sexta-feira, 5 julho, 2024
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    Autêntico acesso em moradia e a Tese de Repercussão Geral nº 280 do STF

    Ponto de Vista

    A impenetrabilidade de moradia está prevista no artigo 5º, XI, da Constituição, e estabelece que a “casa é santuário inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo entrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Nessa linha, tanto a doutrina [1] quanto a jurisprudência [2] brasileira sempre reconheceram que, havendo a ocorrência de flagrante delito, estariam presentes razões necessárias e suficientes para o acesso em moradia, com o objetivo de fazer cessar a lesão ao bem jurídico correspondente e efetuar a prisão em flagrante dos envolvidos, especialmente em circunstâncias de crimes permanentes.

    O que antes era compreendido como um entendimento pacífico e isento de quaisquer debates, pouco a pouco se tornou objeto de excessos — senão abusos — por parte, especialmente, dos agentes de segurança pública. Denúncias desprovidas de elementos mínimos e violações irascíveis de direitos mediante incursões domiciliares infrutíferas geraram a necessidade de um melhor regramento da matéria, a fim de se restabelecer a garantia estatuída pela Carta Constitucional.

    Através do leading case RE 603.616/RO [3], a Suprema Corte instituiu a Tese de Repercussão Geral nº 280 [4], segundo a qual, nas hipóteses de crime permanente e em havendo elementos mínimos (fundadas razões) que sustentem a ocorrência de flagrante, é legítimo o acesso forçado em moradia para fazer cessar a lesão, ou ameaça de lesão, ao bem jurídico em perigo. É possível, desse modo, a busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial, isto é, o ingresso forçado em residência, em caso de flagrante delito, especialmente em casos de crimes permanentes.

    De outro lado, o acesso forçado em moradia, sem uma justificativa prévia e conforme o Direito, é arbitrária. Devem os agentes estatais demonstrar circunstancialmente que havia elementos mínimos a caracterizar as fundadas razões (justa causa) para a medida de acesso, sob pena de sua invalidação.

    Presentes as fundadas razões, nos termos exigidos pela Suprema Corte, não há que se discutir acerca da (1) necessidade de mandado judicial; (2) autorização escrita do responsável pelo domicílio; ou (3) acompanhamento por vídeo para a concretização da atividade policial. Tanto o (1) mandado judicial quanto a (2) autorização escrita para acesso em moradia configuram situações de exceção à garantia constitucional de impenetrabilidade de moradia, logo, faz-se indispensável a autorização prévia do investigado (gravada ou por escrito) ou a concessão de ordem judicial permitindo a incursão com fim certo. Todavia, a ordem judicial ou o assentimento voluntário, em nada se confundem com aqueloutras hipóteses previstas expressamente no artigo 5º, XI, da CF [5], como situações de desastre ou em caso de flagrante delito.

    Decisões conflitantes

    É saudável observar que a existência de decisões intermitentes, senão inconstantes, do Superior Tribunal de Justiça — mais especificamente das 5ª e 6ª Turmas [6] — não devem ser consideradas de forma absoluta na condução dos processos criminais, especialmente quando fulminam ações policiais firmemente amparadas na Tese nº 280 da Suprema Corte. Inclusive, a própria 5ª Turma do STJ oscila em seus posicionamentos sobre o tema. Já decidiu que o estado flagrancial do delito de tráfico de drogas consubstancia uma das exceções à impenetrabilidade de moradia, prevista no inciso XI do artigo 5º da Constituição, não havendo se falar, pois, em eventual ilegalidade no acesso dos policiais na residência dos suspeitos, conforme é possível extrair do AgRg no HC nº 826.743/SP [7].

    Seja como for, devem ser utilizadas como paradigma de interpretação do texto constitucional as decisões provenientes do legítimo hermeneuta e guardião da Constituição [8]. Pretender imiscuir na Tese nº 280 do Supremo Tribunal Federal elementos exógenos, como (1) termos de autorização, (2) filmagens em tempo real, (3) diligências investigatórias prévias, (4) dentre outros, é usurpar a atribuição confiada à Suprema Corte e investir contra as competências constitucionalmente estabelecidas na Carta Magna.

    Não é por outra razão que, em decisões mais recentes, o STF tem reconhecido que o STJ vem extrapolando sua competência jurisdicional (e.g., RE 1.447.939/SP [9] e RE 1.447.374/MS [10]), ao restringir indevidamente as exceções constitucionais à impenetrabilidade de moradia e entabular exigências extraneus, a exemplo da “diligência investigatória prévia”, em clara afronta ao Tema nº 280:

    “(…) a Constituição Federal estabelece específica e restritamente as hipóteses possíveis de violabilidade domiciliar, para que a “casa” não se transforme em garantia de impunidade de crimes, que em seu interior se pratiquem ou se pretendam ocultar. (…) Ocorre, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiça, no caso concreto ora sob análise, após aplicar o Tema 280 de Repercussão Geral dessa SUPREMA CORTE, foi mais longe, alegando que não obstante os agentes de segurança pública tenham recebido denúncia anônima acerca do tráfico de drogas no local e o suspeito, conhecido como chefe do tráfico na região, tenha empreendido fuga para dentro do imóvel ao perceber a presença dos policiais, tais fatos não constituem fundamentos hábeis a permitir o ingresso na casa do acusado. Assim, entendeu que o ingresso dos policiais no imóvel somente poderia ocorrer após “prévias diligências”, desconsiderando as circunstâncias do caso concreto, quais sejam: denúncia anônima, suspeito conhecido como chefe do tráfico e fuga empreendida após a chegada dos policiais. 6. Nesse ponto, não agiu com o costumeiro acerto o Tribunal de origem, pois acrescentou requisitos inexistentes no inciso XI, do artigo 5º da Constituição Federal, desrespeitando, dessa maneira, os parâmetros definidos no Tema 280 de Repercussão Geral por essa SUPREMA CORTE (…)”

    Com base no entendimento já fixado pela sistemática da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal tem encerrada como válidas as ações policiais em casos em que o acesso em residência estava plenamente justificado pelas circunstâncias concretas do flagrante, o que tem garantido a validade das provas obtidas e afastado decisões desmedidas do Superior Tribunal de Justiça (e.g. Recursos Extraordinários 1.447.939/SP e 1.447.374/MS).

    Não é legítimo que critérios não previstos em norma alguma sejam criados pelo Tribunal da Cidadania, em franco desrespeito àquilo entabulado em sede de repercussão geral pela Corte Suprema. Deve prevalecer, naturalmente, o entendimento da Suprema Corte, inobstante o expressivo volume de decisões do STJ em sentido oposto. É de incumbência do STF conferir a interpretação constitucional adequada, atribuição que tem sido, repetidas vezes, vilipendiada pelo STJ em casos deste jaez, ao cunhar exigências não previstas em norma alguma, em espúria “inventividade judicial”.

    Os casos de tráfico de droga. Rememore-se

    O tráfico de substâncias entorpecentes, de cunho perpétuo, estende a sua prática ao longo do tempo, uma vez que a conduta ilícita é considerada contínua. Portanto, os mandados de busca e apreensão podem ser dispensados, e a entrada no domicílio não requer autorização, desde que justificada a entrada forçada.

    Quando há justificativa e suspeita fundamentada de que um crime está sendo continuamente cometido em um determinado local, como é o caso do tráfico de drogas, as autoridades de segurança têm respaldo constitucional para adentrar e interromper a ação criminosa, sem necessidade de autorização judicial, com base na Tese de Repercussão Geral nº 280 do Supremo Tribunal Federal, desde que haja informações sobre a prática criminosa naquele ambiente. A obtenção de um “Termo de Autorização de Entrada” não descaracteriza a situação de flagrante, nem invalida a aplicação da Tese nº 280 do STF.

    As decisões divergentes das 5ª e 6ª Turmas do STJ, que ora validam, ora consideram nulas situações relacionadas a flagrantes de tráfico de drogas, necessitam ser analisadas cautelosamente, sob risco de prejudicar a atuação policial no Brasil. Na prática, devido às decisões contraditórias, os agentes policiais têm adotado uma abordagem excessivamente cuidadosa, muitas vezes em desacordo com a realidade da atividade policial ostensiva. É exigido um zelo excessivo dos agentes que os afasta de sua legítima atuação, mesmo quando há justificativas fundamentadas.

    Conclusão

    Em suas recentes decisões, a Suprema Corte tem invalidado aquelas do Superior Tribunal de Justiça que desrespeitam a Constituição e adicionam condições injustificadas ao exercício das exceções constitucionais, como a exigência de autorização por escrito e filmagens em tempo real.

    É crucial que os tribunais subconstitucionais compreendam devidamente o alcance da expressão “fundadas razões”, de forma a permitir, por um lado, a repressão adequada dos ilícitos que ocorrem em residências particulares, e, por outro lado, o afastamento e correção de excessos e abusos das autoridades públicas.

    Cabe ao intérprete legítimo da Constituição estabelecer as diretrizes pelas quais os demais integrantes do Poder Judiciário devem pautar suas decisões judiciais, impedindo que a atividade policial seja cerceada por exigências externas, como autorizações por escrito, filmagens em tempo real ou investigações prévias, que inviabilizam o trabalho das forças de segurança pública.

    O exercício dos direitos e garantias previstos no artigo 5º, XI, da CF estão explicitamente estabelecidos na Constituição e delineados pela Tese de Repercussão Geral nº 280 do Supremo Tribunal Federal, não sendo apropriado impor exigências externas que impeçam seu pleno exercício, sob risco de inovar contrariamente às exceções constitucionais e desrespeitar o que foi devidamente estabelecido em nosso sistema jurídico pelo Guardião Constitucional.

    [1] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas S.A., 2013, p. 370.

    [2] STJ (Superior Tribunal de Justiça). Habeas Corpus nº 223.715/SP. Brasília, 2011. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201102622350. Acesso em: novembro de 2023.

    [3] STF (Supremo Tribunal Federal). Recurso Extraordinário nº 603.616/RO. Brasília 2015. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3774503. Acesso em: novembro de 2023.

    [4] É o inteiro teor da Tese de Repercussão Geral nº 280, STF: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados”.

    [5] “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;”

    [6] AgRg no REsp 1.865.363/SP; AgInt no HC 566.818/RJ; HC 611.918/SP; AgRg nos EDcl na RvCr 5869/SC; AgRg no RHC 183026/RS; e AgRg no HC 826743/SP.

    [7] STJ (Superior Tribunal de Justiça). Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 826.743/SP. Brasília, 2023. Disponível.em.https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=202301817933. Acesso em: novembro de 2023.

    [8] Art. 102 da CF: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (…).”

    [9] STF (Supremo Tribunal Federal). Recurso Extraordinário nº 1.447.939/SP. Brasília 2023. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15360262279&ext=.pdf. Acesso em: novembro de 2023.

    [10] STF (Supremo Tribunal Federal). Recurso Extraordinário nº 1.447.374/MS. Brasília, 2023. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=771484106. Acesso em: novembro de 2023.

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