quarta-feira, 3 julho, 2024
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    Crime de violência emocional contra mulher e preservação do bem protegido

    Ponto de Vista

    É incontestável que, nos dias atuais, no Brasil, vivencia-se o que Lopes Jr. (p. 17-31, 2022) chama de “panpenalização”, caracterizado pela banalização do direito penal, com a instituição de uma série de crimes, muitas vezes que sequer protegem alguma garantia legal. Como resultado, tem-se uma quantidade avassaladora de processos nas varas criminais e a exponencial demora nos processos judiciais, mesmo com o avanço da tecnologia e a digitalização do processo judicial.

    Nesse sentido, por força do Código Penal, o Brasil adotou a proteção de valores legais como objetivo do direito penal. Em contrapartida, Jakobs (p. 81, 2018), por meio do seu funcionalismo sistêmico, afirma que o propósito do direito penal é a “proteção da vigência da norma”, com a busca da manutenção das expectativas fundadas pelo ordenamento jurídico.

    Ainda entre os funcionalistas, Roxin (p. 16-18, 2009) defende a teoria do bem tutelado, uma vez que, para ele, a função do direito penal consiste em “garantir a seus cidadãos uma existência tranquila, livre e socialmente segura, sempre e quando estas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos” e que os valores legais são os “objetos legítimos de proteção das normas que subjazem a estas condições eu os denomino valores legais“. No mesmo sentido, para Jescheck (p. 10, 2014), todas as normas jurídico-penais estão baseadas em um “juízo de valor positivo sobre bens vitais” que são imprescindíveis para a convivência das pessoas na comunidade e que, por isso, devem ser protegidos através da coação estatal mediante o recurso da pena pública. Apesar de não haver consenso, mesmo entre os defensores da teoria do bem tutelado, trata-se de uma evolução secular, que remonta aos postulados da fundação do direito penal moderno (D’Avila, p. 77-78, 2006).

    A partir da obra “Dos Delitos e Das Penas” de Beccaria (1764), houve a diferenciação entre o crime e o pecado, uma vez que, até então, formavam uma massa homogênea, sem qualquer diferenciação, de maneira que não era nada mais que a violação da vontade de Deus, motivo pelo qual era competência da igreja (D’Avila, p. 78, 2006). Portanto, Beccaria tratou de afirmar que não poderia se legitimar a criminalização de condutas unicamente de cunho moral, desprovida de prejuízo à comunidade. Contudo, tal afirmação ainda não consistia na ideia de lesão a valores legais, apenas na violação de um direito subjetivo. Afirma D’Avila (p. 81, 2006) que a primeira teoria de proteção de valores legais foi desenvolvida por Birnbaum em 1834, onde o referido jurista afirmava que o conteúdo do crime deveria ser localizado na ofensa de valores reconhecidos pela sociedade.

    Assim, para D’Avila (p. 83, 2006), o modelo de crime como ofensa a valores legais ou simplesmente princípio da ofensividade, é uma “projeção principial de base político-ideológica que reflete uma forma de pensar o direito penal e o fenômeno criminoso não só adequada, mas até mesmo intrínseca ao modelo de Estado democrático e social de Direito“, consistindo, portanto, em uma exigência constitucional que se torna uma restrição à política criminal contemporânea. Tanto o legislador quanto o aplicador (intérprete) da lei devem observar a ofensividade, sob pena da inconstitucionalidade (D’Avila, p. 87, 2006). O bem penal assume a pedra angular do ilícito (D’Avila, p. 88, 2006). Difícil, para não dizer impossível, é a tarefa de definição do conceito de bem jurídico. Entretanto, parece adequado o conceito de Figueiredo Dias (p. 114, 2007), quando aduz que o valor legal é “a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso“. Além disso, os valores legais não são criados pelo direito, apenas são reconhecidos por ele, consistindo na representação jurídica de um “valor transcendente e corporizável” (D’Avila, p. 22, 2009).

    Com esta breve contextualização sobre os valores legais, nota-se, como informado anteriormente, que há a criação de diversos crimes no ordenamento jurídico brasileiro recentemente, como os previstos nos artigos 147-A, 171-A, 154-A e, como objeto deste trabalho, o crime do artigo 147-B, todos do Código Penal, sendo este último o delito de “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação“, com a cominação legal da pena de seis meses a dois anos de reclusão. Assim, o questionamento que instigou a escrita deste artigo é o seguinte: sob o prisma da ofensividade, há lesão a algum valor legal no artigo 147-B capaz de legitimar a intervenção estatal por meio da previsão legal como crime?

    Em análise do tipo penal do artigo 147-B do Código Penal, é possível tecer algumas considerações. Em primeiro lugar, o valor legal tutelado pela norma é a autonomia individual, incluindo-se, nela, a “tranquilidade, a autoconfiança, o amor-próprio e a honra” (Nucci, p. 257, 2022). Indo mais além, Bitencourt (2022, p. 283) afirma que o valor legal protegido é, de fato, a autonomia pessoal e individual da mulher, mas não apenas. Acrescenta o autor que a integridade emocional e psicológica da mulher, que possivelmente será afetada pela conduta praticada pelo agressor, gera à vítima danos emocionais e, por extensão, danos psicológicos. Assim, por ocasião da conduta criminalizada, coloca-se em risco a integridade emocional, psíquica e psicológica da vítima, que, devido às consequências na psique da vítima, lhe reduz a capacidade de locomoção e, em alguma medida, invade e perturba sua esfera de privacidade, criando-lhe uma insegurança permanente. Trata-se, portanto, de um crime que visa proteger a honra e a dignidade da pessoa humana.

    Em segundo lugar, o legislador confunde o termo “dano psicológico” com “dano emocional”, porque, embora no nomem iuris afirme que o crime se trata de “violência psicológica”, na redação do tipo afirma que a conduta é causar “dano emocional”, o que, com absoluta certeza, são coisas diferentes (Bitencourt, p. 283, 2022). Em terceiro lugar, a sofrível redação legal do crime começa pela descrição do resultado, consistente em “causar dano emocional”, mas não descreve nenhuma conduta que cause, produza ou ocasione “dano psicológico” em alguém, de modo que o único vetor a indicar qual é a ação para causar tal resultado consiste no nomem iuris “violência psicológica”. Ocorre que o texto legal não tipifica a ação de causar violência psicológica contra a mulher, mas sim causar dano emocional, que pode ou não ser uma consequência do dano psicológico à mulher (Bitencourt, p. 285, 2022).

    A redação legal é tão pobre que o aplicador necessita utilizar da presunção de que os meios utilizados para praticar o crime, consistente em “ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação” são as condutas que devem se encaixar nos verbos nucleares para a prática do delito. Com razão, Capez (2021) afirma que “o tipo penal começa com o resultado, dando margem de ampla interpretação para encaixar qualquer conduta ao tipo“. Não há qualquer descrição da conduta a ser praticada, de forma clara, para ocasionar o resultado,consistente em causar prejuízo emocional à mulher.

    Em quarto lugar, é vital a descrição restrita da ordem do abalo psicológico ou emocional, para que, de forma precisa e clara, se tenha uma consolidação em que se fundamenta o “dano emocional” (Bitencourt, p. 283, 2022). A prática do tipo de forma transparente e clara, abre caminho para a “utilização da Justiça Criminal como meio reparatório de ofensas de pequena repercussão” (Capez, 2021). Em quinto e último lugar, no âmbito da materialidade do crime, na esfera processual, como prova do prejuízo ao bem jurídico, consistente na lesão ao dano emocional, exige-se a realização de exame de corpo de delito — perícia sobre os elementos da materialidade do crime —, de modo que, sem tal meio de prova, é evidente a nulidade absoluta do processo, nos termos do artigo 564, III, “b”, do CPP (Morais da Rosa; Ramos, 2021).

    Por último, pode-se apontar que, apesar da preocupação do legislador em resguardar a mulher e protegê-la de agressões e dos alarmantes índices de violência doméstica existentes no país, o artigo 147-B do Código Penal apresenta sérios problemas estruturais em sua redação e até mesmo de identificação do bem jurídico que se visa tutelar. Primeiro, o tipo penal em questão abandona a correta utilização do vernáculo e, em relação à técnica dogmática, incorre em diversos equívocos metodológicos. A constituição do delito é extremamente confusa desde o início da redação do tipo, onde se começa pelo resultado do crime, partindo para o meio de execução, com o estabelecimento de uma série de requisitos para o preenchimento do tipo, para, ao final, alargar o alcance da norma.

    Todavia, entende-se que o bem jurídico tutelado — liberdade indivudual — pode, pelos meios elencados no tipo, ser lesado, considerando que, a rigor, trata-se de espécie de lesão à integridade da pessoa humana, desmembrada do tipo do artigo 129 do CP para um tipo penal autônomo, em prestígio ao disposto no artigo 7º da Lei 11.340/06. Portanto, para violar o bem jurídico tutelado, é crucial que seja demonstrada, no processo criminal, a efetiva restrição da liberdade individual da vítima, de forma que “meramente causar dano emocional não seria suficiente a configurar a lesão ao bem jurídico“, até porque, afinal de contas, não se sabe ao certo como se chegaria a um resultado causador de dano emocional, que pode ocorrer em variados níveis e de diferentes formas.

    Com efeito, o que se tem é a aparente violação da tipicidade restrita, uma vez que o tipo penal disposto é extremamente aberto, tendo em vista que elenca uma série de meios para a prática do delito — ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir — para, ao final, dispor que também é um meio “outro que cause(prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”. Assim, a criação de tipos penais abertos e abstratos não contribuem para o objetivo do direito penal de limitação do poder punitivo (D’Avila, p. 83-88, 2006), deixando ao arbítrio do julgador a interpretação do tipo penal extremamente mal redigido e amplo, sob as vestes de justiça social. Em resumo, não se desconhece a necessidade de resguardo à vida, integridade física e psíquica de mulheres vítimas das mais variadas formas de agressão neste país. No entanto, não se pode esquecer que a intervenção do direito penal na esfera individual somente se legítima quando há, primordialmente, bem jurídico a ser tutelado, e, em segundo lugar, formas de ofensas a tal bem jurídicos dispostas em tipo penal devidamente delimitado, em atenção à necessária restritividade, o que, certamente, não há na redação legal do artigo 147-B do Código Penal.

    Referências
    BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 22. ed., Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2022.

    CAPEZ, Fernando. Dano emocional à mulher: novo crime do Código Penal. Conjur, 12 de agosto de 2021. Disponível em: < Acesso em: 11/10/2023.

    D’AVILA, Fábio Roberto. Aproximações à teoria da exclusiva proteção de bens jurídicos no direito penal contemporâneo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 17, página 07-34, set-out, 2009.

    D’AVILA, Fábio Roberto. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. Revista Opinião Jurídica. Fortaleza, ano 4, n. 7, p. 76-94, 2006.

    D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em direito penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

    FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. 1. ed. brasileira, 2. ed. portuguesa. São Paulo: Ed. RT; Coimbra: Coimbra Ed., 2007, tomo I.

    JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos? Sobre a legitimação do Direito Penal. Tradução: Pablo Rodrigo Alflen. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

    JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Traducción: Miguel Olmedo Cardenete. Vol. I. 5. ed. Breña: Instituto Pacífico, 2014.

    LOPES JÚNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2022.

    MORAIS DA ROSA, Alexandre; RAMOS, Ana Luisa Schmidt. A criação do tipo de violência psicológica contra a mulher (Lei 14.188/21). Conjur, 30 de julho de 2021. Disponível em: < Acesso em: 11/10/2023.

    NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial. Vol. 2. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

    ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Tradução: André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

     

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