quarta-feira, 3 julho, 2024
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    Corte Interamericana impõe aos Estados o dever de consultar as comunidades indígenas

    Obrigação de consultar as comunidades indígenas imposta pela Corte Interamericana aos Estados

    Em 2023, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu duas decisões paradigmáticas sobre os direitos das populações indígenas: a sentença do “Caso Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs Guatemala” em maio; e a decisão do “Caso Comunidad Garífuna de San Juan e seus membros Vs. Honduras” em agosto.

    Nesses casos, os juízes Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch (brasileiro que é atualmente vice-presidente da Corte IDH) apresentaram votos concorrentes detalhando a posição em relação ao direito à consulta e à participação dessas comunidades.

    No primeiro processo, o povo indígena de origem maia pleiteava proteção ao direito de propriedade das terras tradicionalmente ocupadas. Após décadas lutando pela titulação do território, em 2019 o Fundo Nacional de Terras da Guatemala adjudicou a área identificada como “Lote 9” a pessoas da comunidade.  No entanto, descobriu-se que a área concedida aos indígenas está sobreposta a outra, pertencente a uma fazenda onde é desenvolvido um projeto de mineração. O próprio Estado indicou que a sobreposição cadastral se refere a um conflito de interesses entre indígenas e não indígenas, e que abrange também outros lotes.

    Na sentença, a corte declarou a responsabilidade internacional da Guatemala pela falta de adequada titulação, delimitação e demarcação do território. Entendeu que o Estado não realizou consulta prévia e adequada à comunidade em relação ao projeto de mineração que afetou o seu território; e estabeleceu que diversos atos de violência, ameaças e assédio causados pelo conflito territorial afetaram a vida comunitária e a integridade moral de todos os membros da comunidade tradicional.

    O voto concorrente dos juízes Mac-Gregor Poisot e Mudrovitsch traz importantes considerações sobre a peculiar noção de território para as culturas indígenas e sua implicação no direito à consulta:

    O litígio internacional sobre os direitos dos povos indígenas coloca à Corte Interamericana o desafio hermenêutico de traduzir, através do marco jurídico da Convenção, elementos de organização social e identidade cultural que são específicos das comunidades indígenas e que muitas vezes não correspondem aos conceitos tradicionais de propriedade, terra, vida ou trabalho nela previstos. Neste sentido, os direitos territoriais destes grupos não podem ser reduzidos a um aspecto meramente econômico ou patrimonial. Pelo contrário, o conceito de “território” tem um significado particular e muito mais amplo do ponto de vista da visão de mundo dos povos tradicionais, agregando não só a proteção da propriedade da terra, mas também a proteção da identidade, da cultura e da sua relação com o ambiente. Por estas razões, dada a estreita ligação que os povos originários têm com o seu território, a obrigação de consulta, que cabe ao Estado, assume especial relevância como mecanismo reforçado para a proteção dos direitos territoriais protegidos pelo Pacto de San Jose.[3]

    Já no caso que envolve o povo garífuna, tem-se que na década de 1970 o Estado hondurenho começou a outorgar títulos de propriedades a membros da comunidade de San Juan. No entanto, o grupo, que tem caráter rural e vive da agropecuária, da pesca artesanal e do turismo, pleiteava uma área significativamente maior do que a reconhecida pelo governo, bem como questionava a outorga de títulos a terceiros para construção de hotéis, casas particulares e de um parque nacional na área.

    Em sua decisão, a Corte IDH declarou Honduras responsávelpela transgressão do direito à propriedade coletiva, da obrigação de assegurar a participação nos assuntos públicos e ao direito de acesso à informação pública. A corte também considerou que o Estado foi responsável pela violação das garantias judiciais e pela omissão em investigar fatos informados às autoridades por membros da comunidade e pela violação da sua integridade pessoal, devido ao clima de ameaças e de violência contra o povo garífuna.

    A proteção à propriedade comunitária de povos indígenas não é  novidade na jurisprudência da corte. Podemos citar, por exemplo, o “Caso Povo Indígena Xucuru vs Brasil”, julgado em 2018 [4].

    Os dois casos julgados em 2023, no entanto, trazem uma nova perspectiva, mais protetiva, sobre o direito à consulta e à participação das populações indígenas em todo projeto ou medida que possa afetar seus direitos.

    No processo da comunidade indígena contra a Guatemala, a corte afirmou que o direito à propriedade coletiva não é absoluto —, mas que, para limitá-lo ou restringi-lo, o Estado precisa respeitar determinadas diretrizes, que devem ser: estabelecidas por lei; necessárias; proporcionais; e destinadas a alcançar um objetivo considerado legítimo em uma sociedade democrática [5].

    Nesse sentido, a Corte IDH entendeu que é incumbência estatal assegurar a participação eficaz da população indígena nos processos decisórios sobre questões que envolvam seus direitos, como a instalação de empreendimentos minerários ou turísticos no território tradicionalmente ocupado.

    Já no processo da comunidade garífuna, a decisão assevera que a consulta deve ser antecedente, livre e informada [6]. Em outras palavras, a população deve ser consultada antes que o Estado promova qualquer interferência em seus direitos fundamentais. A manifestação precisa ser livre de coerção ou de qualquer tipo de interferência, e seus membros devem ter acesso a informações claras e precisas sobre as medidas propostas.

    A sentença ponderou que o direito de consulta está ligado ao direito de acesso à informação, garantido pelo artigo 13 da CADH, que fomenta a transparência das atividades estatais e a responsabilidade dos agentes públicos.

    No caso, para fundamentar a tese de que o direito à consulta dos povos originários é um direito autônomo que decorre diretamente da própria Convenção Americana, os magistrados Mac-Gregor Poisot e Mudrovitsch resgataram a jurisprudência da corte e o artigo 26 da CADH, que prevê o desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais [7].

    O voto lembra que a corte declarou, pela primeira vez, a responsabilidade de um Estado pela violação do direito de acesso à informação no âmbito dos processos de consulta, no “Caso Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs Guatemala”, em razão da insuficiência de informações e da inacessibilidade linguística dos estudos técnicos sobre o empreendimento minerário [8]. E conclui:

    A interpretação evolutiva do direito à consulta antecedente realizada pela Corte Interamericana levou ao entendimento atual de considerá-lo derivado não só do direito à propriedade comunal (artigo 21), mas também dos direitos de participação (artigo 23) e do acesso à informação (artigo 13).

    Conforme recordado nesta decisão, a consulta deve ser realizada antecipadamente, de boa fé, com o objetivo de chegar a um acordo adequado, acessível e informado. É dever dos Estados – e não dos povos indígenas – demonstrar em cada caso se estas dimensões do direito à consulta foram efetivamente garantidas, de talA não observância da obrigação de realizar a consulta, ou a sua execução sem respeitar as suas características fundamentais, compromete a responsabilidade do Estado [9].

    Diante de tudo que foi exposto, os casos “Comunidad Garífuna de San Juan y sus miembros Vs. Honduras” e “Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs Guatemala” marcam um momento crucial na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com potencial para aumentar consideravelmente o nível de proteção às comunidades indígenas.

    A partir da compreensão de que o direito à consulta livre, prévia e informada é independente e garantido diretamente pela CADH, há mais um argumento para questionar, por exemplo, a Lei do Marco Temporal (Lei nº 14.701, de 2023) no âmbito do controle de convencionalidade. Conforme ressaltado pelo Ministério Público Federal em nota pública, o projeto de lei, apesar de representar uma clara restrição ao exercício e desfrute do direito ao território pelas comunidades indígenas brasileiras, foi aprovado sem consulta à população interessada [10].

    [1] Resumo Oficial Emitido Pela Corte Interamericana.  Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_488_esp.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

    [2] Resumo Oficial Emitido Pela Corte Interamericana.   Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_496_esp.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

    [3] Voto Simultâneo dos Juízes Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch: Caso Comunidade Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs. Guatemala. P. 03. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_ferrer_mudrovitsch_488_esp.docx. Acesso em: 22 jan. 2024. Tradução livre.

    [4] Resumo Oficial Emitido Pela Corte Interamericana.   Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_346_esp.pdf.  Acesso em: 22 jan. 2024.

    [5] Sentença, p. 64. https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_488_esp.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

    [6] Sentença, p. 30.  https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_496_esp.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

    [7] Voto Justificado dos Juízes  Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch: Caso Comunidad Garífuna de San Juan y Sus Miembros Vs. Honduras. P. 11. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2024.

    [8] Idem, p. 07.

    [9] Idem, p. 14-15. Tradução livre.

    [10] Ministério Público Federal: Nota pública. Disponível em:  https://www.mpf.mp.br/pgr/arquivos/2023/notapl2903.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024.

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