terça-feira, 2 julho, 2024
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    A determinação dos julgadores e a falta de ação do legislador comum


    Frequentemente somos informados pelos veículos de comunicação que os tribunais superiores ou os Tribunais de Justiça invalidaram a condenação ou a absolvição pronunciada pelo Tribunal do Júri. Comumente, a justificativa para a anulação da determinação do júri reside em uma decisão claramente oposta às evidências presentes nos autos. Os julgadores simplesmente condenam ou absolvem, discordando das evidências ou “desconsiderando-as”.

    123RF

    Aqueles que estudam, atuam ou costumam presenciar as sessões de julgamento no Tribunal do Júri sabem que os julgadores decidem somente com base nos acontecimentos. Questões jurídicas e interpretação das leis não estão na competência do conselho de sentença. Os julgadores estão lá para determinar se há prova de que o crime foi cometido, se há prova de quem o cometeu e se há prova dos motivos para a prática do crime. Essas são as razões pelas quais os Tribunais Superiores e os TJs invalidam as determinações do júri em conformidade direta com o artigo 593, III, d, do Código de Processo Penal (CPP).

    Se a determinação dos julgadores é anulada porque discordaram da prova ou porque a ignoraram, a responsabilidade recai sobre quem? Será dos julgadores? Ou a culpa é dos oradores (promotor de justiça e defensor)? Ou será que a culpa é do legislador comum?

    A responsabilidade não pode ser atribuída aos julgadores. O próprio CPP estabelece no artigo 472 que o juiz presidente deve alertar os julgadores que, em conformidade com a lei, analisarão o caso com imparcialidade e proferirão sua determinação de acordo com sua consciência e os preceitos da justiça.

    Onde nesse dispositivo está mencionado que os julgadores devem decidir com base nas provas dos autos? Em nenhum lugar! A consciência dos julgadores não está necessariamente relacionada às provas presentes nos autos. Igualmente, os preceitos da justiça não indicam que ser justo é determinar com base nessa ou naquela prova. A possibilidade de um depoimento falso ou a obtenção de uma prova ilegal exemplificam claramente essa situação. Em suma, embora os julgadores sejam responsáveis pelos fatos, eles também são proibidos do non liquet.

    E a razão é muito simples. Os julgadores decidem de acordo com suas crenças internas. Os julgadores não são obrigados a justificar por que condenam ou absolvem o acusado por um homicídio simples ou qualificado. Além disso, o artigo 472 do CPP menciona que “em nome da lei” os julgadores analisarão o caso. Mas a qual lei o legislador se refere?

    De acordo com a concepção interna de cada um, a lei que os rege pode ou não coincidir com as leis do Estado. E ao decidirem contra as provas dos autos, estão, igualmente, seguindo uma lei. Que lei? Não importa, pois não são obrigados a fundamentar sua decisão.

    ‘Zé Ninguém’

    Spacca

    Isso nos leva a refletir que existem leis que orientam e obrigam os magistrados togados e outras “leis” que orientam os julgadores reais no Tribunal do Júri. E aqui a ideia de preceitos da justiça reflete bem o entendimento daqueles julgadores que decidem sobre seus pares do Júri sentindo, como eles, o que é injustiça e desigualdade na sociedade. E contra esse sentimento de injustiça, decidem com justiça, mesmo que contrariando as provas dos autos.

    Vale lembrar a música “Zé Ninguém”, do Biquini Cavadão, quando diz “eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém, aqui embaixo as leis são diferentes”. Qualquer “Zé Ninguém” pode ser julgador! E poderá determinar sobre seus pares, inclusive os magnatas, em nome da lei, mas também em nome da “lei” do povo, que, como já mencionamos, não necessariamente coincide com as leis do Estado. Todos são iguais perante a lei. Mas nem todas as leis são iguais para todos. E parece que é essa desigualdade e injustiça, impossíveis de serem resolvidas pelas leis do Estado, que a Constituição quis que a instituição do júri resolvesse ao lhes conferir o poder do voto secreto e soberano. Portanto, a responsabilidadenão pertence aos jurados, pois eles julgam a questão em nome da lei, aplicando os preceitos da justiça e de suas consciências no caso específico, refletindo a experiência de cada um na sociedade.

    Como demonstrado, a problemática de decidir em favor ou contra as evidências dos autos não é uma atribuição dos jurados.

    Será, então, culpa dos oradores, os jurados decidirem a questão de maneira oposta às provas dos autos?

    Tampouco a culpa pode ser atribuída aos promotores de justiça ou aos defensores. Demonstro.

    A eloquência e a genialidade de um ou outro orador podem, de fato, influenciar na decisão dos jurados no Tribunal do Júri. E a vitória caber àquele que possui maior habilidade retórica do que o outro. Porém, esse não é o aspecto predominante nas regras do CPP e nos princípios da Constituição que regulam a instituição e o julgamento no Tribunal do Júri.

    O mais relevante para os oradores está em lidar com as provas dos autos. Isso se dá porque o que não está documentado nos autos não tem existência no domínio do direito. Dessa forma, seria suficiente adicionar aos autos tudo aquilo que se considera capaz de comprovar algo para afirmar que o argumento se baseia nessa ou naquela evidência para condenar ou absolver o réu? A resposta é negativa. Pois é imprescindível que exista uma norma que defina o que constitui evidência e também quando ela é válida.

    Ao considerarmos a Lei 11.690/2008, que modificou o artigo 155 do CPP (4), perceberemos claramente que evidência é aquela produzida em juízo sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, enquanto os elementos de informação gerados no inquérito policial (atentando-se às ressalvas do artigo 155 do CPP) não são considerados provas, justamente por serem produzidos unilateralmente.

    Antes da Lei 11.690/08, era comum o Ministério Público não apresentar nenhuma prova no sumário de culpa e no plenário diante do conselho de sentença, e ainda assim, obter a condenação válida dos réus apenas com os elementos de informação do inquérito policial. Para a defesa e a doutrina, isso sempre representou uma decisão dos jurados em oposição às provas dos autos. Mesmo assim, naquela época, os tribunais não anulavam as decisões dos conselhos de sentença pelo país todo. Tudo o que era produzido na fase pré-processual e na fase processual era considerado como prova válida sem distinções.

    Por outro lado, ao analisarmos os julgamentos realizados no Tribunal do Júri desde 2008, com base no entendimento dos tribunais superiores quanto à Lei 11.690/08, prova válida para a condenação no Tribunal do Júri passou a ser somente aquela efetivamente produzida em audiência de instrução e julgamento. Nesse sentido, e mesmo com as novas normas e o entendimento jurisprudencial, o Ministério Público continuou a obter condenações no Tribunal do Júri baseando-se exclusivamente nos elementos informativos do inquérito policial. No entanto, atualmente tais condenações são consideradas inválidas.

    Os tribunais superiores passaram a entender que os elementos de informação do inquérito policial, se considerados isoladamente, não constituem provas e não têm validade para condenar os réus no Tribunal do Júri, nem mesmo para pronunciá-los (!).

    Além disso, não basta mais os elementos de informação obtidos na fase pré-processual serem repetidos em Juízo, pois a prova produzida em Juízo precisa ter qualidade. Ou seja, não basta que a testemunha do inquérito compareça em Juízo e apenas repita o que ouviu sobre a autoria criminosa. É crucial que ela indique a fonte de seu conhecimento e que essa fonte também seja ouvida em Juízo, além de ser prudente obter outras provas de natureza diferente da testemunhal, como uma gravação em vídeo do ocorrido, por exemplo.

    Por essas razões, muitos julgamentos realizados no Tribunal do Júri passaram a ser anulados por decisões manifestamente contrárias às provas dos autos.

    Nesse contexto, não se pode atribuir a culpa aos defensores pelos jurados absolverem seus clientes mesmo havendo testemunhas presenciais no inquérito policial apontando o réu como autor do crime após a vigência da lei 11.690/08. Da mesma forma, o promotor de justiça não tem culpa.por ter recebido tantas e tantas sentenças de réus, frequentemente com a incerteza pairando sobre eles, apenas com o testemunho de pessoas ou informantes na delegacia antes da entrada em vigor da lei 11.690/08.

    Assim, se a responsabilidade não pode ser atribuída aos jurados nem aos advogados no Tribunal do Júri pelos julgamentos anulados devido à regra de que a decisão dos jurados não pode ser claramente oposta às evidências do processo, a culpa necessariamente recai sobre o legislador.

    Ao contrário do que o legislador fez explicitamente ao modificar o título do artigo 155 do CPP estabelecendo a persuasão racional nos processos em que os destinatários das provas são os juízes de direito, ele não fez o mesmo em relação ao sistema de avaliação das provas nos processos do Tribunal do Júri, cujos destinatários das provas são (ou pelo menos deveriam ser!) os juízes leigos.

    Juízes leigos

    Os jurados não são e nem precisam ser estudiosos da lei. E o legislador esqueceu desse fato ao permitir que o título do artigo 155 do CPP seja aplicado tanto aos juízes togados quanto, de forma indireta e velada, aos juízes leigos na hora da análise da prova.

    Não se ignora a distinção entre os princípios do livre convencimento motivado e do livre convencimento íntimo, e a quem eles se destinam. Porém, na prática, a falta de ação do legislador permitiu a união desses princípios no artigo 155 do CPP, já que os tribunais superiores ou de Justiça utilizam a alínea d do inciso III do artigo 593 do CPP para anular as decisões dos jurados com base no artigo 155 do CPP ao revisarem as mesmas provas do processo que foram analisadas pelos jurados. Ou seja, os tribunais acabam impondo e influenciando os jurados com a convicção motivada deles (tribunais superiores), indicando quais provas os jurados devem avaliar e, por vezes, como avaliá-las!

    O ideal, e coerente, para preservar a convicção íntima dos jurados, seria o legislador ter incluído um outro parágrafo no artigo 155 do CPP por meio da lei 11.690/08, ou por outra lei posterior, estabelecendo expressamente que a prova válida para a apreciação dos jurados seria somente aquela apresentada pelas partes perante o conselho de sentença no plenário do julgamento, como defende o professor Aury Lopes Júnior (5).

    Veja. Se o legislador tivesse determinado na Lei 11.690/08 que a prova válida para avaliação dos jurados seria exclusivamente aquela apresentada pelas partes no plenário do julgamento, certamente eliminaria as inconsistências na aplicação da alínea d do inciso III do artigo 593 do CPP, ou, ao menos, reduziria consideravelmente a possibilidade de interpretações diversas dos tribunais superiores sobre a expressão “claramente oposta às provas do processo”.

    Isso porque os elementos de informação produzidos nos inquéritos policiais seriam utilizados apenas para o Ministério Público oferecer a denúncia e as provas produzidas em audiência de instrução no sumário de culpa seriam empregadas somente para o juiz de direito pronunciar o réu. Assim, as provas para condenar ou absolver o réu deveriam ser exclusivamente aquelas produzidas no plenário diante dos jurados, que são os juízes do fato. Aliás, qual seria o propósito de uma segunda audiência de instrução e julgamento no plenário do júri, se não fosse para apresentar provas perante e para os jurados?!

    Apenas as provas apresentadas na presença dos jurados seriam válidas para decidir pela condenação ou absolvição do réu. Somente essas provas poderiam ser utilizadas como base para os tribunais superiores e os Tribunais de Justiça analisarem objetivamente se a decisão dos jurados foi ou não claramente contrária às provas a eles devidamente destinadas.

    Observe que, se o legislador tivesse previsto dessa forma, não haveria qualquer suspeita de violação à privacidade e à soberania dos votos dos jurados, pois todas as provas consideradas por eles seriam aquelas apresentadas em plenário, conhecidas por todos. Consequentemente, dessa maneira, o legislador teria estabelecido explicitamente a separação dos princípios.

    da autonomia interna dos jurados e da argumentação lógica dos tribunais superiores sobre as decisões tomadas no Tribunal do Júri.

    Em última análise, é necessário que o legislador reconheça que é por sua responsabilidade que os tribunais consideram evidentemente conflitantes as evidências presentes nos autos as decisões dos jurados resultando em anulações de julgamentos no Tribunal do Júri. Uma vez que os registros do inquérito não podem ser eliminados do processo, nem as evidências da etapa de pronúncia se destinam aos jurados, seria mais apropriado prever expressamente que as evidências válidas para análise dos jurados são apenas aquelas produzidas em suas presenças no plenário.

    Porventura, alguém pode ainda argumentar que a culpa pode ser atribuída aos tribunais superiores, entretanto, este é um tema para outro artigo.

     

    1. No Artigo 5º, XXXVIII, é confirmada a instauração do júri, com a estrutura que lhe conferir a norma, garantidos: a) a totalidade da defesa; b) a confidencialidade das votações; c) a autoridade dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes intencionais contra a vida;

    2. 593. Haverá recurso no prazo de 5 (cinco) dias: III – das sentenças do Tribunal do Júri, quando: d) for a determinação dos jurados manifestamente oposta às provas dos autos.

    3. 472. Quando formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação: Em nome da lei, convoco-vos a analisar este caso com imparcialidade e a emitir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os princípios da justiça. Os jurados, individualmente chamados pelo presidente, responderão: Prometo agir assim. Parágrafo único. O jurado, em seguida, receberá cópias da pronúncia ou, se for o caso, das decisões posteriores que consideraram aceitável a acusação e do relatório do processo.

    4. Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre avaliação da prova produzida no contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos obtidos na investigação, exceto as evidências cautelares, não repetíveis e antecipadas.

    5. Direto Processual Penal / Aury lopes Jr – 20 ed. – São Paulo : SaraivaJur. 2023. p. 1022.

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