terça-feira, 2 julho, 2024
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    Lei 14.737/2023 e o direito a acompanhante: por uma interpretação adequada



    Comentário

    O sumário da Lei nº 14.737, de 27 de novembro de 2023, que modifica a Lei Orgânica da Saúde, anuncia o seu objetivo: incrementar o direito da mulher de ter acompanhante nos atendimentos realizados em serviços de saúde público e privados”.

    Nas debates, na publicação e na divulgação, oficiais e jornalísticas, da nova norma, só se veem elogios, inexistindo, por enquanto, maiores debates quanto a uma circunstância potencialmente restritiva, previsto no §4º do artigo 19-J.

    De fato, houve relevantes ampliações ao direito a acompanhante.

    Anteriormente, com a redação dada pela Lei nº 11.108/2005, o direito a acompanhante restringia-se ao trabalho de parto, ao parto e ao pós-parto imediato — que, segundo a Portaria nº 2.418/2005 do Ministério da Saúde (MS), engloba o período de até dez dias após o parto.

    Com a nova redação, o direito a acompanhante abrange toda ordem de “consultas, exames e procedimentos realizados em unidades de saúde públicas e privadas” (artigo 19-J, caput).

    Ampliou-se, além disso, a proteção às mulheres nos casos em que a paciente esteja impossibilitada de realizar a livre indicação de acompanhante (artigo 19-J, §1º) ou o atendimento envolva qualquer tipo de sedação ou rebaixamento do nível de consciência (19-J, §2º e §2º-A).

    A determinação de que se mantenha aviso informando sobre o direito a acompanhante, em local visível, já havia sido incluída pela Lei nº 12.895/2013. Andou bem a nova lei ao substituir o termo “hospitais” (espécie) por “unidades de saúde” (gênero), no que ampliou o âmbito de incidência da norma (19-J, §3º).

    Restrição
    A questão central, conforme adiantado, está no §4º do artigo 19-J, incluído pela lei em questão. Estabeleceu-se que, em caso “de atendimento realizado em centro cirúrgico ou unidade de terapia intensiva com restrições relacionadas à segurança ou à saúde dos pacientes, devidamente justificadas pelo corpo clínico, somente será admitido acompanhante que seja profissional de saúde”.

    Trata-se de uma nova disposição restritiva, antes inexistente, pela qual se impede, em determinadas hipóteses, a livre indicação de acompanhante por parte da mulher.

    Diante da disposição restritiva de um direito que já carecia de maior efetividade — sobretudo, mas não só, para as mulheres mais vulnerabilizadas e usuárias do sistema público de saúde —, há que se prevenirem abusos e má interpretações.

    A crítica central, a ser posteriormente detalhada, deve ser dirigida à cláusula genérica: “restrições relacionadas à segurança ou à saúde dos pacientes, devidamente justificadas pelo corpo clínico”. A falta de indicação de hipóteses concretas, ainda que de modo exemplificativo, confere uma discricionariedade indesejada ao “corpo clínico”.

    Como se sabe, a norma, entre outros objetivos humanitários, visa a coibir violações que possam ocorrer durante “consultas, procedimentos e exames”, que seriam perpetradas, vale dizer, pelo próprio “corpo clínico”.

    Reprodução

    Além disso, as próprias instituições de saúde têm utilizado a cláusula para realizar a negativa prévia e genérica de acompanhante, notadamente em procedimentos de saúde, por fundamentos ilegítimos.

    Isso porque, no caso de cirurgias e procedimentos mais arriscados, como o parto, o direito a acompanhante de confiança serve para a verificação, inclusive, de possíveis abusos e erros médicos.

    Não se cuida de presumir a má-fé. É inegável, entretanto, que o direito da paciente a acompanhante, por vezes, contrapõe-se a um interesse do corpo clínico e do próprio ente público ou privado em se resguardar de possíveis problemas jurídicos.

    Violência obstétrica

    Constitui designar que um dos propósitos da previsão do direito a acompanhante, segundo a primeira redação do artigo 19-J, era coibir a violência obstétrica, assunto que tem sido enfrentado de maneira crescente nas comunidades nacional e internacional.

    Basta observar a declaração da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre “prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”, de 2014. Além disso, o Comitê Cedaw já responsabilizou o Brasil no caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira, momento em que recomendou o respeito, entre outros, ao direito à informação sobre os procedimentos adotados e ao direito a acompanhamento familiar.

    A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), utilizando o termo “violência obstétrica”, condenou, recentemente, a Argentina (caso Britez Arce) e a Venezuela (caso Balbina Rodriguez Pacheco). No último caso, a vítima relatou que “foi submetida a uma série de procedimentos equivocados e contra sua vontade que levaram ao rompimento do útero e a uma hemorragia interna, além de ter ficado com inúmeras sequelas[1].

    Não precisa de tanto, entretanto, para a caracterização da violência obstétrica: o tratamento desumanizado, ou qualquer manifestação de abuso psicológico, é suficiente. Veja-se o exemplo, que tomou as manchetes nacionais, de um famoso médico que teria destratado a paciente na presença do seu marido, acompanhante do parto, tendo se tornado réu pela suposta prática de lesão corporal e de violência psicológica contra a mulher [2].

    Toma-se a violência obstétrica, pois, como o indicador por excelência da necessidade de acompanhante às mulheres em consultas, exames e procedimentos de qualquer natureza.

    E cumpre afirmar: a própria negativa do direito a acompanhante em parto, cuja necessidade se depreende também de aspectos psicológicos e afetivo-emocionais, caracteriza violência obstétrica.

    O exemplo da violência obstétrica, portanto, demonstra que é um equívoco atribuir ao corpo clínico ampla discricionariedade para impedir o acompanhamento por pessoa de confiança.

    A redação genérica dá azo a interpretações amplas e arbitrárias, que podem, com a restrição indevida ao direito a acompanhante, implicar abusos e violações aos direitos das mulheres.

    É dizer: a lei que visa a impedir erros e abusos, ao fim e ao cabo, pode ser utilizada para garantir os erros e os abusos do corpo clínico das instituições públicas e privadas de saúde.

    Interpretação adequada da norma
    Diante disso, o presente ensaio tem como objetivo contribuir, de forma simples, para uma interpretação apropriada do artigo 19-J, §4º, da Lei Orgânica da Saúde.

    Para tanto, há que se levar a sério todos os elementos constantes no dispositivo legal, que devem ser interpretados restritivamente, em se tratando de cláusula excepcional e limitativa da fruição de direito.

    Antes de mais nada, cumpre assentar que o texto legal faz referência a dois tipos de instalações: “centro cirúrgico” e “unidade de terapia intensiva”. Em outras unidades, como nos centros obstétricos ou centros de parto normal, não se permite a restrição ao direito a acompanhante, inexistindo hipótese legal para tanto.

    A negativa, aqui, dependeria de outras normas válidas, que prevejam, por exemplo, restrições de circulação em razão de doenças infectocontagiosas.

    Além disso, não basta que se trate de “centro cirúrgico” ou de “unidade de terapia intensiva”. Deve-se verificar, caso a caso, “restrições relacionadas à segurança ou à saúde dos pacientes, devidamente justificadas pelo corpo clínico”.

    Fica excluída, de pronto, a possibilidadede recusa genérica e prévia, por parte de instituições públicas e privadas, do direito a acompanhante. Infere-se que a justificativa deve ser personalizada e realizada, exclusivamente, pelo corpo clínico.

    Por exemplo, as secretarias de saúde ou as direções das unidades de saúde não têm a função de, por meio de seus representantes, impedir o exercício do direito, tampouco de maneira vaga ou genérica.

    É requerido que a restrição, que deve ser devidamente justificada pelo corpo clínico, seja registrada por escrito, em que constem os motivos técnico-científicos relacionados à saúde ou à segurança dos pacientes, com a assinatura dos profissionais de saúde responsáveis.

    A exigência de que a negativa dada pelo corpo clínico seja formalizada e fundamentada é essencial para possibilitar futuro controle. Assim, os declarados motivos atinentes à saúde ou à segurança poderão ser contestados pela análise de um terceiro profissional de saúde.

    Em eventual ação judicial de reparação de danos, as justificativas do corpo clínico poderão ser analisadas e refutadas por um médico perito, por exemplo.

    As “restrições relacionadas à segurança ou à saúde dos pacientes”, com efeito, devem ser postas à prova. É um conceito indeterminado e que enseja uma análise técnica e especializada.

    Também por isso, espera-se uma regulamentação embasada por parte do MS, a evitar arbitrariedades interpretativas em desfavor das pacientes.

    Por agora, a Nota Informativa nº 1/2023-DGCI/SAPS/MS dá-nos um direcionamento importante, ao afirmar que “a excepcionalidade descrita no §4º, se aplica às situações de risco à saúde, como doenças infectocontagiosas (a exemplo da Covid-19) e outras situações de comprometimento imunológico que requeiram restrição de contato e/ou isolamento”.

    Vale apontar a importante noção de “excepcionalidade” bem destacada pela nota — afirmada e reafirmada no presente ensaio. Dá-se, ademais, um exemplo do que, razoavelmente, restringiria o direito a acompanhante: a necessidade de isolamento em razão de doenças infectocontagiosas, como a Covid-19.

    Cumpre esclarecer que nem todo caso de Covid-19 enseja, automaticamente, a negativa do direito a acompanhante. Veja-se, nesse sentido, a Nota Técnica nº 9/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS, que estabelece, nos pontos 2.3 e 2.4, as permissões e as vedações em caso de paciente ou acompanhante testado positivo.

    Aquela nota informativa, então, deve ser interpretada em conjunto com as normas já existentes sobre o tema.

    Além desse direcionamento, pode-se indicar uma situação que, juridicamente, não é motivo apto para negar o direito a acompanhante: a inadequação das instalações. Principalmente no sistema público de saúde, é uma justificativa que aparece com frequência.

    Com efeito, há um dever em manter instalações apropriadas, cumprindo-se as normas técnicas atinentes, a exemplo da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 50 da Anvisa (2002) e da RDC nº 36 da Anvisa (2008) — esta última para serviços de atenção obstétrica e neonatal.

    Por fim, como estabelece o artigo 5º da RDC nº 50 da Anvisa, a inobservância das normas técnicas “constitui infração à legislação sanitária federal”.

    Nessas normas, que se aplicam a instituições públicas e privadas, existem disposições acerca da dimensão e de outras características das instalações, além do que, especificamente, fazem referência à necessidade de permissão de acompanhante de livre escolha da mulher.

    Especialmente quanto ao parto, vale destacar que não mais se consideram adequadas as salas coletivas de parto e pré-parto, que podem dificultar o exercício do direito a acompanhante por motivos de espaço e privacidade.

    Segundo a RDC nº 36 da Anvisa, norma derrogatória da RDC nº 50 da Anvisa,o espaço adequado é a sala PPP (pré parto, parto e pós parto), que é individual e assegura a privacidade da gestante/parturiente/puérpera, e também comporta acompanhante.

    Assim, a falta de estrutura, por vezes utilizada como justificativa pelo corpo clínico, não é motivo legítimo para negar o direito a acompanhante, abrindo espaço para discutir a responsabilidade civil da instituição de saúde.

    A redação do §4º estabelece que, mesmo em situações restritivas, será permitido um acompanhante que seja profissional de saúde. Ou seja, apesar de justificativas legítimas do corpo clínico, conforme previsto na lei, ainda é possível ter um acompanhante profissional de saúde.

    Não se engane: em qualquer caso, a paciente terá alguém para acompanhá-la, mesmo que, em último caso, a unidade de saúde designe alguém para acompanhá-la, preferencialmente um profissional de saúde do sexo feminino, conforme o §2º (“[…] caso a pessoa não indique acompanhante, a unidade de saúde responsável pelo atendimento indicará pessoa para acompanhá-la, preferencialmente profissional de saúde do sexo feminino […]”).

    A parte final do §4º vai além e é uma opção preferencial à do §2º: a paciente, em situações excepcionais de restrição, poderá escolher um profissional de saúde de sua preferência, como por exemplo um parente médico ou enfermeiro.

    Apesar da importância da presença de uma profissional de saúde do sexo feminino, conforme previsto no §2º, os problemas práticos mencionados no início deste ensaio permanecem: a presença de uma enfermeira designada pela unidade — possivelmente subordinada à instituição de saúde ou conhecida do corpo clínico — pode não ser suficiente para prevenir e contestar as violações que possam ocorrer durante o procedimento médico, nem para oferecer um adequado apoio de ordem psicológica ou afetiva-emocional.

    Daí a importância, em situações excepcionais de restrição, que a paciente possa escolher um profissional de saúde de sua confiança para acompanhá-la durante consultas, exames ou procedimentos.

    Conclusão
    Diante do exposto, fica evidente a necessidade de uma análise minuciosa de todos esses elementos mencionados na cláusula de exceção, evitando a força restritiva do §4º do artigo 19-J.

    Se não houver diretrizes rígidas para interpretar o texto legal, a nova lei, apesar de pretendida para ampliar, poderia reduzir significativamente a abrangência do direito a acompanhante para gestantes, parturientes e puérperas: dar com uma mão para tirar com a outra.

    Afinal, o direito a acompanhante, além de um direito por si só, é essencial para evitar a violação de diversos outros direitos relacionados: saúde, integridade física, integridade psicológica, liberdade sexual, planejamento familiar, honra, informação etc.

    A cultura de preservação dos direitos das mulheres precisa acompanhar os avanços normativos, superando o descompasso entre norma e realidade, no esforço constante em direção aos objetivos fundamentais da República — para reduzir danos diante das contradições insuperáveis do nosso sistema.

     

    [1] MARTINS, Elisa. Corte IDH condena Venezuela por violação de direitos em caso de violência obstétrica: Balbina Rodríguez Pacheco teve sequelas físicas e psicológicas após cesariana há 25 anos. JOTA, 04 de dezembro de 2023. Disponível em:

    [2] RODRIGUES, Rodrigo. ‘Olha aqui, toda arrebentada’: influencer Shantal diz que foi vítima de violência obstétrica de médico durante parto em SP. Portal G1, 12 de dezembro de 2021. Disponível em:

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