terça-feira, 2 julho, 2024
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    De que forma o STF preservou a democracia em 2022

    O principal papel de uma Corte Constitucional é a clara delimitação de suas próprias competências jurisdicionais. Nesse sentido, é o próprio Supremo Tribunal do Brasil que estabelece a extensão de sua própria competência, ao contrário dos demais Poderes (Executivo e Legislativo), cujos limites são definidos pela mais alta corte do país.

    Esse delicado mecanismo constitucional – resultado de uma longa tradição republicana que remonta à ideia de “freios e contrapesos” – encontra-se sob constante tensão, na medida em que a corte foi acusada de praticar um notório ativismo judicial.

    Eduardo Appio, juiz federal

    As seguintes questões surgem: (1) como fortalecer o princípio democrático por meio do Poder Judiciário? (2) a democracia está ameaçada devido ao Supremo Tribunal e ao Tribunal Superior Eleitoral?

    1. O TSE pode legislar?
    As eleições regulares e livres representam o principal pilar da democracia brasileira, baseando-se na ideia de que todos os cidadãos serão tratados de forma imparcial na hora de votar e ser votado.

    Nesse mesmo sentido, o Tribunal Superior Eleitoral tem se encarregado de estabelecer normas jurídicas que irão reger as eleições gerais, as quais legitimam o resultado [1].

    A regulação das eleições pelos próprios parlamentares, a cada eleição, enfrentaria dois problemas práticos: os atuais membros do Congresso Nacional poderiam, em teoria, legislar em causa própria (visando se manter no poder) e o Congresso Nacional não teria agilidade suficiente para lidar com novos problemas que surgem a cada eleição (regulação das mídias sociais, por exemplo).

    Trata-se, portanto, de uma atividade claramente de natureza legislativa por parte do Poder Judiciário eleitoral, algo que entra em conflito com o pensamento original de autores como Hans Kelsen, os quais sempre defenderam que o Poder Judiciário só poderia exercer uma “atividade negativa” (geralmente por meio do controle de constitucionalidade das leis).

    O Supremo Tribunal Federal tem suas competências estabelecidas pelo artigo 102 da Constituição Federal de 1988 e a atividade normativa do Tribunal Superior Eleitoral está regulada pelo próprio Código Eleitoral [2].

    A atividade normativa do TSE já foi respaldada pelo STF em mais de uma ocasião [3]. O Supremo se baseou na força normativa da Constituição para autorizar o TSE a normatizar alguns de seus julgamentos mais polêmicos, incluindo a cláusula de fidelidade partidária.

    Nessa mesma ocasião, durante o julgamento da Adin 4.086-DF, o então excelentíssimo senhor advogado da União (hoje ministro do Supremo Tribunal Dias Toffoli) relembrou os importantes ensinamentos de Konrad Hesse sobre a Constituição e o dever dos juízes de conferir concretude aos seus mandamentos (ainda que parte deles sejam de cunho genérico).

    Nesse mesmo sentido, o mestre Lenio Streck nos ensina que a Constituição é o topo hermenêutico, de modo que a atividade interpretativa dos juízes deve estar sempre voltada à defesa da Constituição, ou seja, não se interpreta a Constituição de acordo com as leis, mas exatamente o contrário [4].

    Durante as últimas eleições gerais no país, em 2022, o TSE se encarregou de regular o uso das redes sociais, tudo com a nobre finalidade de assegurar a paridade de armas entre os candidatos, bem como evitar um cenário de desinformação generalizada por contasEm relação às notícias falsas, o então ministro do Supremo Tribunal Ricardo Lewandowski, já mencionava a “desordem informacional”, enquanto o STF deu total validade à resolução 23.714/22 do TSE (que ampliou os poderes da Corte Eleitoral para ordenar a retirada imediata de notícias falsas das redes sociais).

    Ao exercer com prudência, porém coragem, essas responsabilidades constitucionais, o ministro presidente do TSE (sua excelência ministro Alexandre de Moraes) mostrou-se como necessário não apenas para assegurar equidade entre os concorrentes à Presidência da República, mas também para rejeitar os argumentos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

    A reflexão conjunta da sociedade brasileira – depois de um ano da tentativa mal sucedida de golpe de Estado pelos derrotados das eleições gerais no Brasil – é que o Supremo Tribunal e o Tribunal Superior Eleitoral não se omitiram em sua obrigação constitucional de proteção da Constituição.

    A ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental) 1.045 , que busca que o Supremo Tribunal Federal dê a interpretação final sobre a aplicação do artigo 142 da Constituição Federal – que trata dos limites da atuação das Forças Armadas no país – está sob a responsabilidade do ministro Luiz Fux e certamente será debatida pela sociedade democrática.

    A judicialização desse tema revela que o Congresso Nacional não possui toda a força política necessária para lidar com questões sensíveis à nação. Nestes casos, surge, com maior relevância, a vontade judicial de Constituição, criticada pelo Parlamento como ativismo judicial. O ativismo judicial se justifica para essas situações em que o Parlamento delega (implicitamente, devido à sua inação) poderes normativos aos órgãos superiores do Judiciário.

    2. Existe ativismo judicial nas normativas do TSE?
    O fato de várias leis brasileiras concederem competência normativa ao TSE, bem como a consolidação desse fenômeno por meio de algumas decisões do Supremo Tribunal, confere legitimidade a essa atuação.

    As normativas do Judiciário eleitoral – que conferem legitimidade positiva às decisões dos juízes eleitorais – ao regulamentar as redes sociais durante o período eleitoral, não entram em conflito com a liberdade de expressão prevista na Carta de 1988.

    Uma das condições de possibilidade da democracia é a legitimidade dos fatos que embasam os argumentos entre os candidatos.

    À medida que a atuação de um candidato à Presidência da República passa a ser marcada por uma ampla gama de notícias falsas durante as eleições de 2022 (algo que já havia ocorrido quatro anos antes), o Supremo Tribunal e o TSE são chamados a preservar a democracia.

    O que circula nas redes sociais durante as eleições não é resultado de um amplo e saudável debate de ideias (marketplace of ideas [5]), mas sim uma combinação venenosa entre poder econômico, ganância dos donos das redes sociais e oportunismo de parte da imprensa que passa a divulgar esses fatos como uma verdade absoluta (sem nem mesmo consultar suas fontes).

    O acesso generalizado à rede mundial de dados e a hegemonia das redes sociais culminaram por criar as condições ideais para o abuso do poder econômico e social no país. Ao contrário do que se poderia imaginar, o exercício de um direito fundamental de acesso à internet somente pode ser viabilizado a partir de uma regulação (mesmo que provisória) por parte do Poder Judiciário durante as eleições.

    O ativismo judicial (o qual se manifesta como uma verdadeira afronta aos demais Poderes eleitos pela população) apresenta-se como um mal necessário em situações excepcionais, como a que ocorreu durante a pandemia do Covid no Brasil, bem como durante a produção (em escala industrial) de notícias falsas que visavam comprometer a lisura das últimas eleições. Em ambos os casos, como bem lembrouo ministro Gilmar Mendes em recente conferência na Universidade de Coimbra, o STF protegeu a democracia e serviu como uma base sólida na alternância do poder [6].

    [1] Sempre é necessário ressaltar que a Constituição Federal de 1988 considera o direito de voto como uma verdadeira cláusula pétrea. As cláusulas pétreas inseridas na Constituição do Brasil de 1988 estão dispostas em seu artigo 60, § 4º. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto, em segredo, universal e periódico (grifo do articulista);  a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.

    [2]  inciso IX do artigo 23 do Código Eleitoral e no artigo 105 da Lei 9.504/1997 (a Lei das Eleições), por exemplo.

    [3] Ações diretas de inconstitucionalidade 3.999/DF e 4.086/DF

    [4] STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica em Crise. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 225

    [5] Termo famoso pelo Justice Oliver Holmes da Suprema Corte dos Estados Unidos na histórica decisão Abrams v. United States – 1919, depois ratificada pelo ministro Willian Douglas em United States v. Rumely (1953)

    [6] Conferência realizada em 5 de julho de 2023 durante o  XXVIII Seminário de Verão de Coimbra, Portugal

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