quarta-feira, 3 julho, 2024
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    Atenção voltada ao labor e os privilégios das mulheres


    O compromisso das mulheres pelos afazeres na vida econômica e social acostuma ser um tópico pouco debatido em geral, e praticamente ignorado pelos estudiosos do direito, apesar de estar presente no dia a dia feminino de forma intensa, permeando as relações públicas e privadas, numa naturalização que resulta no estabelecimento da disparidade entre gêneros e mantém injustiças.

    O tema dos afazeres ou da economia dos afazeres acaba sendo mais analisado em outras áreas da esfera de humanas, sob a ótica da economia, da história, da antropologia e da sociologia, do que na área jurídica, apesar da discussão crescente sobre a necessidade de julgamento sob a perspectiva de gênero, que acaba por instigar os operadores do direito a terem um olhar cuidadoso para demandas que, de alguma maneira, dialoguem com o universo feminino.

    A “economia dos cuidados” está associada às atividades fundamentais para manter as pessoas vivas e promover o seu bem-estar.

    Nesta lista estariam inclusos a higienização e manutenção das residências, a educação dos filhos, o cuidado com idosos e os cuidados pessoais e de higiene, que tanto podem ser realizados pelos integrantes de uma família quanto por babás, enfermeiras, empregadas domésticas, fisioterapeutas, manicures e muitos outros. Ademais, sob a perspectiva econômica, essa abordagem conceitual tem como objetivo mensurar e dimensionar o cuidado, de modo a incorporá-lo nas análises econômicas.

    Com efeito, não se pode olvidar que o direito das mulheres e o próprio movimento feminista sempre teve relação com a economia, tanto que Virginia Woolf em seu célebre ensaio, de 1929, já dizia que para que uma mulher pudesse escrever seria necessário que ela tivesse um teto todo seu, e isso requeria recursos financeiros.

    A correlação feita por Virginia Woolf também pode ser vista quando, no final do século 19 e início do século 20, as mulheres começam a se articular para conquistarem o direito à herança, o direito à propriedade, o direito de abrir os próprios negócios, o direito ao emprego sem a autorização do marido e, por fim, o direito a salários iguais.

    O apontamento histórico de que “as mulheres foram trabalhar nos anos 1960” merece correção, pois essa alegação deixa de reconhecer que as mulheres sempre estiveram presentes no mundo do trabalho e, na verdade, o que ocorreu é que, a partir da década de 60, muitas mulheres passaram a acumular jornadas de trabalho – a não remunerada, de cuidados de sua família, com a remunerada, em empregos públicos ou privados, formais ou informais.

    Ou seja, somaram o labor doméstico à entrada no mercado, fazendo com que uma de suas jornadas de trabalho passasse a ser remunerada.

    Reprodução

    O que deve ser percebido é que as mulheres, que antes desempenhavam funções na vida privada como administradoras do lar, cuidadoras, cozinheiras, educadoras, passadeiras, babás dentre outras tarefas, começaram a concorrer, no espaço público, com os homens como executivas, médicas, advogadas, professoras universitárias, cientistas, engenheiras e demais profissões majoritariamente ocupadas pelo sexo masculino.

    Há também um grupo grande de mulheres que não tiveram essa ascensão educacional e não passaram a ser melhor remuneradas por suas atividades profissionais. Na realidade brasileira, estas mulheres são negras, pobres e vivem em favelas ou bairros com menor infraestrutura, com precariedade de oferta de serviços essenciais.

    No Brasil, a atenção ao tema dos cuidados exercidos no âmbito doméstico, remunerados ou não, surgiu, a partir do final dos anos de 1980, de forma escassa e pontual, em normas previdenciárias (para proteção da dona de casa pela seguridade social), trabalhistas (com destaque para a PEC das empregadas domésticas), sobre maternidade e primeira infância, sobre atenção às pessoas com deficiência – e em políticas públicas com perspectiva de gênero.

    No entanto, a consideraçãodos zelos ou da prerrogativa de zelar como tópico autônomo para desenho e aplicação de políticas públicas ainda é um desafio. O tema adquiriu maior concretude em 2023, com a instituição, pelo governo federal, de um Grupo de Trabalho Interministerial (GIT) com o propósito de elaborar as propostas da Política Nacional de Cuidados e do Plano Nacional de Cuidados.

    No contexto latino-americano, em janeiro de 2023, o ato de zelar foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA) como um direito, por provocação da Argentina. Este Estado submeteu à Secretaria da Corte Interamericana de Direitos Humanos um pedido de parecer consultivo sobre “O conteúdo e o alcance do direito de zelar e sua inter-relação com outros direitos”.

    Neste pedido, a Argentina justifica que

    “Os cuidados são uma necessidade, um labor e um direito. Uma necessidade na medida em que tornam possível a existência humana, uma vez que todas as pessoas necessitam de cuidados para o seu bem-estar e desenvolvimento. Um labor em função do seu valor socioeconômico. Um direito que deve ser garantido em suas três dimensões essenciais: fornecer cuidados, receber cuidados e o autopreservação.”

    A Corte Interamericana estabeleceu prazo, até novembro de 2023, para entidades e Estados apresentarem observações escritas. Houve numerosas contribuições. Como resultado, em janeiro deste ano, foi convocada audiência pública, na modalidade presencial, de 12 a 15 de março, para discutir o tema. O processo em andamento aponta perspectivas de avanço e de fortalecimento do rol de direitos humanos das mulheres.

    A presente ampliação e a institucionalização, no plano nacional e internacional, reflete o amadurecimento das demandas das mulheres por igualdade, haja vista que a realidade demonstrou que a capacidade delas arcarem com o próprio sustento bem como de assumirem compromissos financeiros equivalentes para gastos da família não as levou para a equânime divisão das tarefas domésticas e de cuidados.

    A perda de oportunidades continua a inclinar-se para o coletivo feminino e, para as classes média e alta, é mascarada de “opção por não trabalhar fora”, visto que os custos financeiros da família com a contratação de serviços de cuidados “não compensam”.

    Para as famílias mais pobres, em que não existe “alternativa” de viver sem a renda da mulher, as soluções para cuidar dos filhos são buscadas na comunidade, com redes de apoio formadas por parentes idosos já aposentados e vizinhos. A interseccionalidade entre raça, gênero e classe social é essencial para abordagem sobre ações e leis protetivas do exercício dos cuidados.

    A figura da empregada doméstica no Brasil decorre do passado escravocrata e é uma personagem central na organização dos cuidados em nosso país. Dados indicam que há quase 7 milhões de pessoas que atuam na profissão de domésticas no país, destas aproximadamente 6 milhões são mulheres e quase 4 milhões são mulheres negras.

    Sob a ótica dos direitos coletivos das mulheres, vale ressaltar que mesmo nas unidades domésticas que contam com a contratação de trabalhadoras domésticas é necessário reconhecer que o peso desta realização recai primordialmente sobre as mulheres, que em muitas vezes se traduz em obrigações que levam à perda de oportunidades de melhores empregos e menores salários.

    Ao mesmo tempo, as relações dos empregadores com as trabalhadoras domésticas reforçam não apenas a desigualdade entre gêneros, mas também servem para estabilizar (ou alimentar) a diferença entre a mulher que contrata e comanda o trabalho de cuidados no âmbito doméstico e a que os exerce.

    Dessa forma, falar em direitos coletivos das mulheres e cuidados é falar contextos diversos de vulnerabilidade, que vão desde a perda de oportunidades das mulheres, que têm dimensões diferentes para as de classes sociais mais ou menos favorecidas, até a necessidade de se tratar a questão sob a lente da interseccionalidade, que atinge mulheres negras e pobres que também acumulam a tarefa profissional de cuidar com as responsabilidades domésticas não remuneradas.

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