Opinião
Surgiu intensamente nas redes sociais nos últimos dias a informação de que o plenário do STF, ao apreciar o HC 169.788, concluiu que a evasão, após o avistamento de policiais, constitui justificativa razoável para a entrada em domicílio sem mandado judicial ou consentimento do residente. Isso não ocorreu.
Mesmo que a maioria dos votos tenha sido para rejeitar a ordem de Habeas Corpus, não houve maioria para reconhecer a legalidade da busca residencial. Ao decorrer do texto, essa situação será esmiuçada.
Anteriormente, porém, é preciso compreender o caso concreto.
Um homem foi detido em flagrante e acusado pelo delito de tráfico de drogas. Todas as provas que instruíam a acusação derivavam de uma busca residencial realizada pela polícia sem autorização do morador, agora réu, e sem ordem judicial.
A busca, que resultou na apreensão de 247,9 gramas de maconha, foi justificada pelo fato de o indivíduo, ao visualizar a viatura policial, correr para o interior de sua casa.
Diante da escapada, os policiais entraram na residência, mais uma vez, sem autorização ou ordem judicial, onde localizaram a droga e efetuaram, em seguida, a prisão.
Habeas Corpus
Contra a decisão que aceitou a acusação, a defesa impetrou habeas corpus no TJ-SP, pleiteando, em caráter liminar, a suspensão do processo penal e, no mérito, o reconhecimento da iniquidade da invasão domiciliar.
O pedido liminar foi negado no TJ-SP, com a defesa impetrando novo habeas corpus, desta vez no STJ. O HC no STJ foi negado liminarmente por decisão monocrática do ministro Felix Fischer, devido ao reconhecimento da supressão da instância, nos termos da Súmula 691 do STJ.
Contra a decisão monocrática do ministro Felix Fischer, a defesa impetrou novo habeas corpus (HC substitutivo de agravo regimental, uma vez que não houve tentativa de colegializar a decisão monocrática por meio de interposição de agravo regimental — artigo 258 RISTJ).
Spacca
Como mencionado, o HC foi impetrado no STF (HC com dupla supressão de instância, visto que o TJ-SP e o STJ não se manifestaram sobre o mérito dos respectivos writs).
Votação no STF
No STF, o HC foi encaminhado ao ministro Edson Fachin, que deferiu a medida liminar para suspender o processo penal e levou o julgamento do habeas corpus ao plenário.
Iniciado o julgamento virtual, o relator do HC, ministro Edson Fachin, votou pelo reconhecimento da ilegalidade da busca residencial sem motivo justificado.
No voto, houve o enfrentamento direto da matéria de fundo da impetração:
“No caso presente, já pelo confronto preliminar entre a legislação e o caso dos autos, não há como se extrair da circunstância justificadora anotada pela autoridade policial — ‘vistaram um indivíduo em frente a uma residência, (…) que assim que avistou a viatura correu para seu interior, agindo de maneira suspeita’ —, a existência de fundada razão de hipótese de flagrante delito”.
Seu voto foi acompanhado pelos ministros Barrroso, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber. Cinco votos, portanto. Para os ministros, apesar de não ser possível o conhecimento do HC, a ilegalidade da abordagem dos policiais é evidente desde logo, de forma que o voto foi pela concessão da ordem de ofício.
Cinco votos, então, pelo reconhecimento da ilegalidade da busca residencial. Memorizem esse número.
A divergência, votando pela não concessão do habeas corpus, obteve maioria (6 votos). No entanto, foram três fundamentos diferentes utilizados para rejeitar a impetração.
A divergência foi levantada pelo ministro Alexandre de Moraes, que justificou que o cenário fático (fuga para a residência após avistamento de policiais) justifica a busca residencial sem autorização judicial ou consentimento do morador.
Constou do votoque gerou a discordância: “Na situação concreta, de acordo com o que foi relatado, a entrada dos agentes de segurança pública na residência foi devidamente justificada, pois o indivíduo, ao avistar a viatura policial, saiu correndo de forma suspeita para dentro de sua morada”.
A divergência foi acompanhada pelos ministros Dias Toffoli, Cristiano Zanin e Luiz Fux. Quatro Ministros seguiram essa posição (da legalidade da busca domiciliar).
O aspecto que parece ter sido negligenciado nas análises do julgamento (e que só se torna perceptível a partir da leitura dos votos divergentes) é que os ministros André Mendonça e Nunes Marques apresentaram argumentos diferentes para negar a ordem. Ou seja, apesar de também discordarem do relator, não acompanharam a divergência levantada por Alexandre de Moraes.
Divergências determinantes
De acordo com André Mendonça, para que fosse viável conceder a ordem de habeas corpus, seria necessário reexaminar as provas fáticas, o que não é possível por meio do HC. O voto de André Mendonça foi pela extinção sem resolver o mérito do HC.
STF
No voto de André Mendonça consta: “Considerando que os tribunais anteriores afirmaram que a entrada domiciliar foi justificada com base em um comportamento suspeito, para chegar a uma conclusão diferente seria preciso revisar o conjunto de provas, o que não é cabível no estreito caminho do habeas corpus”.
Nunes Marques também discordou, mas não concordou explicitamente com a tese de Alexandre. Segundo Nunes Marques, houve evidências do consentimento do morador para a entrada.
No voto divergente apresentado por Nunes Marques, é possível notar uma inclinação à tese levantada por Alexandre de Moraes. No entanto, essa inclinação não constitui a razão fundamental do voto, sendo apenas uma observação adicional. Isso porque, para o ministro, há provas de que houve consentimento do morador para a entrada policial, ou seja, o contexto fático analisado é diferente:
“Mesmo partindo da premissa estabelecida pelo relator de que a ação do acusado de fugir dos policiais em via pública ‘(…) não condiz com os padrões de visibilidade material do estado flagrante’, a essa atitude suspeita somou-se a possível concordância, por parte do próprio denunciado, com a entrada dos policiais em sua residência”.
No fim das contas, Nunes Marques analisou uma premissa fática diferente.
Resumindo, é possível chegar a duas interpretações minimamente razoáveis (ambas distintas daquela que repercutiu nas redes sociais nos últimos dias):
São cinco votos reconhecendo a ilegalidade da busca domiciliar (Fachin, Gilmar, Rosa, Barroso e Cármen Lúcia); quatro votos reconhecendo a legalidade da busca domiciliar (Alexandre, Zanin, Fúx e Toffoli), um voto por não reconhecer o HC por entender que exige análise probatória (André Mendonça) e um voto reconhecendo a legalidade com o consentimento dos policiais (Nunes Marques). Seria um 5x4x1x1.
São cinco votos reconhecendo a ilegalidade da busca domiciliar (Fachin, Gilmar, Rosa, Barroso e Cármen Lúcia); cinco votos reconhecendo a legalidade da busca domiciliar (Alexandre, Zanin, Fúx, Toffoli e Nunes Marques), um voto por não reconhecer o HC por entender que exige análise probatória (André Mendonça). Seria um 5x5x1.
Portanto, analisando sob a pior das hipóteses: é equivocado afirmar que o STF autorizou a busca domiciliar devido à fuga após avistar os policiais.
Em resumo: A maioria decidiu não aceitar o Habeas Corpus.
A tese da legalidade da busca domiciliar não obteve maioria no STF.
Dessa maneira, o assunto permanece pendente de avaliação pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal. É importante lembrar que, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a 5ª e a 6ª Turma têm decisões recentes afirmando que a simples fuga após perceber a presença policial não justifica a busca domiciliar (HC 811.052 é um exemplo).
O assunto foi selecionado para julgamento no rito dos recursos repetitivos (Tema 1.163), oportunidade em que a 3ª Seção (reunião da 5ª e 6ª Turmas) resolverão a controvérsia.