terça-feira, 2 julho, 2024
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    Adequado já é suficiente? A criação de evidências na nova legislação de precificação de transferência



    Ponto de Vista

    É de sabença pública que, em setembro de 2023, o Fisco brasileiro promulgou a Instrução Normativa RFB nº 2.161, que regulariza as novas diretrizes de preços de transferência contempladas na Lei nº 14.569/2023, que introduziu o princípio do braço estendido [1] e as normas das Orientações da OCDE como referência para o controle de preços de transferência em operações internacionais de qualquer tipo, realizadas entre partes relacionadas.

    Ainda que a adesão às novas diretrizes de preços de transferência seja compulsória para os contribuintes no Brasil desde o início de 2024, a nova regulamentação ainda reserva muitos desafios para as organizações que, até o momento atual, desconhecem o que aguardar do Fisco, especialmente em relação à análise dos documentos e informações necessárias que devem ser fornecidos para demonstrar que as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL referentes às transações do contribuinte, sujeitas ao controle de preços de transferência, estão em conformidade com o princípio do braço estendido.

    Lei nº 9.430/96 e debates no Carf
    Com as diretrizes da antiga legislação, previstas na Lei nº 9.430/96, o tema de precificação de transferência gerava pouca controvérsia no contencioso administrativo e judicial [2], pois a lei já havia estabelecido as margens de lucro que a pessoa jurídica poderia ter nas transações, limitando, assim, quais seriam as evidências que o contribuinte poderia produzir para atestar a inaplicabilidade das margens de lucro predefinidas.

    Conforme assinalado por Paulo Ayres Barreto, o Fisco não parecia ser flexível em alterar as margens pré-definidas pela legislação, dada a natureza vinculativa do ato administrativo emitido pela autoridade fiscal [3].

    Entretanto, no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a controvérsia acerca da criação de evidências das diretrizes da antiga legislação de preços de transferência já provocou muita discussão (e promete provocar ainda mais com a nova legislação), sendo que alguns acórdãos são emblemáticos e merecem breve destaque.

    No primeiro acórdão [4] que merece menção, o Carf analisou a defesa apresentada pela Kodak que tinha defendido que a legislação brasileira de preços de transferência deslocou injustamente o ônus da prova, fazendo com que o contribuinte tivesse originalmente a responsabilidade de comprovar que os preços nas operações realizadas com partes relacionadas eram apropriados.

    Nesse momento, o Carf decidiu, a favor do contribuinte, que os auditores fiscais encarregados da verificação da escolha deveriam utilizar o método mais favorável à empresa ou, pelo menos, demonstrar a inviabilidade de aplicar outros métodos passíveis de utilização nas operações realizadas.

    Por outro lado, no segundo acórdão [5] que ressaltamos, o contribuinte tinha utilizado o Método do Custo de Produção mais Lucro (CPL), mas ao ser intimado pelo Fisco para comprovar os custos de produção no país onde foi originalmente produzido, alegou a impossibilidade de fazê-lo, o que levou a RFB a apurar o preço de transferência com os recursos disponíveis.

    O Carf, nessa ocasião, decidiu de forma desfavorável ao contribuinte, ao concluir que o método escolhido pela empresa era inacessível ao Fisco, pois não havia como obter informações sobre os custos de produção no país de origem do bem importado, …como salientou, também destacou que a legislação (antiga) não privilegiava qual seria o procedimento a ser adotado pelo Fisco na apuração de ofício do preço transferência e ainda menos o obriga a determinar qual o procedimento seria mais favorável ao contribuinte.

    O terceiro e último parecer [6] que evidenciamos foi dado pela Câmara Superior do Carf, que determinou que seria correta a utilização, pela fiscalização, de qualquer dos métodos de ajuste somente quando a empresa não empregar qualquer método de ajuste previsto na legislação de preços de transferência e que caberia a fiscalização somente conferir a veracidade dos dados.

    Novo quadro
    Dessa forma, conforme se percebe acima, a discussão no Carf estava muito voltada para definir o procedimento a ser aplicado pelo contribuinte e quem tinha a responsabilidade da prova em eventual autuação fiscal. Agora, o cenário mudou consideravelmente em relação ao antigo, pois a nova metodologia permitirá, por exemplo, que a Receita autue uma empresa por não concordar com o preço por ela praticado, abrindo espaço para novas controvérsias.

    Antes mesmo de nos aprofundarmos sobre a produção de provas na nova legislação, que é o nosso objetivo central, ressaltamos que neste breve estudo, não será possível explorar quais são as características de cada tipo de documentação necessária que cada empresa precisa fornecer para regularizar as novas regras de preços de transferência.

    Por ora, esclarecemos que a legislação já determina que as documentações que cada empresa precisa apresentar ao Fisco se dividem em três níveis.

    O primeiro documento que o contribuinte deve se atentar no novo modelo é o “arquivo global”, que nada mais é do que a visão geral do grupo multinacional e que oferecerá uma perspectiva abrangente do conglomerado multinacional. Este arquivo contém detalhes sobre a organização e suas operações, incluindo as principais linhas de negócios, estratégias, ativos intangíveis, transações financeiras e políticas, juntamente com acordos de preços de transferência.

    Por sua vez, o “arquivo local” que deverá ser apresentado pelas empresas é uma visão específica de cada entidade integrante do grupo multinacional e descreve a estrutura organizacional e as atividades específicas realizadas pelo contribuinte, incluindo detalhes sobre as principais transações controladas. Além disso, aborda os métodos de precificação de transferência e as análises de funcionalidade e comparabilidade, juntamente com a política associada aos preços de transferência.

    O último documento é o “CbCR” que é a demonstração da alocação de lucros, tributos e atividades do grupo multinacional. Este documento expõe os dados financeiros, os ativos e o número de funcionários de todas as entidades do grupo, além de discriminar receitas/lucros por entidade e receitas por atividade/entidade, entre outros aspectos. Essa documentação é exigida da empresa controladora do grupo quando sua receita excede 75 milhões de euros.

    Termos em aberto
    Pois bem. Conforme artigo 34 da Lei 14.569/2023, tal documentação deverá ser apresentada para demonstrar que a base de cálculo do IRPJ e da CSLL das pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil que realizem transações controladas com partes relacionadas no exterior estão de acordo com o princípio do arm’s lenght, positivado no artigo 2º da referida lei.

    Se o sujeito passivo deixar de “prover as informações necessárias ao delineamento preciso da transação controlada ou à realização da análise de comparabilidade”, o parágrafo primeiro do art.igo 34 prevê duas medidas a serem tomadas pela autoridade fiscal: (1) os ativos e os riscos atribuídos a outra parte da transação controlada, “que não possuam evidências confiáveis de terem sido efetivamente por ela desempenhadas, utilizados ou assumidos”, serão alocados à entidade brasileira; e (2) a autoridade fiscal deverá adotar “estimativas e premissasperceptíveis para efetuar o delineamento da operação e a análise de equiparação”.

    Ao ler os dispositivos, destaca-se o uso de termos não definidos: que evidências serão consideradas “confiáveis” pela autoridade fiscal? Quem determina quais suposições são “justas” para realização da descrição da operação? Quais seriam as informações “necessárias” a serem fornecidas? Ou seja, quanta informação é suficiente para atender ao que é considerado “necessário” pela inspeção?

    Esses questionamentos tornam-se ainda mais relevantes à medida que se avança na leitura da mencionada lei, já que seu artigo 35 estabelece que o descumprimento do artigo 34 acarretará, entre outras possibilidades, multa de 5% sobre o valor da operação correspondente ou 0,2% sobre o valor da receita consolidada do grupo multinacional do ano anterior, caso sejam apresentadas informações imprecisas, incompletas ou omitidas, sobre (1) informações relativas à organização e às atividades do grupo multinacional ao qual o contribuinte pertence e outras entidades integrantes; e/ou (2) à distribuição global das receitas e dos ativos e ao tributo sobre a renda pago pelo grupo ao qual o contribuinte pertence, juntamente com os indicadores relacionados à sua atividade econômica global.

    Ou seja, se houver omissão ou imprecisão nas informações solicitadas, a autoridade fiscal poderá realocar ativos, adotar estimativas e aplicar multas de até 5% do valor da transação. Para evitar essa situação, o contribuinte deve garantir que todas as evidências que comprovem seus ativos e riscos são “confiáveis” e que disponibilizou à fiscalização todas as “informações necessárias”.

    A definição do escopo dos conceitos utilizados na nova lei é de extrema importância. Se a conduta que resulta na aplicação dessas medidas é “deixar de fornecer informações necessárias” e uma das medidas é a realocação de ativos que não possuam “evidências confiáveis” para basear sua distribuição, então se entende que, para que o contribuinte forneça todas as informações necessárias, essas informações devem ser confiáveis. Portanto, surge a dúvida: o que caracteriza uma evidência/informação confiável?

    E ainda mais: a autoridade fiscal deve justificar o motivo que a levou a considerar uma informação prestada como “não confiável”? Ou basta alegar que tal informação não é confiável para que possa exigir do contribuinte mais gastos de conformidade para provar a confiabilidade da informação prestada? Em outras palavras: quem é responsável pela prova? A fiscalização, de comprovar que uma informação não é confiável, ou o contribuinte, de comprovar que é?

    Jurisprudência
    Embora ainda não tenhamos casos envolvendo preços de transferência para analisar sob o prisma da nova legislação, é possível ter uma visão geral da jurisprudência no que diz respeito ao ônus da prova em questões tributárias.

    No emblemático do Tema 1.113, dos recursos especiais repetitivos, que tratava da base de cálculo adotada pelo contribuinte para fins de recolhimento do ITBI, a 1º Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que “o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN)”. Isto é: foi decidido que é da fiscalização o ônus da prova de comprovar que a informação declarada pelo contribuinte não é confiável.

    Apesar do precedente tratar de ITBI, o raciocínio pela presunção de veracidade da declaração do contribuinte encontra base no artigo 148 do CTN, favorecendo o princípio da verdade material, que impede o uso de presunções. Assim, totalmente aplicável a situações envolvendo preços de transferência: não seria aceitável que a autoridade fiscal simplesmente procedesse à realocação de ativos e adoção de estimativas sem devidamente comprovarque as provas apresentadas pelo pagador de impostos são inválidas.

    Mesmo se for concluído que houve omissão ou imprecisão na disponibilização das informações necessárias, ainda assim a utilização de estimativas unilateralmente pela autoridade fiscal deve ser a última medida a ser adotada, justamente em respeito à verdade material. Ou seja, é indispensável permitir ao pagador de impostos que forneça esclarecimentos e informações relevantes, ou seja, que ao menos possa justificar a base em que se fundamentou. Afinal, é consenso na jurisprudência que “o arbitramento não possui caráter punitivo, e deve ser utilizado somente após esgotadas as alternativas para solucionar a questão fiscal” [7].

    Desta forma, observa-se um cenário jurisprudencial que busca resguardar a verdade material e, por conseguinte, o pagador de impostos. Não obstante, diante da ausência de precedentes específicos e da completa alteração da legislação sobre preços de transferência, o que se pode constatar é a elevada possibilidade de contestação das operações pelas autoridades e, por conseguinte, a obrigação dos pagadores de impostos de respaldar suas operações com precaução e minúcia.

     

    [1] O conceito do princípio para o direito tributário internacional, com base no International Tax Glossary do IBFD (International Bureau of Fiscal Documentation), é de que se trata de um conceito do preço cobrado em um mercado aberto, de livre competitividade, ou seja, preço praticado a um braço de distância.

    [2] As discussões atuais tratam sobre a (i) ilegalidade da IN nº 243/02 (PRL60: majoração de tributação extrapolando limites legais); (ii) PRL20 x PRL60 (controvérsias sobre o conceito de produção local x mero reacondicionamento); (iii) PRL em revendas a partes ligadas; e (iv) Exclusão de benefícios de ICMS/PIS e Cofins na apuração do PRL.

    [3] BARRETO, Paulo Ayres, Imposto sobre a renda e preços de transferência. São Paulo: Dialética, 2001, p. 110.

    [4] Sétima Câmara, Acórdão nº 107-09411. Relator: Conselheiro Luiz Martins Valero. Data da sessão: 25/06/2008

    [5] 1º Conselho de Contribuintes, 1ª Câmara, Acórdão 101-94888, Recorrente: Astrazeneca do Brasil Ltda., Recurso 137928 – 17/03/2005, Relator: Sandra Maria Faroni

    [6] Câmara Superior de Recursos Fiscais, Primeira Turma, Processo n.º 16327.002604/2003-07, Recurso n.º 101-140912, Relator: José Clóvis Alves, data da sessão: 07/12/2007.

    [7] RESP 200600659900, JOSÉ DELGADO, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJ DATA:16/10/2006 PG:00314.

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