Ponto de vista
“A pressão dos índices de criminalidade e suas novas categorias, a frequência da medida repressiva como resposta principal ao delito, a rejeição social dos apenados e seus impactos no aumento da reincidência, a sofisticação tecnológica, que modifica a aparência da criminalidade contemporânea, são fatores que demandam a melhoria dos instrumentos jurídicos de contenção do crime…”
Essa citação está presente no item 5 da introdução da última modificação do Código Penal, Lei 7209, de 11/07/1984, que, apesar de ter sido elaborada há 40 anos, poderia ser facilmente utilizada hoje em um artigo, estudo ou texto técnico. É um fato que os mesmos receios e problemas ligados ao crime preocupam há décadas a sociedade brasileira.
Onde estamos cometendo equívocos?
Em 1984, o Brasil contava com 258.505 detentos para uma população de 134 milhões de habitantes, o que corresponde a uma taxa de encarceramento (quantidade de presos para cada 100 mil habitantes) de 193,07. Quarenta anos depois chegamos a 203 milhões de habitantes, população carcerária de 852.010 indivíduos e taxa de encarceramento de 419,70. O aumento na taxa de detentos por 100 mil habitantes, como observado, cresceu 117%, sem que as taxas de criminalidade diminuíssem.
Os dados evidenciam, portanto, que prender mais e por mais tempo não é a solução.
Naquela época, os integrantes da comissão da reformulação do Código Penal alertaram sobre a ineficácia da prisão como modo de proteger a sociedade, conforme mencionado no item 26 da introdução: “Uma política criminal voltada para proteger a sociedade terá que restringir a pena de privação de liberdade aos casos de comprovada necessidade, como meio eficaz de impedir a expansão cada vez maior do crime resultante do cárcere”. Convém notar que em 1984 o crime ainda não tinha atingido o grau de organização que possui atualmente. O PCC, por exemplo, só surgiria quase uma década depois, em 1993.
Antonio Cruz/Agência Brasil
Nesse período, a sociedade brasileira se deixou influenciar por um populismo penal que defende a prisão como a solução para a criminalidade, com a inclusão de agravantes, como fake news e radicalismos ideológicos. Um dos exemplos mais cruéis desse cenário e que ignora o fato de o direito ser uma ciência é o que pretende submeter uma mulher que pratica aborto à mesma pena daquele que comete um homicídio.
Nesse ponto é importante recordar o “Príncipe dos Penalistas”, Nelson Hungria, para quem o homicídio é “o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinquência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada”.
A sociedade brasileira precisa optar entre duas direções, aquela indicada quatro décadas atrás pela Comissão de Reforma, que requer desenvolver mecanismos mais eficazes para combater a criminalidade, ou aquela que estamos seguindo sem sucesso desde então. Podemos iniciar refletindo se é sensato punir 96% dos detentos que saem temporariamente da prisão e têm comportamento exemplar, demonstrando estarem preparados para retornar à vida em sociedade, devido ao comportamento dos 4% que não retornam.
Seremos avaliados no futuro por nossas escolhas e decisões, espero que não sejamos condenados por termos deliberadamente persistido nos mesmos equívocos.