segunda-feira, 1 julho, 2024
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    Oportunidade de acordos judiciais no contexto de ações civis públicas



    Opinião

    Com a consolidação cada vez mais clara do “sistema multiportas” dentro da tramitação judicial brasileira [1], muito se tem debatido sobre a possibilidade da realização de acordos no contexto do processo coletivo.

    Um dos principais pontos de discordância diz respeito à definição da extensão em que o conhecido princípio da indisponibilidade do interesse público impacta na diversidade de caminhos viáveis para a resolução de conflitos envolvendo o poder público — o que se intensifica ainda mais quando a discussão envolve a proteção de direitos que atingem um grupo de pessoas (tipicamente defendidos no contexto de ações civis públicas).

    Apesar de ser inquestionável que a concordância administrativa esteja cada vez mais presente no Direito brasileiro, inclusive com a previsão de normas específicas que autorizam a administração pública a recorrer a métodos alternativos de resolução de disputas [2], ainda se percebe que tal tendência costuma restringir-se principalmente às questões financeiras [3].

    Nas disputas coletivas, por outro lado, verifica-se ainda forte predominância da ligação automática entre “indisponibilidade” e “inafiançabilidade” — o que, em muitos casos, resulta na falta de proteção adequada e até na perda do direito que se busca garantir no contexto de uma ação civil pública.

    Diante disso, parte da literatura jurídica nacional, visando à efetivação da concordância também no processo coletivo [4], inspirada na experiência do common law [5], tem apresentado alternativas para a realização de acordos nas demandas coletivas que tratam de direitos que atingem um grupo de pessoas — sempre com a devida segurança jurídica e adequação ao interesse público.

    Apesar de ser justificada a inafiançabilidade nas demandas coletivas por demandar um tratamento mais cuidadoso dos direitos que atingem um grupo de pessoas, é exatamente esse cuidado específico que, inversamente, resulta na impossibilidade de se afirmar sua indisponibilidade de forma automática (e, consequentemente, na inaceitabilidade de submissão à negociação, mediação ou conciliação que eventualmente levem à sua transação), sob risco de comprometer a sua efetiva proteção.

    Dessa forma, desde que pensados a partir de técnicas e normas que visem ao efetivo atendimento do interesse público, eventuais acordos (inclusive judiciais) podem (e devem) ser utilizados em demandas coletivas. Por exemplo: mediante a ampliação da participação popular e a busca de soluções “ganha/ganha” para todos os envolvidos.

    Autocomposição em demanda coletiva e homologação judicial fundamentada

    Um dos exemplos marcantes que ilustra essa ideia refere-se ao acordo firmado entre o Ministério Público, a Defensoria Pública e o estado de Minas Gerais com a Vale S.A. na demanda ambiental envolvendo o rompimento da barragem I em Brumadinho/MG, celebrado e homologado em fevereiro de 2021.

    A autocomposição, nesse caso, foi caracterizada por uma série de sessões de mediação e reuniões preparatórias, as quais foram essenciais para estabelecer o diálogo entre os interessados e a própria comunidade.

    Com isso, o acordo realizado pôde resultar na elaboração conjunta de uma estrutura completa voltada à reparação socioambiental e socioeconômica, com o detalhamento de programas e projetos, disposições sobre auditorias independentes e garantias financeiras, previsão de eventuais penalidades, modo de quitação,dentre outros pontos [6] — o que representou, sem questionamentos, uma solução muito mais rápida e apropriada para o mencionado caso, atendendo ao critério finalístico “agilidade-eficácia” que é próprio do processo coletivo [7].

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    Da experiência prática tem-se a visão de que a ampliação da possibilidade de realização de acordos no âmbito de demandas coletivas pode ser extremamente favorável. Por sua vez, essa ampliação requer, sem questionamentos, a adoção de uma lógica diferenciada para a homologação desses acordos (que priorize não apenas o preenchimento dos requisitos de validade, mas uma avaliação eficaz e substancial).

    Assim, a chamada homologação judicial fundamentada, apropriada e substancial pode ser um ponto central neste debate. Uma intervenção judicial “final” que, para além de requisitos formais e procedimentais, faça também um juízo de valor fundamentado sobre o atendimento ao interesse público, pode equilibrar a balança entre a precaução necessária no tratamento de direitos transindividuais e a otimização procedimental do cumprimento dos critérios finalísticos da contenda (como no próprio caso da Vale S.A.).

    Diante da limitada experiência nacional no assunto, a inspiração do common law oferece um bom norte inicial para o Direito brasileiro [8]. Nas “class actions”, a aprovação judicial de acordos está condicionada à verificação dos critérios de “justiça, razoabilidade e adequação”, o que pode ser devidamente adaptado para o modelo brasileiro, considerando a necessidade de que se estabeleçam parâmetros gerais cuja análise pode variar conforme o melhor interesse público envolvido no caso concreto.[9]

    Embora não se desconsidere que os conceitos de justiça, razoabilidade e adequação sejam dotados de um grau considerável de abstração, tal aspecto subjetivo, inclusive, pode ser aproveitado para garantir que o julgador analise e justifique a multiplicidade de fatores envolvidos em conflitos tão complexos como os submetidos às ações civis públicas, sempre à luz do atendimento do interesse público.

    Em paralelo, exportando-se a ideia para o Direito brasileiro, a justificação desses conceitos no caso concreto pode (e deve) se valer de técnicas de fundamentação judicial já consagradas na processualística brasileira, como a ponderação (artigo 489, §2º, CPC) e a consideração das consequências práticas da decisão quando forem utilizados valores jurídicos abstratos (artigo 20, Lindb) [10].

    Dúvidas sobre o papel da intervenção jurisdicional

    Inobstante o caminho que se pretende seguir, fato é que, conforme a temática vai se tornando cada vez mais frequente na pauta do Poder Judiciário brasileiro, diversas questões despontam. É dizer, tal cenário acarreta fundadas dúvidas a respeito de qual seria precisamente o papel da intervenção jurisdicional diante de propostas de acordos nas demandas coletivas já instauradas.

    Por exemplo, algumas das questões que poderiam ser debatidas consistem nas seguintes:
    a) a homologação da proposta de acordo seria obrigatória para dar-lhe validade e eficácia?
    b) a intervenção judicial deveria ser mais ativa e vertical, no sentido de um verdadeiro escrutínio a respeito do próprio mérito do acordo coletivo, em prol da defesa dos interesses dos membros do grupo tutelado?
    c) os critérios para a análise judicial chancelatória dos acordos coletivos seriam similares ou idênticos àqueles já seguidos pelo sistema de justiça nas demandas individuais?
    d) é possível falar em uma eficácia erga-omnes na homologação

    Em quais acordos mencionados?

    A finalidade do debate sobre essas questões apresenta aspectos favoráveis, levando em consideração a urgência da execução dessas técnicas de maneira legítima e segura pelo poder público.

    Dessa forma, apesar de ainda estarem em processo de construção tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência nacional, essas e outras soluções parecem caminhar para a aceitação da autocomposição no âmbito do processo coletivo como uma alternativa viável para potencializar a efetivação dos direitos transindividuais. Especialmente se considerarmos a capacidade de superar várias das dificuldades próprias da tutela de direitos coletivos, dependendo do contexto específico.

    De fato, além da validação judicial embasada, apropriada e substantiva ter um grande potencial para legitimar a adoção desses caminhos, ela também parece viabilizar que o princípio da consensualidade seja efetivamente incorporado à dinâmica do processo coletivo, sem que seja necessário abrir mão da aprovação do mérito do Poder Judiciário, que, em última instância, busca, ao menos em teoria, um propósito comum: garantir a obtenção de soluções justas, eficazes e adequadas à situação concreta.

    [1] A adequação do sistema processual brasileiro aos princípios e garantias da Constituição Federal é uma das mais relevantes inovações do Código de Processo Civil de 2015. Buscando harmonizar-se às normas constitucionais – sobretudo aos princípios do amplo acesso à justiça, da razoável duração do processo, da eficiência e do contraditório -, o CPC de 2015 alinha-se ao moderno conceito de Justiça Multiportas. Para além da via tradicional do processo judicial, o CPC estimula a utilização de métodos de solução consensual de conflitos, como a conciliação e a mediação, bem como reconhece a arbitragem como método válido de jurisdição.

    [2] A exemplo do disposto na Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação), Lei nº 13.129/2015 (Lei de Arbitragem), Lei nº 13.655/2018 (LINDB) e Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

    [3] É por isso que, embora o momento de mudança paradigmática seja capaz de, como defende Elton Venturi, “provocar profundas reavaliações da filosofia e da prática da solução de conflitos, inclusive quando correlacionados aos direitos indisponíveis”, a questão está longe de ser pacífica – sobretudo diante das variáveis abarcadas dentro do universo do processo coletivo. (VENTURI, Elton. Transação de direitos indisponíveis. Revista de Processo, v. 251, jan. 2016, pp. 391-426).

    [4] Ver, por exemplo: ZANETI JR, Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas. 2ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, e DIDIER JR., Freddie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 11ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2017, p. 339-341.

    [5] Ver: GRINOVER, Ada Pellegrini e WATANABE, Kazuo e MULLENIX, Linda S. Os processos coletivos nos países de Civil law e Common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.

    [6] Entenda o Acordo Judicial para reparação ao rompimento em Brumadinho. Disponível em: https://www.mg.gov.br/pro-brumadinho/pagina/entenda-o-acordo-judicial-de-reparacao-ao-rompimento-em-brumadinho. Acesso em: 02 mar. 2024.

    [7] Nesse contexto, destaca-se que, no que DIZ RESPEITO às ofensas aos demais interesses coletivos (v.g., meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, ordem urbanística), deve-se “priorizar o critério finalístico, que orienta o par instrumentalidade finalidade dos procedimentos, sendo mais vantajosa uma solução negociada, que se mostre adequada e eficaz para resolver o conflito gerado pela lesão ou ameaça ao interesse mencionado, do que uma obstinada busca pela solução judicial, geralmente demorada, onerosa e com desfecho imprevisível”. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores – Lei 7.347/1985 e legislação complementar. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009).

    [8] Vale ressaltar que a experiência do common law em relação às class actions tem há muito sido utilizada para melhor compreender os conflitos coletivos no Brasil: seja em matéria de legitimação, representatividade ou mesmo de fundamentação.

    [9] Para Elton Venturi, mesmo diante da ausência de critérios pré-estabelecidos pelo ordenamento brasileiro para a homologação judicial de acordos coletivos e da rara atuação dos tribunais nacionais sobre o tema, a antiga experiência dos países de common law pode informar caminhos úteis a serem percorridos no Brasil, sobretudo quanto à aplicação destes critérios em específico. (VENTURI, Elton. A Homologação Judicial dos Acordos Coletivos no Brasil. RJLB – Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 8, p. 599-622, 2022)

    [10] A utilização dos dispositivos de Direito Público inseridos pela Lei nº 13.588/2018 na LINDB, aliás, afigura-se essencial em casos como estes, a fim de garantir segurança jurídica e eficiência no âmbito de relações públicas. Para uma análise geral sobre o impacto da Lei nº 13.655/2018 sobre o Direito Administrativo brasileiro, ver: VALIATI, Thiago Priess; HUNGARO, Luis Alberto; CASTELLA, Gabriel Morettini e. A Lei de Introdução e o Direito Administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

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