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    Barulho, ruído, poluição auditiva e proteção jurídica — questões factuais



    Ambiente Jurídico

    No dia 4 de setembro de 2021, tomei algumas notas sobre os espaços urbanos sustentáveis[1] e os obstáculos que a urbanização apresenta à natureza, ao ecossistema e aos seres humanos. Um desses desafios é a poluição sonora, que está presente nas grandes, médias e pequenas cidades e que foi abordada no artigo de 11-11-2023[2]. Conforme mencionado na ocasião, o som é uma onda mecânica acústica que comprime o sistema auditivo e permite a percepção do ambiente externo com sensações de dor ou de prazer; é caracterizado pela intensidade, pela frequência e pelo timbre, ou seja, pelo formato da onda sonora que diferencia os sons da mesma frequência produzidos por fontes sonoras diferentes. O conjunto da intensidade, da frequência e do timbre da onda sonora diferencia o que denominamos de música, de ruído, de barulho, sempre dependendo da percepção da pessoa que ouve[3]. Como destacamos anteriormente, a poluição sonora ocorre quando os sons ultrapassam os níveis considerados normais para os limites da audição e constitui uma ameaça à saúde humana[4].

    Ricardo Cintra Torres de Carvalho – desembargador TJ

    Embora não haja menção explícita ao som, a poluição sonora pode ser incluída no art. 3º, inciso III, alíneas ‘b’ (criem condições adversas às atividades sociais e econômicas), ‘d’ (afetem as condições sanitárias do meio ambiente) e, principalmente, ‘e’ (lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos) da LF nº 6.938/81 de 31-8-1981, que aborda a Política Nacional do Meio Ambiente. Trata-se de uma poluição distinta, que interfere no meio ambiente enquanto está sendo produzida e que, ao cessar, não deixa vestígios no ecossistema. Em termos práticos, é uma poluição causada por seres humanos que acarreta prejuízos aos próprios seres humanos, em particular.

    A legitimidade ativa é determinada pela natureza da poluição e pelo grau de interferência no ambiente; utilizando uma expressão do Ministro Herman Benjamin, o direito de vizinhança predomina no barulho ‘parede a parede’, em que as ações são movidas pelos vizinhos e particulares prejudicados, ao passo que o direito difuso se manifesta quando o barulho se propaga por áreas mais extensas, afetando terceiros que não têm ligação direta com a fonte sonora, o que legitima a intervenção do Ministério Público ou da administração[5]. Além da ordem de cessação do barulho, a poluição sonora repetida pode configurar dano moral coletivo passível de indenização, o que deve ser avaliado caso a caso[6]. Deve-se observar que “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que a defesa de direitos relacionados ao direito ambiental, incluindo aqueles que tratam da ‘poluição sonora’, se enquadram no conceito de interesses difusos, transindividuais, sendo desnecessária a autorização específica dos associados para a propositura da ação civil pública por parte de associação”[7]. A poluição sonora resulta do descumprimento dos padrões e limites exigidos, sendo irrelevante o número de pessoas afetadas ou mesmo a existência de reclamação prévia para legitimar a atuação da administração[8].

    A fiscalização e a repressão da poluição sonora são de responsabilidade de todos os entes da Federação, independentemente da responsabilidade pelo licenciamento da atividade, competência comum previstaNo art. 23 da Constituição Federal não afastada pelo art. 17 da LCF nº 140/01 ante o dever de cooperação mencionado em seu art. 1º [9].

    O Supremo Tribunal Federal tem sido sensível à questão ao analisar a constitucionalidade de leis municipais que proíbam a soltura de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos que produzem estampido. Ao apreciar a ADPF nº 567-SP, o Pleno do STF julgou constitucional a LM nº 16.897/18 de São Paulo que proíbe o manuseio, a utilização, a queima e a soltura de fogos de estampido e de artifício e de artefatos pirotécnicos de efeito sonoro ruidoso: de acordo com o relator, a lei buscou promover um padrão mais elevado de proteção à saúde e ao meio ambiente, em especial a proteção de pessoas sensíveis aos estampidos e a proteção da fauna, e foi editada dentro de limites razoáveis do regular exercício de competência legislativa pelo município[10].

    No mesmo sentido o Supremo Tribunal manteve decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, RE nº 1.210.727-SP, com repercussão geral, 9-5-2023, Rel. Luiz Fux, Tema STF nº 1056 (Informativo nº 1.093), em que se discutiu, à luz dos art. 5º, LIV e LV, 23, IV, 24, VI e 30, I e II da CF a constitucionalidade da LM nº 6.212/17 de Itapetininga-SP, que dispõe sobre a proibição, em zona urbana da municipalidade, da soltura de fogos de artifícios e artefatos pirotécnicos que produzam estampido, o Pleno do STF fixou a seguinte tese “é constitucional formal e materialmente lei municipal que proíbe a soltura de fogos de artifícios e artefatos pirotécnicos produtores de estampidos” (Tema nº 1.056). A decisão aprofunda a fundamentação da ADPF nº 567-SP e afasta a argumentação do município quanto a meios menos gravosos:

    Ressalto, primeiramente, que a sugerida medida de regulamentação de horários não se adequaria à finalidade de proteger os danos causados a pessoas no transtorno do espectro autista e aos animais pela poluição sonora que advém da soltura de fogos de artifício com estampido. O mesmo ocorreria com o controle de decibéis, uma vez que, além da dificuldade de fiscalização da medida, ainda que fosse fixado limite em baixa intensidade, os efeitos danosos não seriam extirpados. Como assinalou o Ministro Alexandre de Moraes, Relator da ADPF 567, no voto condutor do acórdão, in verbis: […]

    A poluição sonora tem gerado intensa litigância. O site do Tribunal de Justiça de São Paulo indica 3.247 casos julgados [há uma imprecisão na seleção dos precedentes] nos últimos anos na Seção de Direito Privado, ações com fundamento no direito de vizinhança, e de Direito Público, ações movidas pelo Ministério Público ou pela administração quando o ruído atinge terceiros. A jurisprudência diferencia a poluição diretamente identificada da poluição cumulativa, em que o ruído do estabelecimento comercial é somado ao ruído de outras fontes[11] e determinou a construção de barreira acústica para mitigação de ruídos causada por rodovia[12] ou o encerramento as 23:59 hs de evento cultural noturno[13]. Por outro lado, considerou lícita a emissão de ruído dentro do limite regulamentado, apesar do incômodo causado a dois condomínios residenciais limítrofes[14].

    A poluição sonora é um tema que causa crescente preocupação na vida urbana e gera crescente número de litígios com diversas causas, fundamentos e resultado. Há que discipliná-la para que nossas cidades sejam sustentáveis, na medida do possível.

    [1] Anotações sobre as metrópoles ecologicamente equilibradas — II – Consultor Jurídico (conjur.com.br)

    [2]

    [3] Os índices de ruído aceitáveis podem ser indicados pela Organização Mundial de Saúde em

    [4] Este artigo contou com a relevante colaboração da Dra. Natasha Souza Garcia de Carvalho na pesquisa e discussão dos diversos aspectos envolvidos.

    [5] Ministério Público de Minas Gerais v. Keliana Bar Ltda, REsp nº 1.051.306-MG, STJ, 16-10-2008, 2ª Turma, Rel. Herman Benjamin. A sentença e o acórdão haviam negado a legitimidade ativa do Ministério Público por tratar-se de um ruído identificado e localizado e o recurso especial foi provido. Consta do acórdão: “2. Embora tenha reconhecido a existência de poluição sonora, o Tribunal de origem asseverou que os interesses envolvidos são individuais, porquanto afetos a apenas uma parcela da população municipal. 3. A poluição sonora, mesmo em área urbana, mostra-se tão nociva aos seres humanos e ao meio ambiente como outras atividades que atingem a “sadia qualidade de vida”, referida no art. 225, caput, da Constituição Federal. 4. O direito ao silêncio é uma das manifestações jurídicas mais atuais da pós-modernidade e da vida em sociedade, inclusive nos grandes centros urbanos. […] 7. Tratando-se de poluição sonora, e não de simples incômodo restrito aos lindeiros de parede, a atuação do Ministério Público não se dirige à tutela de direitos individuais de vizinhança, na acepção civilista tradicional, e, sim, à defesa do meio ambiente, da saúde e da tranquilidade pública, bens de natureza difusa. 8. O Ministério Público possui legitimidade para propor Ação Civil Pública com o fito de prevenir ou cessar qualquer tipo de poluição, inclusive sonora, bem omo buscar a reparação pelos danos dela decorrentes. 9. A indeterminação dos sujeitos, considerada ao se fixar a legitimação para agir na Ação Civil Pública, não é incompatível com a existência de vítimas individualizadas ou individualizáveis, bastando que os bens jurídicos afetados sejam, no atacado, associados a valores maiores da sociedade, compartilhados por todos, e a todos igualmente garantidos, pela norma constitucional ou legal, como é o caso do meio ambiente ecologicamente equilibrado e da saúde.”

    [6] Cencosud Brasil Comercial Ltda e Cencosud Brasil S/A v. Ministério Público de Sergipe, AgRg no AREsp nº 737.887-SE, STJ, 2ª Turma, 3-9-2015, Rel. Humberto Martins.

    [7] Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC v. Associação dos Moradores e Amigos de Moema e outros, AgInt no AREsp nº 1.745.798-SP, STJ, 2ª Turma, 11-4-2022, Rel. Mauro Campbell Marques, v.u.).

    [8] Município de São Paulo v. Ministério Público de São Paulo, AgInt no REsp nº 1.676.465-SP, STJ, 2ª Turma, 8-10-2019, Rel. Herman Benjamin: “[…] 8. Por fim, para a caracterização da infração sonora – modalidade de poluição que afeta ou pode afetar a saúde, a tranquilidade, o descanso e o bem-estar em geral -, irrelevante que a reclamação provenha de uma só pessoa ou vizinho, ou mesmo que inexista qualquer reclamação. Em vez de número de afetados ou reclamantes, a fita métrica da poluição sonora se expressa tão somente em juízo objetivo e formal sobre o cumprimento, ou não, dos padrões e limites exigidos.

    [9] AgInt nº 1.676.465-SP, acima mencionado. A CETESB e o Municípiode SP) foi estabelecido a coordenação e limiar de ruído originados por companhia de transporte autuada pela administração mais de meia dúzia de vezes. O tribunal rejeitou o recurso do Município que buscava limitar essa responsabilidade apenas ao órgão concedente: “5. Dentro da esfera do controle da poluição sonora, sem prejuízo da competência de outras esferas federativas, comumente o Município, por dever e em nome próprios – ou seja, não se trata de competência supletiva, acionada por omissão ou desconhecimento da infração pelo órgão concedente -, será chamado a exercer suas responsabilidades exclusivas ou compartilhadas, seguimento lógico de ser titular primeiro do officium urbanístico. Afinal, incumbe-lhe, amparado em inerente e constitucional poder de polícia, expedir licenças, autorizações e alvarás de regramento do uso do território urbano e das atividades, econômicas ou não, das quais resultem violação de padrões e limites sonoros. 6. […] 7. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a União, os Estados, o Distrito Federal e Municípios compartilham, em pé de igualdade, o dever de fiscalizar administrativamente a poluição e a degradação ambiental, competência comum que se acentua nos casos de atividades e empreendimentos não licenciados. “No que tange à proteção ao meio ambiente, não se pode dizer que há predominância do interesse do Município. Pelo contrário, é escusado afirmar que o interesse à proteção ao meio ambiente é de todos e de cada um dos habitantes do país e, certamente, de todo o mundo” (REsp 194.617/PR, Rel. Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, DJ de 1º/7/2002, p. 278). Em sentido assemelhado: “Não há falar em competência exclusiva de um ente da federação para promover medidas protetivas. Impõe-se amplo aparato de fiscalização a ser exercido pelos quatro entes federados, independentemente do local onde a ameaça ou o dano estejam ocorrendo. O Poder de Polícia Ambiental pode – e deve – ser exercido por todos os entes da Federação, pois se trata de competência comum, prevista constitucionalmente. Portanto, a competência material para o trato das questões ambiental é comum a todos os entes. Diante de uma infração ambiental, os agentes de fiscalização ambiental federal, estadual ou municipal terão o dever de agir imediatamente, obstando a perpetuação da infração” (AgInt no REsp 1.532.643/SC, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 23/10/2017). Na mesma linha: AgRg no REsp 1.417.023/PR, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de 25/8/2015; REsp 1.560.916/AL, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe de 9/12/2016; AgInt no REsp 1.484.933/CE, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe de 29/3/2017.

    [10] ADPF nº 567-SP, STF, Pleno, 1º-3-2021, Rel. Min. Alexandre de Moraes. Consta do acórdão: “Quanto à proteção à saúde, documentos trazidos aos autos reportam-se à hipersensibilidade auditiva no transtorno do espectro autístico. Artigo científico demonstrou, em relação à hipersensibilidade auditiva, que 63% dos autistas não suportam estímulos acima de 80 decibéis (ERISSANDRA GOMES, FLEMING SALVADOR PEDROSO e MÁRIO BERNARDES WAGNER. Hipersensibilidade auditiva no transtorno do espectro autístico, peça 76). Consta, por outro lado, que a poluição sonora advinda da explosão de fogos de artifício pode alcançar de 150 a 175 decibéis (peça 74), ou seja, cerca de duas vezes mais do que o limite suportável pela maioria da população autista. A lei paulistana, assim, tem por objetivo a tutela do bem-estar e da saúde da população de autistas residente no Município. Observo, com base em dados do Center of Diseases and Prevention, órgão ligado ao governo dos Estados Unidos, que existe um caso de autismo a cada 110 pessoas. A estimativa é que o Brasil, com seus 200 milhões de habitantes, possua cerca de 2 milhões de autistas, sendo 300 mil ocorrências no Estado de São Paulo (A considerável população de aproximadamente 12 milhões de cidadãos do Município de São Paulo permite estimar que a proibição da utilização de fogos de artifício barulhentos beneficia cerca de 110 mil indivíduos autistas que vivem naquela região. Quanto à preservação do meio ambiente, vários estudos científicos comprovam que o barulho dos fogos de artifício causa danos a diversas espécies animais. Pesquisas realizadas na Nova Zelândia indicam que os fogos de artifício causam ansiedade e danos nos cavalos (www.mdpi.com/journal/animals, The Management of Horses during Fireworks in New Zealand). Um artigo publicado na Revista Forbes relata a ocorrência de revoadas inesperadas de pássaros, causadas por pânico, durante a soltura de fogos de artifício, resultando na morte de milhares de aves. Reportagens jornalísticas frequentes abordam o sofrimento causado pelos fogos de artifício em animais de estimação (peças 62, 63 e 64).

    [11] Ulisses da Silva e Oliveira Filho v. M A Santos Del Vecchio ME e Barão Lavagem Automotiva e Estacionamentos Ltda ME, AC nº 1008900-62.108.8.26.0506, TJSP, 28ª Câmara de Direito Privado, 19-120-2023, Rel. Ferreira da Cruz. No mesmo sentido: Odete Lourdes Sangregorio v. Auto Peças Oliveira e Santos de Manduri Ltda e Município de Manduri, AC nº 1003517-66.2021,8.l26.0452, TJSP, 31ª Câmara de

    Direito Privado, 30-11-2023, Rel. Antonio Rigolin.

    [12] Dersa v. Associação Fazenda Tamboré Residencial, AC nº 0015338-05.2003.8.26.0068, TJSP, 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, 15-10-2020, Rel. Torres de Carvalho

    [13] Município de Marília v. Ministério Público, AC nº 1016283-92.2018-8.26.0344, TJSP, 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, 16-7-2020, Rel. Marcelo Berthe, prevalecendo a proteção ambiental sobre a alegada manifestação cultural.

    [14] Ministério Público v. Companhia Brasileira de Distribuição, AC nº 108537-80.2015.8.26.0506, TJSP, 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, 21-11-2019, Rel. Marcelo Berthe.

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