sexta-feira, 5 julho, 2024
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    Extensão dos desfechos determinantes da decisão judicial anglo-saxônica (parte 2)



    Visão

    Na seção inicial deste texto, apresentei o modo como a concepção dos desfechos determinantes de decisões judiciais se desenvolveu no sistema jurídico anglo-saxônico até o século 11, constituindo uma prática de estabilidade das conclusões judiciais em tudo paralela à concepção da res judicata romana.

    Notei, na ocasião, que uma das grandes dificuldades da concepção romana — a abrangência dos desfechos determinantes da decisão judicial — é praticamente ignorada pelos ingleses, já que a concepção do collateral estoppel permite concluir, com tranquilidade, que as conclusões acerca de questões prejudiciais também são indiscutíveis pelas partes.

    Episódio Bernhard
    Entretanto, a partir de uma crítica de Jeremy Bentham [1], os desfechos do collateral estoppel passaram a alcançar não apenas as partes e seus sucessores no objeto litigioso, mas também terceiros que não participaram do processo.

    A primeira decisão em que um tribunal norte-americano superou a reciprocidade como requisito do collateral estoppel, admitindo-a quando invocada por um terceiro, foi proferida no caso Bernhard v. Bank of America National Trust & Savings Assoc. [2]

    Representando a sucessão de uma senhora falecida, Bernhard ajuizou ação em face de banco no qual havia sido depositada uma vultosa quantia em dinheiro pela de cujus. A autora alegava que o cuidador da de cujus movimentara a quantia para uso próprio sem autorização, postulando a responsabilização do banco e a devolução da quantia ao espólio.

    Em sua defesa, o banco alegou que essa controvérsia já havia sido resolvida incidentalmente no processo de inventário dos bens deixados pela falecida, quando o cuidador, na condição de executor da herança, declarou que aquele valor havia sido doado a ele pela falecida.

    A própria Bernhard, à época representando a sucessão, contestou essa declaração do então cuidador-executor, controvertendo a questão que, após instrução, foi resolvida pelo juízo do inventário, o qual acolheu a alegação do cuidador-executor e reconheceu a doação da quantia pela falecida em seu favor.

    Em Bernhard, a Suprema Corte da Califórnia acolheu a exceção oposta pelo banco e considerou que o pedido de Bernhard estava obstado (estopped) pelo collateral estoppel. Ainda que o banco não tivesse sido parte no processo de inventário, a Corte reconheceu que o requisito da reciprocidade estava out of place, estabelecendo a prática do deffensive nonmuttual collateral estoppel.

    É importante destacar que o caso Bernhard ilustra não apenas a superação da reciprocidade, o que diz respeito à extensão dos desfechos subjetivos da decisão judicial, mas também ilustra a prática do collateral estoppel em pleno funcionamento, revelando típica extensão dos desfechos objetivos da decisão judicial.

    A Corte reconheceu que uma decisão acerca de questão prejudicial, resolvida no curso de um processo (no caso, do processo de inventário), obsta a rediscussão da mesma controvérsia em outro processo (no caso, a ação de responsabilidade civil ajuizada por Bernhard contra o banco).

    Ou seja, os efeitos da decisão judicial produzida na ação de inventário alcançaram não apenas o dispositivo da sentença final lá prolatada, mas também a resolução de questão incidental que antecedeu logicamente o julgamento de validade da partilha dos bens deixados pela de cujus.

    E mais: enquanto no processo de inventário a controvérsia acerca da validade da movimentação financeira feita pelo executor testamentário da de cujus em benefício próprio representava questão prejudicial, essa mesma questão subjaziaA pretensão principal na ação judicial movida por Bernhard contra a instituição financeira.

    Além de atingir terceiros (banco), o collateral estoppel obstaculizou a discussão central em ação subsequente de litígio resolvida incidentalmente na anterior.

    Bernahard, portanto, representa um importante exemplo jurisprudencial de amplo alcance dos efeitos da decisão judicial, tanto em termos pessoais como objetivos[3].

    Salienta-se que, na ação judicial anterior, a questão foi resolvida de forma incidental. Essa resolução não apenas influenciou o processo posterior, mas também vinculou seu julgamento de maneira que fosse obrigatoriamente considerada.

    Isso ocorreria se, no segundo processo, a mesma questão fosse proposta de forma prejudicial. Nesse caso, a proibição de revogação se daria devido à autoridade da decisão judicial anterior (ou efeitos positivos da coisa julgada).

    Três requisitos
    No entanto, como mencionado, a questão resolvida de forma incidental no processo de inventário foi apresentada como questão principal em Bernhard.

    Dessa forma, o collateral estoppel obstaculizou a discussão da causa inteira (claim), apesar da resolução anterior ter ocorrido devido a questão prejudicial (issue), atuando como verdadeira exceção de coisa julgada (ou efeitos negativos da coisa julgada)[4].

    A doutrina consagrada em Bernhard, posteriormente ratificada pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América em Blonder-Tongue Labs., Inc. v. University of Ill. Foundation [5] e estabelecida nos §§ 26 a 28 do Restatement (Second) of Judgements definiu três requisitos para incidência do nonmuttual deffensive collateral estoppel: [6] (1) que a questão seja concretamente idêntica (não apenas suficientemente similar), (2) que haja um julgamento final de mérito, e (3) que aquele a quem se pretende proibir a revogação tenha sido parte no processo em que a decisão foi proferida, com full and fair opportunity de participação.

    Como se percebe, os requisitos para extensão dos efeitos da coisa julgada sobre a decisão acerca de questões prejudiciais previstos no artigo 503, §§ 1º e 2º, do CPC de 2015, tiveram perceptível inspiração no modelo anglo-saxônico.

     

    [1]Existe motivo para um ditado que diz que um homem não deve perder sua causa em consequência do veredicto dado em um procedimento anterior do qual ele não foi parte; mas não há motivo algum para dizer que ele não deve perder sua causa em consequência de um veredicto em um procedimento do qual ele foi parte, apenas porque seu adversário não foi.”  BENTHAM, Jeremy. Rationale of judicial evidence. In: The Works of Jeremy Bentham, Vol. VII, Edinburgh: Simpkin, Marshall & Co., 1843, p. 171.

    [2] L. A. No. 18057. In Bank. Mar. 6, 1942.

    [3] Tamanha amplitude dos efeitos da coisa julgada gerou grande discussão doutrinária. Especialmente – mas não somente – devido à superação da mutualidade. Por exemplo: CURRIE, Brainerd. Mutuality of collateral estoppel: limits of the Bernhard doctrine. Stanford Law Review, vol. 9., n. 2 (Mar., 1957), pp. 281-322; WAGGONER, Michael J. Fifty years of Bernhard v. Bank of America is enough: collateral estoppel should require mutuality but res judicata should not.The Review Of Litigation – 12 Rev. Litig. 391 (1993), disponível em

    [4] No âmbito do direito anglosaxônico, fala-se em preclusão sobre questão quando a questão prejudicial não pode ser debatida por já ter sido resolvida em processo anterior. Por outro lado, menciona-se a preclusão de “mérito” quando o pedido principal não pode ser reconhecido por ter sido objeto de decisão judicial definitiva em processo anterior. A sentença definitiva torna a resolução sobre a claim imutável e indiscutível (“merger”). Quando ocorre a resolução de questão prejudicial, fala-se que a discussão sobre a controvérsia incidental já resolvida está barrada (“bar”) ao litigante vencido. Veja CLERMONT, Kevin M. Res Judicata as Requisite for Justice. 68 Rutgers University Law Review (2016), pp. 1.106-1.122. Scholarship@Cornell Law: A Digital Repository, Spring 2016, Cornell Law Faculty Publications. CAVANAGH, Edward D. Offensive non-mutual issue preclusion revisited. The Review Of Litigation – 38 Rev. Litig. 3 (2019), pp. 286-295. HAZARD, JR., Geoffrey C.; TARUFFO, Michele. American Civil Procedure – an introduction. New Haven / London: Yale University Press,, 1993, pp. 172-173; 191-193. Também referidos no texto estão conceitos relacionados à doutrina romanista da coisa julgada, nomeadamente autoridade da coisa julgada e exceção de coisa julgada, e efeitos positivos e negativos da coisa julgada. Sobre esse assunto, confira PINTO, Rui. Caso julgado e autoridade do caso julgado no Código de Processo Civil português. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 142 – 158, Setembro – Dezembro, 2018. PINTO, Rui. Código de Processo Civil anotado. V. 2. Coimbra: Almedina, 2018. Pp. 185-186 e anotação ao artigo 581.º. FREITAS, José Lebre de; ALEXANDRE, Isabel. Código de Processo Civil anotado. V. 2., 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 599-600; 754-757. SOUSA, Miguel Teixeira de. O objecto da sentença e o caso julgado material (estudo sobre a funcionalidade processual), Lisboa: BMJ 325, 1983, pp. 125-140.

    [5] 402 U.S. 313 (1971).

    [6] MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. São Paulo: RT, 2018, pp. 75-93; MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão, inclusive em benefício de terceiro. Res judicata on issue and Res judicata in benefit of non-parties.  Revista de Processo. v. 259/2016 | p. 97 – 116 | Set / 2016, § 10.

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