sexta-feira, 5 julho, 2024
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    Direitos primordiais e o cataclismo climático no Rio Grande do Sul


    As inundações registradas no mês de maio de 2024 no estado do Rio Grande do Sul ficarão marcadas como o maior desastre climático já observado no Brasil até o momento. O rio Taquari já tinha alcançado sua máxima histórica alguns meses antes, durante as enchentes que devastaram o estado gaúcho em setembro de 2023, atingindo 29,5 metros em medição feita na cidade de Lajeado.

    Spacca

    No ano de 2024, ultrapassou sua marca e chegou a 33,3 metros em 1º de maio. A ponte sobre o rio Taquari na BR-386, entre Estrela e Lajeado, jamais tinha ficado submersa e tampouco sido fechada — muito menos destruída — devido a uma enchente, desde que foi construída (1962). Uma cena que se espalhou amplamente nas redes sociais e meios de comunicação, com a ponte Estrela-Lajeado, a BR-386 e uma loja da Havan praticamente submersas, capturou a desoladora paisagem climática apocalíptica descrita.

    Nem mesmo o icônico monumento do Laçador escapou, sendo completamente isolado. Nunca antes uma enchente no Brasil causou uma amplitude tão vasta de devastação, atingindo cerca de 450 municípios do Estado do Rio Grande do Sul (90% do total de 497) e forçando um enorme contingente de pessoas a deixarem seus lares e procurarem abrigo em outras localidades. Mais de meio milhão de deslocados pelo clima. Algumas cidades da região metropolitana ficaram (total ou parcialmente) inundadas, como visto de maneira dramática em municípios como Canoas, Eldorado do Sul, entre outros. Os dados mais recentes (ainda preliminares) divulgados pela Defesa Civil em 15/5/2024 registram: 148 óbitos, 124 desaparecidos, 538.545 desabrigados e 2.124.203 pessoas afetadas. [1]

    Neste triste contexto, é oportuno lembrar que abril de 2024 foi identificado como o mês mais quente da história pós-revolução industrial) conforme dados do Copernicus, o serviço de vigilância climática da União Europeia. Não se trata, contudo, de uma mera coincidência, visto que tragédias dessa natureza têm sido há muito tempo anunciadas em diversos fóruns científicos.

    O sexto e último relatório (AR6) do Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas (IPCC), cujo resumo final foi publicado em março de 2023, enfatizou, como consequência do aquecimento global e das mudanças climáticas, um quadro alarmante de eventos climáticos extremos (como enchentes, secas etc.) cada vez mais frequentes e intensos. É o preço a ser pago por um conjunto de ações e omissões humanas, não apenas, mas especialmente desde a primeira revolução industrial, no século XVIII.

    De então para cá, em especial durante o período conhecido como a “Grande Aceleração”, iniciado após a Segunda Guerra Mundial e que perdura até os dias de hoje. De cada três partículas de CO² presentes na atmosfera terrestre, uma foi adicionada pelo ser humano. O secretário-geral da ONU, António Guterres, caracterizou os dados apresentados pelo AR6 do IPCC como um “sinal de alerta vermelho para a humanidade”.

    Infelizmente, as advertências dos cientistas ainda não foram devidamente levadas a sério, o que se aplica também ao caso do Brasil. A verdade (inconveniente para muitos), revelada por eles — e por elas, como é o exemplo de Thelma Krug, vice-presidente do IPCC — não encontrou uma adesão significativa na sociedade brasileira.

    Mudança de percepção

    Contudo, há indícios de que esse panorama está mudando, uma vez que, de acordo com a pesquisa Quaest divulgada na última semana, 99% dos entrevistadosacreditam que as inundações no Rio Grande do Sul possuem relação com as mudanças ambientais. [2]

    Afinal, apesar de todas as notícias falsas e narrativas divergentes da realidade que são disseminadas nas redes sociais por seguidores do negacionismo climático, será complicado ignorar um Estado inteiramente arrasado, assim como o sofrimento de milhões de pessoas. Afirma-se que tanto as pessoas quanto o planeta Terra têm seus limites.

    Parece que as vozes que negam as mudanças climáticas no Brasil foram, ao menos temporariamente, silenciadas pelos fatos. A força dos fatos congelou diversos Projetos de Lei (PLs) – conhecidos como “Pacote da Destruição” (da natureza) – que estavam prontos para serem votados no Congresso. Destaca-se negativamente o perigoso PL 364/2019, que acaba com a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais, proposto por um deputado federal do Rio Grande do Sul e com parecer de outro deputado federal do mesmo estado, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e o prejudicial PL 3.334/2023, que visa modificar o Código Florestal e reduzir significativamente (de 80% para 50%) a reserva legal na Amazônia. O “Pacote da Destruição” inclui quase trinta projetos de lei e três propostas de emendas constitucionais, de acordo com informações do Observatório do Clima [3].

    Finalmente, a sociedade começou a ligar os pontos, pois é praticamente inevitável não relacionar os desastres climáticos no Rio Grande do Sul com a preservação ambiental e, consequentemente, com as mudanças legislativas passadas e em andamento, tanto em âmbito federal quanto estadual e municipal.

    A flexibilização drástica da legislação realizada pelo novo Código Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Lei 15.434, de 9 de janeiro de 2020), é indicativa nesse sentido. O novo conjunto de normas alterou cerca de 500 pontos do código anterior, sendo aprovado após apenas 75 dias de tramitação e uma única audiência pública, sem passar pela Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa.

    Um dos aspectos mais controversos é o chamado “auto licenciamento” – que, na prática, diante da negligência intencional dos órgãos públicos ambientais, equivale a um “não-licenciamento”, ou seja, uma verdadeira laissez faire ambiental. Porém, isso também tem consequências, e o Rio Grande do Sul está arcando com um preço extremamente alto pela falta de cuidado com o meio ambiente e a ineficácia das medidas preventivas.

    Nesse momento, em que a prioridade é socorrer e auxiliar ao máximo as vítimas da tragédia – com o registro de uma incontável corrente solidária proveniente dos gaúchos – a sociedade também precisa começar a cobrar dos governantes e legisladores uma pausa legislativa para qualquer tentativa de flexibilização das leis ambientais e climáticas brasileiras.

    Spacca

    O desastre climático no RS deveria ser um marco que impulsionasse uma espécie de ponto sem retorno ou inflexão de natureza social, conforme apontado por Johan Rockström. [4] Ou seja, um momento de conscientização coletiva sobre a emergência climática que já afeta nossas vidas e que, se não houver medidas significativas para alterar o curso atual, se agravará ainda mais no futuro, com eventos climáticos extremos, como os ocorridos no RS, se tornando cada vez mais frequentes e intensos.

    Esse ponto de inflexão social deveria estimular a exigência, por parte da sociedade, de mais proteção ambiental e climática, e não a flexibilização e fragilização dos instrumentos legislativos e administrativos, como infelizmente temos testemunhado acontecer, em.especial nos últimos tempos. Em mais de quatro décadas do Direito Ambiental no Brasil, desde a promulgação da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), posteriormente reforçado pela consagração do direito fundamental a um meio ambiente equilibrado na CF/1988 (artigo 225), nunca se testemunhou um movimento tão intenso de retrocesso legislativo na área ambiental como o que tem sido observado recentemente.

    Além disso, dado o seu caráter nocivo e desintegrador do tecido social, urge superar de uma vez por todas a polarização política presente no Brasil e no mundo, a fim de promover uma união imprescindível e imediata em prol de algo maior, que, querendo ou não, representa um interesse comum da humanidade e diz respeito à dimensão mais sensível de nossas vidas.

    A natureza e o sistema climático não possuem ideologias políticas, pois apenas reagem à nossa intervenção destrutiva, essa sim, ideologicamente impregnada. O que está em questão — vale ressaltar — não é um pedido pela desideologização em si do ser humano como “ser político”, mas sim, que as ideologias e crenças de forma geral sejam responsivas de maneira positiva no que se refere à luta por um meio ambiente saudável e equilibrado, condição essencial para o exercício de todos os direitos fundamentais de todas as esferas.

    É importante lembrar, também, de uma evidência que há muito tempo se tornou óbvia, mas que parece ser constantemente esquecida, que é a de que a degradação ambiental e climática não reconhece fronteiras, assim como a proteção do meio ambiente e a luta contra as mudanças climáticas e suas causas também não podem ter.

    O desmatamento irresponsável da Amazônia ou de qualquer outro bioma continental brasileiro afeta o regime climático em outras regiões do Brasil, inclusive no Sul, como já foi demonstrado e é sabido. Tudo está interligado, como indicam a ciência climática e a ciência da Terra (Earth Science) [5]. Portanto, reforça-se, são os fatos e o conhecimento científico, e não as “fake news”, que devem orientar a reconstrução do estado do RS e a adoção das medidas necessárias para fortalecer a proteção climática no presente e no futuro (mitigação, adaptação e reparação de danos às vítimas), a fim de resguardar as atuais e as próximas gerações de novos eventos ambientais e climáticos negativos.

    Seguindo a mesma linha dos objetivos de desmatamento zero e neutralidade climática, deveríamos adotar como base daqui para frente um “avanço legislativo ambiental/climático zero”! Nenhuma regressão na proteção ambiental, em conformidade com o princípio da vedação de retrocesso ambiental consagrado pela doutrina [6] e jurisprudência, especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF).[7]

    Pelo contrário, devemos progredir gradualmente no fortalecimento do arcabouço jurídico de proteção ecológica e climática, como está previsto no Acordo de Paris (2015), tratado internacional com hierarquia supralegal (conforme decisão na ADPF 708/DF em 2022 pelo STF) ao qual o Brasil está legalmente vinculado. [8]

    Conforme citado pelo ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “A devastação da lei resulta na degradação ambiental”.[9] É essencial que possamos trazer boas notícias aos brasileiros e ao mundo na COP30, que será realizada no Brasil, em novembro de 2025, e não apenas lamentar nossos desastres ambientais da última década, incluindo os trágicos eventos de Mariana (2015), Maceió (2018 e novamente no final de 2023) e Brumadinho (2019), aos quais se soma a enchente doRio Grande do Sul em 2024. A realidade é que o clima se transformou, e com ele também nossas existências, algo que os milhões de habitantes do RS certamente podem confirmar, já que tiveram suas vidas impactadas de forma direta ou indireta, e até mesmo ceifadas, sem mencionar aqui todas as consequências que ainda serão percebidas tanto pela população quanto pelo Estado do RS, e também pelo Brasil.

    Por outro lado, apesar da extrema seriedade da situação, é fundamental ressaltar a importância e viabilidade de uma agenda positiva, começando pela intensa corrente de solidariedade que tem unido (apesar das tentativas em contrário) os cidadãos do RS, mobilizando apoio de outras regiões do Brasil e até mesmo de outras nações, além de uma espécie de parceria informal entre o setor público e a sociedade civil.

    Isso demonstra que, mesmo sem alcançar níveis ideais de preservação ambiental, é viável progredir de forma significativa. Tanto é verdade que, se não fossem os avanços já conquistados em diversos setores, a situação certamente estaria ainda mais debilitada. Que todos, cada um em sua capacidade, tenham a determinação pessoal e política para vencer essa verdadeira batalha pela sobrevivência e por um futuro onde todos desfrutem de uma existência digna.

     

    __________________________________

    [1] Disponível em: https://estado.rs.gov.br/defesa-civil-atualiza-balanco-das-enchentes-no-rs-14-5-12h.

    [2] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/05/09/quaest-64percent-acreditam-que-tragedia-no-rs-tem-ligacao-com-as-mudancas-climaticas.ghtml.

    [3] Disponível em: https://www.oc.eco.br/novo-pacote-da-destruicao-ameaca-direitos-socioambientais/.

    [4] ROCKSTRÖM, Johan; GAFFNEY, Owen. Break System: The Science of Our Planet. Nova Iorque: DK (Penguin Random House), 2021, p. 206-211.

    [5] SCHELLNHUBER, H. Análise do ‘sistema terrestre’ e a segunda revolução copernicana. In: Nature, 402, C19–C23 (1999). Na literatura brasileira, v. VEIGA, José Eli da. O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra. São Paulo: Editora 34, 2019.

    [6] SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito ecológico. 4.ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2023, p. 474-488.

    [7] A título de exemplo, ver, entre muitas outras decisões do STF no mesmo sentido: STF, ADPF 651/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, julg. 04.05.2022.

    [8] “Reconhecendo a necessidade de uma resposta eficaz e progressiva à ameaça urgente da mudança climática com base no melhor conhecimento científico disponível.” (Preâmbulo do Acordo de Paris de 2015)

    [9] BENJAMIN, Antonio Herman. Princípio da proibição de retrocesso ecológico. In: COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE DO SENADO FEDERAL (Org.). O princípio da proibição de retrocesso ecológico. Brasília: Senado Federal/CMA, 2012, p. 72.

                                   

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