sexta-feira, 5 julho, 2024
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    entre a antecipação e a concretização



    Ponto de Vista

    A procura da governança e da integridade nas relações público-privadas faz parte da agenda da administração pública nos contextos internacional e nacional.

    A “gestão pública” engloba a busca por ferramentas de maior legitimidade (ex.: participação na formulação da decisão administrativa), eficiência (ex.: planejamento e controle de resultados) e responsabilização (ex.: controle social e institucional) por parte dos reguladores [1].

    De acordo com o artigo 2º, I, do Decreto 9.203/2017, a governança é o “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”.

    Já o programa de integridade, conforme o artigo 3º do Decreto 11.529/2023, é o “conjunto de princípios, normas, procedimentos e mecanismos de prevenção, detecção e remediação de práticas de corrupção e fraude, de irregularidades, ilícitos e outros desvios éticos e de conduta, de violação ou desrespeito a direitos, valores e princípios que impactem a confiança, a credibilidade e a reputação institucional” (artigo 3º).

    Não obstante as diferenças técnicas entre governança e integridade, é possível afirmar a interdependência desses conceitos.

    O estudo da governança e da integridade nas relações público-privadas está intimamente relacionado com a ética na gestão pública. Sem governança e integridade, escancara-se o caminho para corrupção que, infelizmente, representa um desafio histórico no Brasil.

    Superação do patrimonialismo

    Com efeito, a corrupção é inimiga da República, uma vez que significa o uso privado da coisa pública, quando a característica básica do republicanismo é a busca pelo “bem comum”, com a distinção entre os espaços público e privado [2].

    Compreender o patrimonialismo é fundamental para abordar as complexidades da governança e da integridade nas relações público-privadas. Esta noção histórica desempenha um papel crucial ao evidenciar como as práticas administrativas podem ser moldadas por tradições e relações pessoais, muitas vezes em detrimento dos princípios de transparência, meritocracia e eficiência.

    Ao enfatizar a persistência dessas práticas, nos deparamos com o desafio de reformular a cultura organizacional e as estruturas de poder dentro das instituições públicas. A superação desse modelo patrimonialista é, portanto, um passo fundamental para instaurar uma administração pública que verdadeiramente valorize a integridade e a governança, combatendo a corrupção de maneira efetiva e promovendo uma gestão ética e democrática.

    Spacca

    De fato, existe uma dificuldade histórica por parte dos agentes públicos na distinção entre os domínios público e privado. Na tradição histórica brasileira, os denominados “funcionários patrimoniais” tratam a gestão pública como assunto particular e são escolhidos por meio de critérios subjetivos, laços de amizade, não importando as suas capacidades ou mérito [3].

    O caráter patrimonialista do Estado relaciona-se, em grande medida, à “dominação tradicional” mencionada por Max Weber, que é marcada pela obediência à pessoa indicada pela tradição em detrimento da obediência aos estatutos, bem como pela presença, nos quadros administrativos, de pessoas tradicionalmente ligadas à pessoa dominante, por vínculos pessoais, que não possuem formação profissional adequada [4].

    A corrupção, historicamente diagnosticada no Brasil, pode ser explicadapela descrição do brasileiro como “homem afável”, expressão utilizada pelo escritor Ribeiro Couto e mencionada por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra clássica Raízes do Brasil. A “afabilidade”, nesse contexto, não é utilizada como sinônimo de “boas maneiras” ou civilidade, mas, sim, para se referir à inclinação do povo brasileiro em evitar o formalismo e o convencionalismo social em suas relações [5].

    Integridade pública

    A crescente preocupação com o combate à corrupção faz parte da agenda dos países que buscam implementar ferramentas de governança capazes de assegurar o denominado “direito à boa administração”. Os padrões éticos, a eficácia administrativa e o controle da gestão pública são características inseparáveis da gestão pública contemporânea.

    Por isso, a OCDE considera que a integridade pública requer a coerência e o comprometimento com valores, princípios e normas éticas compartilhados para sustentar e priorizar o interesse público sobre os interesses privados no setor público, devendo-se observar as seguintes orientações para sua implementação [6]:

    1) demonstrar engajamento nos níveis mais elevados políticos e administrativos do setor público para fortalecer a integridade pública e reduzir a corrupção;
    2) esclarecer responsabilidades institucionais em toda a extensão do setor público para fortalecer a efetividade do sistema de integridade pública;
    3) desenvolver uma abordagem estratégica para o setor público fundamentada em evidências e voltada para mitigar os riscos de integridade pública;
    4) estabelecer elevados padrões de comportamento para os servidores públicos;
    5) promover uma cultura de integridade pública em toda a sociedade, em colaboração com o setor privado, a sociedade civil e os cidadãos;
    6) investir em liderança ética para demonstrar o comprometimento da organização do setor público com a integridade;
    7) fomentar um setor público profissional, baseado no mérito, comprometido com os valores do serviço público e com a boa governança;
    8) fornecer informações adequadas, capacitação, orientação e aconselhamento de maneira oportuna para que os servidores públicos apliquem padrões de integridade pública no ambiente de trabalho;
    9) apoiar uma cultura organizacional aberta no setor público que atenda às preocupações quanto à integridade;
    10) implementar um arcabouço de gestão de riscos e controle interno para preservar a integridade nas organizações do setor público;
    11) assegurar que os mecanismos de conformidade ofereçam respostas apropriadas a todas as suspeitas de violações dos padrões de integridade pública por parte dos servidores públicos e demais envolvidos nas infrações;
    12) fortalecer a função da fiscalização e controle externo no sistema de integridade pública; e
    13) encorajar a transparência e a participação das partes interessadas em todas as fases do processo político e do ciclo político para promover a responsabilização e o interesse público.

    Atualmente, a importância da governança e da integridade nos processos de contratação pública se justifica pela necessidade de elevar os padrões da gestão pública. Esse aprimoramento visa mitigar os riscos de integridade que podem surgir em licitações e outras modalidades de contratação, além de enfrentar a profunda crise ética que marcou de forma significativa o cenário nacional nos últimos anos.

    Legislação

    Como resultado, a legislação tem passado por mudanças com o objetivo de estabelecer ou promover a cultura da governança e da integridade nas relações público-privadas, com destaque, de forma não exaustiva, para os seguintes atos normativos:

    a) Lei 10.257/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI): intensifica a divulgação e a cultura da transparência na Administração Pública, com a efetivação do direito constitucional à informação e fomento do controle social;

    b)Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção): estabelece a integridade como critério sancionador (artigo 7º, VIII) e seu regulamento (Decreto 11.129/2022) propõe a inclusão, a execução ou o aprimoramento de programa de integridade, como cláusula do acordo de leniência (artigo 45, IV) [7];

    c) Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais): demanda a governança nas empresas estatais (artigo 6º) e a elaboração de Código de Conduta e Integridade e outras normas de boas práticas de governança corporativa (artigo 9º, § 1º);

    d) Lei 13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras): impõe a implementação de programas de integridade nas agências reguladoras (art. 3º, § 3º);

    e) Lei 8.429/1992, modificada pela Lei 14.1230/2021 (Lei de Improbidade Administrativa): autoriza a previsão de mecanismos e procedimentos internos de integridade no contexto do acordo de não persecução civil — ANPC (artigo 17-B, § 6º);

    f) Lei 13.709/2018 (LGPD): os sistemas utilizados para o tratamento de dados pessoais devem ser organizados de maneira a atender aos requisitos de segurança, aos padrões de boas práticas e de governança (artigo 49); normas de Boas Práticas e de Governança (artigos 50 e 51); critério sancionador: adoção de política de boas práticas e governança (artigo 53, § 1º, IX); g) Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos): destaca a alta administração como responsável pela governança das contratações (artigo 11, parágrafo único), a possibilidade de estabelecimento de matriz de riscos (artigo 22); impõe a instituição de programa de integridade para contratos de grande porte (artigo 25, § 4º); incentiva a implementação de programas de integridade nas demais contratações (artigo 60, IV; 156, § 1º, V; 163, parágrafo único); prevê as linhas de defesa (artigo 169); etc.

    No campo regulamentar, é viável destacar, exemplificativamente, dois atos normativos direcionados à governança e à integridade no âmbito da administração pública federal:

    a) Decreto 9.203/2017: trata da política de governança e menciona, no artigo 3º, os princípios da governança pública (capacidade de resposta; integridade; confiabilidade; melhoria regulatória; prestação de contas e responsabilidade; e transparência);

    e b) Decreto 11.529/2023: estabeleceu o Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal (Sitai) e a Política de Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal, com a revogação do Decreto 10.756/2021, que tratava do Sistema de Integridade Pública do Poder Executivo Federal.

    Parâmetros

    Não bastam leis para alterar a cultura institucional e corporativa. Afinal, “as leis abundam nos Estados mais corruptos” (Tácito). De fato, também não é suficiente a criação de programas de integridade no campo formal (“de fachada”) que não sejam eficazes. É necessário transformar a cultura das organizações públicas e privadas, com a promoção de comportamentos éticos.

    De nossa parte, apresentamos alguns parâmetros para maior eficácia da integridade nas relações público-privadas:

    a) Integridade como via de mão dupla: a efetivação da governança e da integridade nas relações público-privadas é uma via de mão dupla, pois requer a atuação coordenada dos atores estatais e da iniciativa privada, além da indispensável mudança de cultura organizacional, evidenciando a necessidade de estruturação e implementação de procedimentos e práticas que garantam a integridade na Administração Pública e nas entidades da iniciativa privada;

    b) Normas impositivas e indutivas: é essencial a elaboração de normas que demandem ou incentivem a instituição de estruturas de governança e programas de integridade, com destaque para a utilização preferencial de normas indutivas (sanções premiais), em substituição a um modelo rígido e coercitivo, que, em vez de impor determinados padrões, procura induzir o comportamento dos agentes envolvidos.

    em direção a práticas socialmente admiráveis, recorrendo a mecanismos de coordenação estratégica de interesses e cooperação espontânea, o que pode melhor atender aos propósitos de eficiência, racionalidade e legitimidade da atividade estatal.

    c) Estabelecimento da governança e da integridade na Administração Pública e nas organizações privadas: é essencial a criação de órgãos dotados de pessoal qualificado para supervisionar o cumprimento das normas de governança e de integridade, de modo a potencializar a eficácia das ações implementadas (exemplos: Comitê Interministerial de Governança – CIG, previsto no Decreto 9.203/2017; Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal – Sitai, indicado no Decreto 11.529/2023; Secretaria Municipal de Integridade, Transparência e Proteção de Dados – SMIT, no Município do Rio de Janeiro).

    d) Evitar integridade apenas superficial (compliance fake ou integridade de fachada), intensificação da transparência, fiscalização e responsabilização: a simples estruturação de programas de integridade, que ficam no papel, e criação de órgãos voltados à integridade, sem a necessária independência e qualificação, não se revelam soluções suficiente para implementação efetiva de uma cultura de integridade, o que demonstra a relevância das certificações (exemplos: ISO 19600 – Sistema de Gestão de Compliance e ISO 37001 – Sistemas de gestão antissuborno), com a intensificação da transparência, da fiscalização (institucional e social) e da responsabilização efetiva dos autores de desvios éticos;

    e) Capacitação dos agentes públicos e privados que atuam, direta ou indiretamente: revela-se crucial a contínua capacitação de servidores, empregados e gestores, públicos e privados, com o objetivo de garantir qualificação, atualização e a internalização da cultura a integridade, por meio de ações de sensibilização e consolidação do compromisso desses agentes em relação ao comportamento íntegro.

    Naturalmente, não se modifica a cultura do dia para noite. Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, afirmava que a virtude moral requer o hábito de praticar ações virtuosas. É preciso, portanto, praticar aquilo que a legislação vem estabelecendo nos últimos anos no Brasil, criando-se o hábito da governança e da integridade.

    Nesse contexto, a modernização da legislação, a institucionalização de mecanismos de controle (preventivo e repressivo), a transparência pública, a educação, entre outros fatores, representam importantes avanços no processo de implementação da governança pública.

     

    [1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Novo perfil da regulação estatal: Administração Pública de resultados e análise de impacto regulatório, Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 184.

    [2] RIBEIRO, Renato Janine. A república. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2008. p. 41-52.

    [3] No diagnóstico preciso de Sérgio Buarque de Holanda: “No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146.

    [4] WEBER, Max. Economia e sociedade. 4. ed. Brasília: UNB, 2004. v. 1, p. 139-167.

    [5] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil.26ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146 e 205.

    [6] OCDE, Sugestão do Conselho da OCDE sobre honestidade pública. Disponível em: <https://www.oecd.org/gov/ethics/integrity-recommendation-brazilian-portuguese.pdf>. Acesso em: 27/02/2024.

    [7] A esclarecimento do esquema de integridade é descrita pelo art. 56 do Decreto 11.129/2022: “Art. 56.  Para objetivos do mencionado neste Decreto, esquema de integridade consiste, no seio de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação eficiente de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com o intuito de: I – prevenir, detectar e corrigir desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e II – fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional.”

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