segunda-feira, 1 julho, 2024
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    Violência contra a mulher com deficiência: questão de vulnerabilidade social

    Perspectiva

    A agressão familiar contra as mulheres faz parte do conjunto de lesões históricas no Brasil. Essa laceração não para de jorrar apesar das tentativas de sutura. Parece que o sangue que flui do corpo da mulher com deficiência não comove. Por que será?

    Essas primeiras linhas podem ser resumidas da seguinte forma: A sociedade e as diversas organizações ignoram mulheres com deficiência, enquanto seus agressores se sentem ainda mais à vontade para cometer seus diversos atos de violência sem preocupações, quando a vítima é uma mulher com deficiência. Devem pensar: “Elas não podem fazer nada!”

    Serão essas evidências que guiarão nossas discussões neste artigo. Para isso, nos basearemos em fundamentos da Interseccionalidade, entrelaçados por uma leitura que se desenvolve no feminismo negro, tendo como referência Carla Akotirene (UFBA), já que as mulheres negras no Brasil são as principais vítimas desse tipo de violência.

    Além disso, as abordagens dos campos social e antropológico da incapacidade, a partir de Débora Diniz (UnB), em “O que é Deficiência?”, e Anahí Guedes (UFSC), a partir do conceito de suas discussões sobre gênero nas políticas da deficiência e capacitismo e as muitas formas de atuações e intervenções no corpo incapaz. Para embasar e sustentar no campo jurídico, nos basearemos na Lei Maria da Penha, de nº 11.340/06, em propostas de alterações constitucionais para promover políticas de atenção à violência de gênero, além de refletir sobre de que forma a Lei Maria da Penha representa e se concretiza como uma mudança na garantia de proteção às mulheres brasileiras, principalmente às com deficiência.

    Culturalmente, em nossas sociedades modernas, alguns corpos são vistos como de potência física e intelectual, enquanto outros, subjugados por apresentarem formas e comportamentos que não se enquadram nos padrões estabelecidos por diversas instituições das sociedades. As mídias, por exemplo, fazem parte desse conjunto cultural que estimula o consumo e descarte de alguns modelos e valorização de algumas aparências.

    Dessa forma, a construção do que é ser mulher é influenciada pela existência de uma imagem estabelecida no campo visual e performático, assim como diversos outros estereótipos sociais. Além disso, a construção do imaginário do ser mulher é enraizada na expectativa de um corpo fértil, de modo que sua função na sociedade também foi moldada para que a mulher seja um receptáculo que deve ser e estar disponível e pronta para procriar, produzir e sustentar os frutos de uma relação com um homem.

    Nesse sentido, Guedes (2017), chama atenção para o que Ellen Samuels observa, ao argumentar que “as feministas não deficientes de fato tentam se dissociar do corpo deficiente em suas perspectivas de análises teóricas, a fim de provar que o corpo feminino não é doente ou deformado”. Portanto, a rejeição do corpo da mulher com deficiência a coloca em uma categoria inferior e todas as questões relacionadas ao seu corpo se tornam um problema dela, não apenas social e político, no caso da violência doméstica.

    Isso desafia a construção da imagem da mulher [com deficiência], pois questiona a normatização do corpo e de gênero. Com isso, pode-se questionar se as mulheres com deficiência são realmente mulheres?

    A filósofa francesa Simone de Beauvoir, em Segundo Sexo (1949), oferece uma extensa reflexão sobre “o que é ser mulher?”, que mais tarde se tornará um ponto fundamental para o feminismo do século 20. Beauvoir afirma que a resposta para sua pergunta é o resultado de construções sociais e culturais enraizadas no sistema patriarcal, cujo principal objetivo é hierarquizar os sexos e educar as meninas para serem submissas aos homens. A ideia de que as mulheres são o sexo frágil e responsáveis pelas tarefas domésticas, por exemplo, persiste em uma estrutura social que ainda é adotada nos dias de hoje.

    Em seu livro, Diniz (2012) estabelece uma discussão que representa outra possibilidade de pensamento sobre a deficiência, distanciando-se do modelo biomédico. Para isso, “a aproximação dos estudos sobre deficiência de outros saberes já consolidados, como os estudos culturais e feministas” (2012, p.10), possibilitou a criação de um outro modelo para pensar a deficiência, conhecido como – modelo social da deficiência – resultante de mobilizações ocorridas e desenvolvidas no Reino Unido e nos Estados Unidos nos anos de 1970, conforme afirma Diniz (2012, p. 9).

    Diferentemente do modelo biomédico, restrito aos conhecimentos médicos, psicológicos e de reabilitação, a deficiência passou a ser também um campo das humanidades (2012, p.8). Com isso, interessa-nos considerar a deficiência como uma categoria social, que é afetada por sistemas políticos, culturais e históricos, uma vez que “a deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente” (2012, p. 10).

    Essas colocações podem ser provocativas para justificar a consideração da deficiência neste artigo como uma característica intrínseca ao indivíduo, assim como gênero, sexualidade, raça, etnia, entre outras.

    A deficiência é apenas mais uma característica do indivíduo e não se encaixa na definição de normalidade. Porém, “contrariamente ao que se imagina, não é possível descrever um corpo com deficiência como anormal. A anormalidade é um julgamento estético e, portanto, um valor moral sobre os estilos de vida”, segundo Diniz (2012, p. 8). Assim, surge a questão: a deficiência é uma tragédia ou simplesmente mais uma característica humana?

    Ao ser associada ao corpo como parte de sua identidade, a pessoa com deficiência ocupa um outro lugar social, o da subalternidade. Como discutimos até aqui, a deficiência é categorizada como uma anormalidade, uma diferença que desafia, que questiona a ideia de belo/feio e que confronta a hegemonia. Portanto, “a deficiência passou a ser entendida como uma forma particular de opressão social, assim como as vividas por outros grupos minoritários, como mulheres ou os negros”. Dessa forma, quando a teórica indiana Gayatri C. Spivak, em “Pode o subalterno falar?” (2014), questiona se o subalterno pode falar, podemos refletir quais são as forças que silenciam essas vozes, uma vez que, na prática, todos nós, em algum meio, desenvolvemos uma ou mais formas de comunicação.

    O julgamento ao qual Spivak se refere, destacado na citação acima, que resulta em falar em nome do outro, é uma das muitas experiências opressoras às quais as pessoas com deficiência são submetidas. E, quando se trata das mulheres nessa situação, há ainda contribuições do patriarcado. Portanto, as pessoas com deficiência tentam sobreviver em um emaranhado de opressões que constantemente buscam mediar e interditar seus corpos e suas vozes. Seria possível, inclusive, reformular a questão de Spivak e perguntar:

    A mulher com deficiência pode falar?

    A resposta para essa pergunta está sendo formulada desde o começo deste artigo. Essa é uma discussão que não começou aqui e também não terminará quando este texto chegar ao fim. Seria possível, caso toda uma estrutura social fosse reformulada, se os números de violência contra mulherescom incapacidade não fossem uma realidade

    A discussão até agora tentou abordar pontos específicos, embora muitas vezes tenhamos hesitado, assim como a linguagem. Entretanto, agora, vamos considerar essas identidades atuando em conjunto, de forma orgânica. Para essa abordagem, iremos nos embasar no pensamento do feminismo negro, segundo a intelectual Carla Akotirene, em Interseccionalidade, conceito que ela contribuiu para disseminar nos últimos anos no Brasil.

    O pensamento desenvolvido nesse conceito articula como prática correspondente às minorias políticas ou à diversidade (AKOTIRENE, 2019). E ressalta que a interseccionalidade resulta de um dispositivo ancestral, o lugar onde o feminismo negro é construído.

    Dessa forma, a interseccionalidade não fragmenta o sujeito com suas diversas subjetividades, apesar de identificá-lo, compreendendo-o como um todo, e como esse todo influenciará as respostas da sociedade a esse corpo. Portanto, pensamos de que forma as mulheres com incapacidade são vistas e consideradas nos vários espaços políticos, sociais e culturais. O questionamento persiste: mulheres com incapacidade são realmente consideradas mulheres?

    Não buscamos respostas para este artigo, mas observar de que maneira esses questionamentos se convertem em dados coletados pelo Estado brasileiro, como os divulgados no relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher (CPMIVCM), de julho de 2023. Assim, ponderamos sobre as condições e maneiras como esses números são ou serão utilizados para promover políticas públicas que garantam que os corpos das mulheres com incapacidade, silenciados em seu território, em suas comunidades, em seus lares, possam escapar ilesos das práticas violentas nas quais foram envolvidas.

    A interseccionalidade nos ampara teoricamente para refletir sobre como os conjuntos de marcações de identidades minorizadas de um determinado corpo acentuam a disparidade de vulnerabilidade em relação a outros inseridos, aparentemente, no mesmo espaço. Dessa forma, mulheres negras com incapacidade tendem a estar mais suscetíveis à violência do que outras mulheres negras sem deficiência.

    De acordo com Anahí Guedes, em entrevista para o Senado, em Anahí Guedes e o debate sobre deficiência e gênero, quando questionada sobre o enfrentamento às formas de violência de gênero e o capacitismo, ela afirma que “mulheres com incapacidade têm dificuldades para acessar os serviços de denúncia e atenção às vítimas de violências de gênero devido à falta de acessibilidade”, o que faz com que essas mulheres permaneçam sob os cuidados de seus próprios agressores.

    Guedes também observa que “os poucos estudos nacionais, embasados em referências internacionais, evidenciam a argumentação da maior vulnerabilidade das mulheres com incapacidade a sofrerem violências na esfera doméstica e familiar”, confirmando a implicação do gênero na qualidade de vida que a pessoa com incapacidade vivencia. Entretanto, ela ressalta que durante seu processo de pesquisa no mestrado constatou que “as violências contra mulheres com incapacidade ora são uma expressão do gênero, ora são motivadas pela incapacidade ou ainda são o resultado da polarização entre gênero e deficiência. Logo, isso dependerá do contexto e da descrição de cada caso”, destacando a importância de perceber quando a interseccionalização das identidades tem maior influência ou não, embora defendamos que certos marcadores apenas intensificam a crise da vulnerabilidade social.

    Anahí Guedes ainda afirma que no âmbito de uma relação conjugal contra a mulher com incapacidade, há a implicação de um terceiro elemento, além da possível dependência emocional e financeira, que fazem com que essas mulheres desistam ou não denunciem os seus agressores, a maioria homens, mediante a pergunta: “Quem vai cuidar de mim?”. Com isso, ela comenta que “essa ‘rede de cuidados’ geralmente inclui pessoas de sua rede de parentesco, majoritariamente mães, pais, irmãos, irmãs, filhos e filhas que, em maior ou menor grau, cuidam ou deveriam cuidar da sua filha, irmão, mãe ou pai com incapacidade”.

    Até aqui, refletimos sobre questões inerentes às mulheres com incapacidade, sendo a principal entre elas a violência física e psicológica por agressores que se aproveitam das construções hegemônicas que as colocam numa condição de vulnerabilidade social. Compreendemos que a questão da incapacidade não se restringe à pessoa que a tem como uma característica, mas sim a uma rede que captura suas vidas e não viabiliza condições ideais de vivências dignas e sem ameaças ao seu bem-estar social, condicionando essas mulheres com incapacidade à sobrevivência (por quanto tempo?) diante das inúmeras formas de violência que sofrem. Assim, as mulheres com incapacidade se veem, muitas vezes, em convivência com os seus principais agressores. Isso é alarmante!

    REFERÊNCIAS:
    AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo. Ed. Polén, 2019.

    CÂMARA DOS DEPUTADOS DO BRASIL. Disponível:< https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2260907>. Acesso em: 05 de setembro de 2023.

    _. Disponível:< https://www.camara.leg.br/noticias/721736-projeto-inclui-mulher-com-deficiencia-no-rol-exemplificativo-da-lei-maria-da-penha/>. Acesso em: 05 de setembro de 2023.

    DF: Presidência da República, [2023]: Disponível:< http://www4.planalto.gov.br/ipcd/entrevistas/anahi-guedes-de-mello-e-o-debate-sobre-genero-e-deficiencia>. Acesso em: 25 de agosto de 2023.

    DINIZ, Debora. O que é deficiência. São Paulo. Ed. Brasiliense, 2012.

    GUEDES, Anahí. Gênero nas políticas da deficiência, deficiência nas políticas para mulheres: uma análise de documentos oficiais sobre violência contra mulheres com deficiência. In: MORAES, Marcia; MARTINS, Bruno Sena; FONTES, Fernando; MASCARENHAS, Luiza Teles. (Orgs.). Deficiência em questão: para uma crise da normalidade. Ed. Nau. Rio de Janeiro, 2017.

    _. GUEDES, Ahaní; NUERNBERG, Adriano Henrique. Gênero e Deficiência: Intersecções e Perspectivas. Disponível em:< https://www.scielo.br/j/ref/a/rDWXgMRzzPFVTtQDLxr7Q4H/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 23 de agosto de 2023.

    SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 2014.

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