Opinião
O fato de a Constituição não consagrar explicitamente — e com essas palavras — a garantia da estabilidade financeira dos contratos administrativos levou a afirmativas no sentido de que não há algo como a proteção constitucional à estabilidade financeira.
Para os que defendem essa interpretação, trata-se dessa questão como infraconstitucional. [1] Ainda que bem fundamentada e com premissas que devem ser levadas em consideração, discordamos desse ponto de vista.
Se é verdade que da simples expressão mantidas as condições efetivas da proposta (inciso XXI do artigo 37 da Constituição) não é possível deduzir uma teoria pronta e acabada acerca da proteção da estabilidade financeira dos contratos de direito público, também não podemos desconsiderar que há ali um mandamento constitucional mínimo do qual o intérprete jamais pode se desvincular.
Ainda que haja diversas técnicas para efetivar essa diretriz, e sua concretização esteja a cargo do legislador ordinário, daí emerge com clareza que existe uma correlação entre o ambiente encontrado pelo particular ao formular sua proposta e a execução do contrato.
Há uma ligação entre o objeto a ser contratado, o conjunto de riscos transferidos pelo contrato para o particular e a remuneração por ele percebida. [2] Tudo isso se materializa na oferta apresentada, formulada de acordo com os riscos existentes no momento de sua elaboração.
A proposta do particular decorre, portanto, da capacidade de ele conhecer, no instante em que formula sua oferta, os riscos a que estará sujeito no curso da execução do contrato, afinal, propostas se formulam diante de um ambiente em que é dado ao particular conhecer os riscos que irá assumir. A proposta é uma declaração de intenção acerca dos riscos do empreendimento. Os riscos devem ser valorados na oferta realizada.
Por força da boa-fé objetiva, a transparência sobre o que será assumido pelo particular é dever imputado à administração e condição de validade da proposta a ser formulada. Enfim, edital e proposta se integram conformando a relação originária que constitui a base do contrato (também designada de equação econômico-financeira do contrato).
O particular avalia os riscos que assume e traduz isto na oferta que realiza. Ao aceitá-la, a administração se compromete a proteger esse cálculo originário, preservando as condições originárias da proposta. É disso que a Constituição trata; essa é a fundamentação constitucional da estabilidade financeira.
Acordos de direito público são instrumentos de satisfação de interesses coletivos.É nesse contexto que a proposta é preservada. Se assim não fosse, a proposta adequada se perderia em caso de eventos imprevistos, prejudicando não apenas o particular, mas também o interesse público subjacente ao contrato. Não é à toa que se protege a proposta, desde a Constituição. O que se preserva não é o particular pura e simplesmente, mas o próprio sistema de contratações públicas.
Portanto, qualquer cláusula contratual que imponha a alocação de todos os riscos do negócio ao contratado fere a racionalidade constitucional. Um mínimo de previsibilidade é exigido pela Constituição, como elemento integrativo da proposta apresentada.
Os contratados somente estão obrigados a assumir “[…] os encargos já previstos de maneira precisa no contrato original (encargos programados), pois os custos a eles correspondentes puderam ser considerados na formação do equilíbrio econômico-financeiro da concessão”. [3]
Não há obrigação implícita de assumir.qualquer perigo que não tenha sido indicado no momento base da avaliação, ou seja, quando da formulação/apresentação da proposta.
Proposta resguardada
É em virtude dessa expectativa de retorno, refletida na alocação originária de riscos, que a proposta apresentada pelo particular deve ser resguardada contra modificações supervenientes que impactam o originalmente estipulado entre as partes.
Por isso, Fernando Vernalha Guimarães conclui que a regra constitucional do inciso XXI do artigo 37 busca garantir a intangibilidade da distribuição de riscos realizada entre as partes, preservando-a “[…] de intervenções administrativas autoritárias na esfera das cláusulas econômicas do contrato”. [4]
Caso haja descaracterização do ambiente original, por fato não imputável ao contrato, ele tem o direito de ver restaurado o equilíbrio inicial ou, ainda, quando impossível a recuperação, o direito à indenização pelos prejuízos a ele causados. Isso significa que a posição privilegiada da administração pública não atinge o núcleo financeiro do contrato.
Spacca
Nem mesmo se o legislador infraconstitucional quisesse poderia atentar contra ele, sob pena de violação ao inciso XXI do artigo 37. Assim, embora delinear o sentido e alcance da proteção à equação econômico-financeira do contrato seja incumbência do legislador, é da Constituição que se extrai a norma que exige que essa proteção ocorra. [5]
O Estado viola a Constituição quando afronta direitos financeiros daqueles com quem contrata ou quando, havendo-os prejudicado, deixa de compensá-los, ainda que tudo isso ocorra sob a proteção do interesse público. Afinal, “juridicamente não há interesse público contra a lei. Não há interesse público no desatendimento do interesse alheio. Não é lícito a uma pessoa governamental esquivar-se a cumprir ou a reconhecer direito de terceiros”. [6]
Riscos ao assumir um contrato
[7]
O entendimento de que os acordos de direito público (especialmente os de concessão) evoluem por conta e risco do contratado não implica a sua conversão em uma espécie de seguradora universal, sendo impraticável (e, nos termos aqui descritos, inconstitucional) eventual intento da administração de transferir aos particulares o risco de todos os acontecimentos extraordinários ocorridos durante a execução contratual.
O contrato de direito público não tem a finalidade de permitir que o Estado se exonere das responsabilidades inerentes ao empreendimento público, repassando-as integralmente ao particular. [8] Isso, além de caracterizar prática injusta e contrária ao próprio instituto do contrato enquanto acordo consensual entre as partes, configuraria afronta à Constituição, que garante o direito à manutenção do equilíbrio contratual àquele que contrata com a administração, afinal, é necessário preservar as condições efetivas da proposta.
[1] Por todos, consultar ALENCAR, Leticia Lins de. Equilíbrio na concessão. Belo Horizonte: Fórum, 2019 e RIBEIRO, Maurício Portugal. Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011.
[2] RIBEIRO. Maurício Portugal. Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 108
[3] SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Atualidade do serviço público concedido e reequilíbrio da concessão. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 16, n. 61, p. 41-53, 2018, p. 53.
[4] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Parceria público-privada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 309.
[5] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Parceria público-privada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 309.
[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Pareceres de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 180.
[7] NÓBREGA, Marcos. Direito da infraestrutura. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 123.
[8] GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Os contratos de concessão como técnica de efetivação de benefícios sociais e os reflexos no seu equilíbrio econômico-financeiro. In.: TAFUR, Diego J. V.; JURKSAITIS, Guilherme Jardim; ISSA, Rafael Hamze. Experiências práticas em concessões e PPP: estudos em homenagem aos 25 anos da lei de concessões, vol. II. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 358-359.