terça-feira, 2 julho, 2024
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    Lopes e Rêgo: Desafios do Ministério Público diante dos perigos da democracia

    A tentativa de ponderação sobre as diversas ameaças identificadas atualmente contra o sistema democrático no Brasil, arduamente conquistado, requer precisão e vigilância redobrada em relação aos eventos que estão ocorrendo globalmente, relembrar o papel das instituições, e especialmente do Ministério Público, indicar os princípios que guiam cada indivíduo e sua visão de mundo, neste período da história, no desempenho da função que exerce na sociedade e, acima de tudo, vislumbrar o futuro desejado.

    Assim, torna-se necessário recordar que o estágio atual do desenvolvimento da Teoria da Constituição transcende a mera compreensão normativa, a análise e a descrição do que constitui uma Constituição, assumindo uma abrangência de questionamentos mais abrangentes e profundos de natureza axiológica, pertinentes, especialmente, ao que “deve ser” uma Constituição.

    A partir dessa análise e de um exame meta-teórico e crítico do fenômeno político, constata-se que a Constituição promulgada em 05 de outubro de 1988, intitulada “Constituição Cidadã”, consolida o processo de “redemocratização” no país – ou, conforme preferem alguns autores, de “abertura” ou “alívio do sistema político” – após os anos de ditadura militar e de estado de exceção, e estabelece o Estado democrático de Direito como modelo político adotado, estipulando-o expressamente já em seu primeiro artigo.

    Embora, obviamente, seja uma escolha, dentre várias possíveis no âmbito ontológico da política e resulte de complexos processos históricos e sociológicos, inclusive como resultado de aspectos de natureza econômica, não soa repetitivo ou prolixo enfatizar que tal decisão está inserida na abrangência de suas múltiplas funções primárias. Afinal, conforme aponta Konrad Hesse, dentre as funções de uma Constituição na vida da comunidade, encontram-se duas tarefas fundamentais: além da criação e manutenção do ordenamento jurídico, a formação e a manutenção da sua

    Entidade política. Sendo ambas intimamente entrelaçadas entre si.

    Dessa forma, cabe à Constituição estabelecer a estrutura do Estado que ela origina, definir os fundamentos de sua organização, sua dinâmica, os objetivos centrais a serem alcançados, bem como, o papel e o perfil de cada instituição que o compõe, com o objetivo de alcançar tais objetivos. Sendo assim, a Constituição de 1988 funciona como um marco multifacetado: político, jurídico, histórico, social, valorativo, etc., de transição para a nação, de um “velho regime”, autoritário e antidemocrático, para um verdadeiro “novo regime”, “Democrático de Direito!” (e de direitos). É interessante observar que, a partir do paradigma de uma nova Constituição e do novo regime estabelecido por ela, inspirado por novos valores e princípios, embora com o mesmo nome, surge e opera uma nova instituição chamada “Ministério Público”, que ela estabelece, define e atribuições e prerrogativas que considera importantes e relevantes na busca pelos novos objetivos fundamentais a serem alcançados.

    A Constituição de 1988 define e indica os fundamentos da República Federativa do Brasil, a partir do novo regime político democrático estabelecido por ela e do novo paradigma, em seu artigo 1º, dentre os quais: a soberania, a cidadania, a dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. E os objetivos fundamentais a serem alcançados, na redação do artigo 3º, onde se encontram: a) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; b) a garantia do desenvolvimento nacional; c) a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e d) a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, gênero, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

    A partir do artigo 5º, no Título II, e ao longo de todo o texto, é estabelecido um amplo conjunto de Direitosfundamentais, reconhecidos e garantidos pelo novo sistema governamental, que caracterizam o denominado “Estado Democrático de Direito”, por meio de um sistema aberto e autossustentável, constantemente atualizado e alimentado a partir do ponto de conexão estabelecido no § 2º do referido dispositivo.

    Assim, essa nova instituição denominada pelo texto constitucional de 1988 como “Ministério Público”, não se trata, portanto, da antiga instituição homônima existente no regime anterior, inclusive com funções diferentes, cujo principal papel era atuar como órgão acusatório do Estado em processos criminais (muitas vezes com processos que apenas garantiam o funcionamento do regime ditatorial), e não deve ser confundida com ela, pois possui não apenas um amplo espectro de novas e relevantes atribuições, mas também está embasada em novas leis, inspiradas por princípios e valores atualizados, adequados ao novo sistema constitucional e essenciais aos novos objetivos estabelecidos como fundamentais.

    Embora tenha o mesmo nome e tenha aproveitado os membros e as estruturas da antiga instituição que foi extinta juntamente com o antigo sistema constitucional, isso ocorreu por uma escolha legítima do constituinte originário. Isso é comprovado pelo fato de que foram concedidas à nova instituição e aos seus membros novas e importantes garantias, que anteriormente eram exclusivas do Poder Judiciário e seus membros, para que possam exercer plenamente suas novas tarefas.

    A Constituição de 1988 definiu a nova instituição denominada “Ministério Público” no artigo 127, na Seção I do Capítulo IV, que trata das “funções essenciais à Justiça”, da seguinte maneira: artigo 127. O Ministério Público é uma instituição permanente, indispensável para a função jurisdicional do Estado, responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

    A partir dessa definição constitucional,Surge uma instituição única no direito comparado, com responsabilidades e prerrogativas ampliadas. Em 1988, segundo Hugo Nigro Mazzilli: “pela primeira vez entre nós, um texto constitucional disciplinou de maneira harmoniosa e orgânica a instituição e as principais atribuições do Ministério Público”, incumbido, desta vez, não mais apenas da defesa do ordenamento jurídico — o “fiscal da Lei” de antes — mas agora, inclusive e principalmente, da defesa dos Direitos Fundamentais estabelecidos no novo regime político e garantidos no texto constitucional e da defesa do próprio regime democrático em vigor.

    No fim das contas, um Ministério Público realmente guardião e defensor dos Direitos Fundamentais dos cidadãos, somente poderia “florescer e atingir seus objetivos num ambiente essencialmente democrático”. Ao incluir entre as missões principais do Ministério Público brasileiro a defesa da própria Democracia, a Constituição de 1988, na verdade, consolidou o modelo que já constava do chamado “Anteprojeto Afonso Arinos” e da “Carta de Curitiba”, claramente inspirados no modelo da Constituição portuguesa de 1976, promulgada após a “Revolução dos Cravos”, que atribuiu também ao Ministério Público lusitano a defesa da “legalidade democrática” recém conquistada.

    Portanto, não apenas o Ministério Público brasileiro, em sua configuração atual, é uma criação da Constituição Federal de 1988, idealizado e vocacionado à defesa do Estado Democrático de Direito. Como, na realidade, sua própria existência na atual conformação, somente faz sentido, se concretiza e se viabiliza, no ambiente democrático. Democracia essa que, segundo Carlos Ayres Brito: representa o “princípio continente” da Constituição. Do qual, todos os demais princípios e valores são “contidos”. Nessas condições, é possível afirmar que: de um lado, o Ministério Público brasileiro é filho legítimo da Democracia. E, de outro, que a Democracia é o oxigênio que ele precisa para sobreviver. Tendo sido atribuída a ele expressamente, pela própria Constituição, a defesa e a salvaguarda do regime democrático.

    Sammy Barbosa Lopes é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre. Mestre e doutor em Direito. Ex-procurador geral de Justiça.

    Patrícia de Amorim Rêgo é procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre. Mestre e doutoranda em Direito. Ex-procuradora-geral de Justiça.

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