagem terá sido clandestina, longe dos controles oficiais de imigração).

    Muitas vezes, com o término do relacionamento amoroso ou mesmo antes disso — em meio a uma crise conjugal, por exemplo —, o progenitor estrangeiro que se estabeleceu em outro país em prol de sua família decide retornar ao seu país de origem e levar os filhos consigo, à revelia do outro progenitor.

    Trata-se em geral de uma forma — ilícita — de tentar fazer justiça com as próprias mãos, o que pode ocorrer pelos mais variados motivos. Por exemplo, por temer que o Poder Judiciário não lhe autorizará mudar do país de residência usual com os filhos, ou por não querer ou não poder esperar uma decisão judicial favorável a isso.

    Essa espécie de situação levou diversos países a se unirem para celebrar a “Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Menores” (Convenção da Haia), concluída na cidade de Haia em 25 de outubro de 1980 e promulgada no Brasil somente em 14 de abril de 2000, pelo Decreto nº 3.413. O Brasil e outros 111 países, incluindo os Estados Unidos, Itália, França, Alemanha, Japão e Israel, são signatários da Convenção [2].

    O objetivo do tratado internacional é proteger os menores dos possíveis efeitos prejudiciais resultantes de mudança de residência ou retenção ilícitas, por meio do estabelecimento de procedimentos para garantir uma efetiva cooperação internacional para o rápido retorno das crianças ou adolescentes às suas residências ou para assegurar os direitos de guarda e visita existentes em um Estado signatário.

    Daí seu artigo 12 prever: “Quando uma criança tiver sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3 e tenha decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da transferência ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o retorno imediato da criança”.

    Apesar de o foco da convenção ser a proteção dos interesses dos menores, ela tem importância crucial na defesa dos interesses do progenitor que se vê súbita e ilicitamente privado do convívio com seus filhos por ato do outro progenitor. Essa situação é agravada, em geral, pelas grandes distâncias existentes entre as nações da residência usual e do Estado de desembarque e todas as dificuldades que a situação impõe.

    Caracteriza-se o rapto internacional com a retirada da criança ou sua retenção em outro país quando houver violação ao direito de guarda, visitas, e/ou ao direito de um dos progenitores de decidir sobre o local de residência da criança, desde que esta retirada ou retenção seja considerada ilícita pelas leis vigentes no país de residência usual da criança.

    A Convenção da Haia não estabeleceu critérios para determinar a residência usual, o que permite certa subjetividade na avaliação do tempo necessário para caracterizá-la em cada caso. Cartilha disponibilizada na página do Ministério da Justiça na internet afirma que, “ainda que residindo por pouco tempo (meses, por exemplo), a residência habitual da criança no país de onde ela foi abruptamente removida estará configurada se esta, dentre outros elementos, frequentava a escola, creche, possuía residência fixa”. Parece-nos um bom critério.

    De outro lado, de acordo com o artigo 16[3] da Convenção da Haia, compete exclusivamente ao Estado de residência usual do menor tratar de questões de fundo do direito de guarda, e ao Estado de desembarque, cuidar da decisão sobre o retorno da criança para o local em que vivia em momento imediatamente anterior à transferência ou retenção ilícita.

    Dessa forma, por exemplo, se a criança é levada do Brasil, local de sua residência usual, para outro país ilicitamente, será vedada ao magistrado estrangeiro a tomada de qualquer decisão sobre a guarda relativa à criança. Da mesma forma, ao magistrado brasileiro será vedado tomar qualquer decisão relativa à guarda da criança trazida ilicitamente do exterior se este for o local da residência usual desta.

    No mesmo sentido, o artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[4] estabelece que “a lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família”, ao passo que seu § 7º dispõe que “salvo o caso de abandono, o domicílio do chefe da família estende-se ao outro cônjuge e aos filhos não emancipados, e o do tutor ou curador aos incapazes sob sua guarda”.

    Portanto, tanto a legislação original brasileira como a Convenção da Haia são claras no sentido de que a jurisdição competente para tratar de questões relativas à guarda de menores é sempre aquela da residência usual da criança antes de sua subtração.

    Nádia de Araújo ensina[5]:

    A meta da Convenção sobre os aspectos civis do rapto de menores é restabelecer a situação anterior à subtração ou retenção, de forma rápida e desburocratizada. Possui regras sobre a determinação da ilicitude da retirada ou retenção do menor, sob a égide da lei da residência usual, e às exceções possíveis ao retorno. Também estabelece normas para a cooperação administrativa, levada a cabo por autoridades centrais previamente designadas, e que estão em constante comunicação para atingir os objetivos do tratado […].

    A Convenção não cuida de nenhum aspecto relativo à guarda, ou seja, somente na volta da criança a situação relativa à guarda será objeto de decisão pelo juiz da residência usual do menor.”

    Apesar de a Convenção da Haia buscar assegurar o imediato retorno da criança subtraída ao país de sua residência usual, de preferência de forma amigável, seus artigos 12 e 13 estabelecem exceções a esta regra: se houver transcorrido mais de um ano da retirada ou retenção, no momento do recebimento do pedido, e ficar provado, perante as autoridades judiciais do Estado de desembarque, que a criança já se encontra adaptada ao seu novo meio; ou restar cabalmente comprovada a ocorrência real de um risco grave de a criança ou adolescente, no seu retorno, ficar exposto a riscos de natureza física ou mental, ou em outra situação insuportável; ou quando a própria criança se opuser à volta e, devido à sua idade e maturidade, a autoridade judicial se convencer de que sua opinião foi expressa de maneira livre e imparcial; ou ainda, se ficar comprovado que a pessoa responsável pela criança não estava exercendo efetivamente o direito de guarda no momento da transferência ou retenção, ou que posteriormente consentiu ou concordou com essa transferência ou retenção.

    Essas exceções devem ser examinadas pelo Poder Judiciário e aplicadas de forma restritiva, com muita prudência, e de modo a evitar que o genitor subtrator se beneficie de sua própria conduta reprovável. O padrão é o retorno imediato, para que a discussão principal sobre a guarda ocorra no país de residência habitual.

    Portanto, se houver resistência do genitor subtrator e a consequente necessidade de ação judicial para exigir a busca, apreensão e restituição do menor, o Poder Judiciário não deve iniciar, espontaneamente, uma investigação aprofundada para verificar a eventual existência de hipóteses que excepcionem a regra do retorno imediato, sob pena de a demora na resolução do caso criar situações ainda mais prejudiciais aos interesses da criança.

    De acordo com a Convenção da Haia, os artigos 84 e 85 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) abordam a exigência de consentimento de ambos os pais para viagens internacionais de menores de 16 anos, a qual só é dispensada se: a criança ou o adolescente estiver acompanhado por ambos os pais ou responsáveis, ou se o menor estiver viajando com um dos pais, expressamente autorizado pelo outro por meio de documento com firma reconhecida (por autenticidade ou semelhança).

    O Conselho Nacional da Justiça emitiu a Resolução nº 131 [6], de 26 de maio de 2011, para padronizar a interpretação desses dispositivos do ECA e regulamentar a concessão de autorização de viagem ao exterior para crianças e adolescentes brasileiros.

    É altamente recomendável que essa autorização tenha uma data de validade, pois é comum que o genitor estrangeiro use uma autorização válida para sair do Brasil com os menores de forma legal, sob o pretexto de férias ou visita a parentes, por exemplo, mas não retorne com eles após o período combinado com o outro genitor. Caso a autorização não contenha prazo de validade, ela será válida por dois anos, o que pode dificultar ou até impossibilitar o acionamento dos procedimentos para exigir o retorno imediato dos menores.

    Se o prazo da autorização expirar sem que os menores retornem ao Brasil, configura-se o sequestro internacional, conforme o artigo 3[7] da Convenção de Haia, o que dá ao genitor deixado para trás o direito de requerer a adoção dos procedimentos administrativos para exigir o retorno de seus filhos ao Brasil.

    A partir desse momento, diversos órgãos governamentais passam a agir para garantir a absoluta cooperação entre o Brasil e o país signatário da Convenção de Haia para onde o menor foi levado (ou de onde ele foi trazido ilicitamente ao Brasil, no caso inverso), com o objetivo de garantir o rápido retorno da criança e/ou do adolescente ao seu lar habitual. No Brasil, essa função é desempenhada pela Autoridade Central Administrativa Federal (Acaf), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

    Vale ressaltar que, uma vez iniciados os trâmites administrativos, a missão de devolver o menor subtraído deixa de ser exclusivamente pessoal e se torna uma obrigação de direito internacional privado dos países envolvidos, especialmente do país em que a criança se encontra ilicitamente.

    Portanto, se não for possível obter extrajudicialmente o retorno de um menor retido ilegalmente no Brasil e trazido do exterior, apesar dos esforços das autoridades centrais de cada país, a União, por meio da Advocacia Geral da União (AGU), tem competência para ingressar com ação judicial de busca, apreensão e restituição da criança a seu país de residência habitual. Nesse caso, o processo será conduzido pela Justiça Federal.

    Nesta época de férias escolares e festividades de fim de ano, quando as viagens internacionais envolvendo crianças de casais de nacionalidades diferentes se intensificam, a Convenção de Haia tem uma aplicação importante.

    _____

    Notas
    [1]Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de protegê-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

    [2] HCCH | Membros da HCCH.

    [3] Artigo 16: “Depois de terem sido informadas da transferência ou retenção ilícitas de uma criança nos termos do Artigo 3, as autoridades judiciais ou administrativas do Estado Contratante para onde a criança tenha sido levada ou onde esteja retida não poderão tomar decisões sobre o fundo do direito de guarda sem que fique determinado não estarem reunidas as condições previstas na presente Convenção para o retorno da criança ou sem que haja transcorrido um período razoável de tempo sem que seja apresentado pedido de aplicação da presente Convenção.

    [4]Decreto -lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.

    [5] NÁDIA DE ARAÚJO: O

    [6] atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=116

    [7]Artigo 3: A transferência ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando: a) tenha havido violação a direito de guarda atribuído a pessoa ou a instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tivesse sua residência habitual imediatamente antes de sua transferência ou da sua retenção; e b) esse direito estivesse sendo exercido de maneira efetiva, individual ou em conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou devesse está-lo sendo se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.

    O direito de guarda referido na alínea a) pode resultar de uma atribuição de pleno direito, de uma decisão judicial ou administrativa ou de um acordo vigente segundo o direito desse Estado”.

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