terça-feira, 2 julho, 2024
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    Autorização dos municípios de litigarem no exterior devido a desastres ambientais



    Ponto de Vista

    O Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração) ingressou no STF (Supremo Tribunal Federal) com a ADPF 1.178, objetivando evitar que municípios brasileiros entrem com ações de indenização em jurisdições estrangeiras contra empresas de mineração estrangeiras em virtude de desastres ambientais. A justificativa é que os municípios não possuem legitimidade para litigar diretamente em tribunais estrangeiros. A petição inicial da ação apresenta diversas questões técnicas quanto à sua admissibilidade.

    Presidência da República

    Além disso, desconsidera aspectos essenciais sobre a autonomia constitucional dos municípios como entes federados e como pessoas jurídicas de direito público. A ADPF 1.178 não busca “evitar ou reparar violação a preceito fundamental”, conforme estabelecido na Lei 9.882/1999, que regulamentou o artigo 102, § 1º da CRFB, mas sim atender ao interesse particular de uma única empresa de mineração estrangeira. Esta empresa está no polo passivo de uma ação coletiva nos tribunais do Reino Unido, com uma audiência importante programada para algumas semanas. Ou seja, não é apenas uma ação individual disfarçada de controle “abstrato”, mas também traz consigo considerável dose de oportunismo, violando a lealdade processual.

    Primeiramente, o equívoco mais evidente. A ADPF tem como requisito fundamental a “subsidiariedade” prevista no artigo 4º, §1º, da Lei 9.882/1999: “não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”.

    O próprio Ibram reconhece na ADPF 1.178 que não cumpriu o requisito, solicitando que o STF o dispense, pois “não há, dentre as ações constitucionais, instrumento jurídico que permita remediar a lesão”. Tal dispensa somente seria cabível caso outros meios não resultassem em uma decisão com efeito vinculante para todos (erga omnes).

    Situações desse tipo são extremamente raras e não se enquadram no caso em questão. Como ressaltou o ministro Luiz Roberto Barroso na ADPF 533, situações individuais com peculiaridades não homogêneas não podem ser objeto de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental. Aqui, o interesse é o das empresas de mineração de evitar a responsabilização pelos danos causados.

    Municípios afetados

    Os municípios brasileiros estão buscando a compensação perante tribunais estrangeiros pelos prejuízos sofridos, privando seus habitantes de serviços públicos essenciais, como saúde e educação. Fica evidente que quem teve um “preceito fundamental” violado são os municípios e não as empresas de mineração.

    A ADPF somente se justificaria caso nenhum outro meio, judicial ou administrativo, pudesse evitar o ato prejudicial. O professor José Afonso da Silva ensina que as ADPF surgiram de uma evolução do direito alemão, a partir de limitações em outras medidas judiciais, como a Popularklage (semelhante à Ação Popular) e o Verfassungsbeschwerde (semelhante ao Mandado de Segurança).

    No caso presente, nenhuma medida foi tomada contra os municípios e a tese apresentada na ADPF 1.178 nunca foi discutida anteriormente. Portanto, tanto ações populares para “solicitar a anulação ou declaração de nulidade de atos prejudiciais”, conforme previsto na Lei 4.717/1965, quanto mandados de segurança poderiam possivelmente ser apropriados com a estratégia jurídica adequada, dentre várias outras medidas judiciais que seriam mais adequadas.

    Outro erro técnico na ADPF 1178 é não reconhecer que o artigo 21, inciso I, da CRFB, ao mencionar que compete à União “manter relações com estados estrangeiros e participar de organizações internacionais”, trata apenas da capacidade de manter relações diplomáticas e celebrar tratados internacionais. Tal interpretação fica clara ao se analisar o artigo 84 da CRFB, que elenca as competências do Presidente da República nesse exato sentido.

    O artigo 21, inciso I, não diz respeito à representação perante a Justiça no exterior.de uma entidade jurídica de direito público ou privado. Essa representação é possível conforme o artigo 41 do CC, que reconhece os municípios como entidades jurídicas de direito público.

    Os municípios são entidades federativas autônomas conforme o artigo 18 da CRFB e não cabe à União representá-los no exterior. A Constituição é clara em seu artigo 30, que compete aos municípios “administrar suas receitas” e “preservar o patrimônio histórico-cultural local”.

    Spacca

    Se o município sofreu danos, cabe a ele buscar indenização. Além disso, a interpretação buscada pela ADPF 1.178 confrontaria a tradição municipalista do direito constitucional brasileiro, refletida em seu reconhecimento como entidades federativas, o que é uma excepcionalidade no direito comparado. Se a tese do Ibram fosse aceita, isso restringiria a capacidade dos municípios de estabelecer qualquer tipo de relação com entidades jurídicas privadas e públicas no exterior.

    Clóvis Bevilaqua, ao analisar o CC de 1916, já afirmava que o reconhecimento dos municípios como entidades jurídicas lhes outorgava autonomia para “adquirir direitos, assumir obrigações e estar em juízo, como autores ou réus”. Essa autonomia permite aos municípios firmar contratos com empresas estrangeiras, importar medicamentos ou receber financiamentos para infraestrutura.

    A tese do Ibram impediria municípios de celebrarem contratos com entidades jurídicas estrangeiras. Muitos contratos de financiamento de infraestrutura envolvem organismos multilaterais como Banco Mundial ou BID. Seguindo essa linha de raciocínio, os estados também não poderiam ter representação perante entidades jurídicas estrangeiras. O esforço elogiável de municípios e estados brasileiros para participarem de acordos visando o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19 seria anulado, pois somente a União poderia representá-los no exterior.

    Ademais, não se poderia aplicar uma lógica discriminatória ao afirmar que os municípios poderiam ser representados perante o Judiciário brasileiro, mas não perante o Judiciário estrangeiro. O Art. 41 do CC corretamente não estipula essa distinção, pois o artigo 5º, XLI, da CRFB prevê o combate a qualquer forma de discriminação. Tendo a CRFB previsto o combate à xenofobia, não se pode adotar uma interpretação na qual municípios estrangeiros poderiam acessar os tribunais brasileiros e o inverso não seria permitido aos municípios brasileiros.

    Existem diversas outras formas tradicionais de cooperação entre cidades de diferentes países, como as cidades irmãs. No caso de São Paulo, a Lei Municipal 14.471/2007 considera cidades irmãs Milão, Lisboa, Buenos Aires, entre outras, e autoriza o município a firmar acordos bilaterais, convênios e programas de cooperação técnica. A visão do autor da ADPF 1.178 colocaria todos esses acordos em risco e posicionaria o Brasil como um pária internacional, recusando formas bem estabelecidas de cooperação entre povos.

    Surpresa

    Minha surpresa com os argumentos apresentados na ADPF 1.178 advém da posição de estudioso das teorias da personalidade jurídica. Uma das primeiras teorias sobre a personalidade jurídica foi a de Pufendorf, que caracterizou o Estado como pessoa moral. Os municípios brasileiros, como pessoas morais, agiram corretamente ao buscar ressarcimento pelos danos sofridos. Impedir tal conduta, conforme desejado pelas mineradoras, seria antiético.

    O direito brasileiro limita comportamentos antiéticos, assegurando que as ADPFs sejam utilizadas exclusivamente para proteger preceitos fundamentais e não interesses particulares. A CRFB veta práticas xenofóbicas que restringem a liberdade dos cidadãos brasileiros.

    Se os municípios não podem ser representados no exterior, então, seguindo a mesma lógica outras entidades jurídicas também não poderiam. Em que momento as pessoas naturais também não poderiam ser representadas perante outros países? É o que ocorreu em muitos países autoritários, nos quais a autonomia não apenas dos entes federativos, mas de todas as pessoas foi restringida em nome do “interesse nacional”, da “soberania” ou de tantos outros argumentos que justificaram violações de direitos humanos.

    Utilizar esses sentimentos xenófobos para impedir municípios de regiões já bastante empobrecidas de serem indenizados por uma mineradora estrangeira em uma corte no exterior é uma crueldade. Poucas situações conseguem equacionar de forma tão precisa a imoralidade com a falta de técnica jurídica. Esta seria uma delas.

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