sexta-feira, 5 julho, 2024
spot_img
Mais

    Últimos Posts

    spot_img

    O exame especial para reconhecimento do período trabalhado com requisitos sociais

    Ponto de vista

    Enquanto outros tribunais seguiam orientação para contestar qualquer discordância em relação ao formulário PPP na esfera trabalhista, o TRF-4 — também conhecido como “tribunal de vanguarda” — já tinha entendimento de que a atividade especial deveria ser comprovada nos autos do processo previdenciário, por meio de um exame especial.

    Segundo minha experiência como advogado atuante junto ao tribunal em meados de 2010, uma vez apresentado o PPP, um exame produzido externamente ao processo, o segurado tinha condições de explicá-lo, contestá-lo e, por meio do exame especial, comprovar a real situação do trabalho (no local ou em estabelecimento similar). Em outras palavras, o autor podia participar do procedimento em contraditório. Além disso, os julgadores reconheciam a importância do exame especial. Ou seja: para verificar a ocorrência (ou não) dos fatos alegados.

    Dito isso, não sabemos em que momento se perdeu de vista o direito processual ao exame especial, para reconhecimento do período de trabalho especial. Você percebe que o processo vem perdendo de vista — até mesmo — o direito material quando a preliminar de cerceamento de defesa é afastada sob o pretexto desta se confundir com o mérito. O que se busca, aqui, é uma resposta racional e superlativa na construção e justificação dos novos fundamentos que embasam essa mudança jurisprudencial.

    Antes de qualquer outra análise, é importante observar que as questões preliminares e de mérito, na apelação, devem ser votadas em separado (CPC, artigo 938). No mérito, o juiz deve analisar a (im)possibilidade de reconhecimento do período de trabalho com requisitos especiais, considerando a comprovação exigida pela legislação previdenciária; a preliminar, por outro lado, diz respeito ao procedimento e, consequentemente, aos meios de prova admitidos em direito. A jurisprudência e doutrina — que fazem uma declaração, por escrito, no presente — confirmam que a comprovação do período de trabalho especial deve ser feita por meio de formulário-padrão embasado em laudo técnico ou perícia técnica.

    Entre os deveres ligados à função jurisdicional está assegurar o devido processo legal e a ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV). O processo é considerado um procedimento que se desenvolve em contraditório, logo, o processo deve assegurar tudo aquilo que lhe é de direito, como é o caso do exame especial.

    Sendo assim, uma vez justificada a necessidade-utilidade do exame especial, a partir de um padrão de dúvida relevante (já escrevi centenas de páginas sobre a dúvida como elemento metodológico), o juiz não pode simplesmente indeferi-lo. Isso porque a falta de tal providência poderá prejudicar o autor no mérito, com o não reconhecimento do benefício postulado. As consequências práticas de uma orientação que nega o “máximo de realidade” — ou que se contenta com o “mínimo de realidade” do PPP — são catastróficas, impossibilitando, em última análise, uma nova ação devido à coisa julgada.

    Em matéria previdenciária, existe uma espécie de sanção ao descumprimento do ônus de alegar todos os fatos constitutivos (todas as causas de pedir) em uma só demanda, com a aplicação da eficácia preclusiva da coisa julgada. É como dizer: cabe ao autor alegar todos os agentes nocivos inerentes à função ou meio ambiente de trabalho. Isso se transformou num pesadelo para o segurado, já que, uma vez deduzidos todos os agentes nocivos, o autor não tem conseguido estabelecer o contraditório sobre as informações estampadas no PPP, sendo o exame especial indispensável para demonstrar o trabalho especial. Assim, portanto, a coisa julgada atinge questões sobre os quais o juiz não teve condições de declarar, de forma definitiva e/ou minimamente segura, a existência (ou não) do direito, enterrando vivo.o direito da pessoa segurada.

    A utilização automática de expressões como “o formulário preenchido sem discrepâncias”, “a evidência nos autos é suficiente (para rejeitar)”, etc., descaracterizou o “restringimento da defesa” em um conceito vazio. Se o juiz possui liberdade para decidir se a prova pericial é (ir)relevante, a decisão de recusá-la se torna inapelável e tudo permanece inalterado — a extinção do caso, sem resolver a questão central, fundamentada no Tema Repetitivo geralmente se torna uma “compensação” pela rejeição da jurisdição constitucional. Essa fundamentação se tornou predominante nas turmas — validada pela repetição e utilizada como solução fácil para encerrar o processo, mesmo quando a incerteza poderia ser dirimida — precisamente — pela prova pericial.

    O formulário PPP sem discrepância tem validade? Claro que tem… Não está equivocado afirmar que o formulário “não apresenta discrepâncias”. O problema é que, no caso específico, a presunção de que o formulário reproduz com precisão a realidade laboral vivenciada pelo trabalhador pode ser completamente falsa. Aliás, aquilo que o formulário PPP beneficia a pessoa segurada em um ponto não exclui outro. A intensidade de ruído acima de 80 decibéis, enquanto vigente o Decreto 53.831/64, pode assegurar a inclusão de alguns períodos, mas é direito do autor contestar as informações fornecidas pela empresa, como quando esta omite outros agentes prejudiciais ou, até mesmo, registra uma intensidade de ruído inferior àquela esperada para o maquinário utilizado e/ou local de trabalho. Portanto, esse não pode ser o argumento jurídico para rejeitar a questão preliminar de restringimento da defesa. Concordar com isso significa dizer que a pessoa segurada não conseguirá comprovar a exposição a agentes prejudiciais, ou seja: em contraposição ao formulário preenchido “sem discrepâncias”.

    É necessário compreender que não podemos levar às últimas consequências as informações apresentadas no formulário PPP, com a impossibilidade de se instaurar o contraditório sobre elas. Considerar o formulário PPP como prova suficiente para negar o direito à aposentadoria especial nos leva a uma dimensão em que os problemas da realidade são resolvidos por imitação, ou seja, basta a empresa disponibilizar as melhores informações sobre o ambiente de trabalho — mundo este em que a justiça não se faz necessária.

    O simples esforço já evidencia a eficácia do novo entendimento, permitindo a prova pericial somente para os motoristas de ônibus ou de caminhão. Sim, dependendo da turma, somente os motoristas de ônibus e de caminhão têm garantida a prova pericial, em virtude do IAC 5033888-90.2018.4.04.0000, no qual o TRF-4 estabeleceu a seguinte tese: “deve ser admitida a possibilidade de reconhecimento do caráter especial das atividades de motorista ou de cobrador de ônibus em virtude da penosidade, ainda que a atividade tenha sido prestada após a extinção da previsão legal de enquadramento por categoria profissional pela Lei 9.032/1995, desde que tal circunstância seja comprovada por meio de perícia judicial individualizada, possuindo o interessado direito de produzir tal prova”.

    Deve ter ficado claro, mas o problema não é a tese estabelecida no IAC. Todos têm direito a uma prova pericial individualizada, quando presentes evidências sérias do trabalho especial. Somente haverá coerência se a prova pericial for autorizada sempre que houver uma incerteza relevante, seja o segurado motorista de ônibus ou mecânico. O reconhecimento da penosidade de uma atividade depende exclusivamente da prova pericial, sendo que o mesmo vale para todos os agentes prejudiciais não mais previstos no RPS, conforme Tema Repetitivo 534/STJ. É inadmissível negar a realização da prova pericial para trabalhadores de fábricas de calçados, em que se presume o contato inseparável com colas e solventes, por exemplo.

    É simples perceber como tal orientação — de apenas permitir a prova pericial para quem seja motorista — cria uma exceção excludente e prejudicial. A aplicação por exclusão demonstraa irracionalidade do sistema jurídico, que muitas vezes acaba limitando a realização da prova técnica. Reconhecer a necessidade de comprovação técnica para identificar a condição penosa do trabalho deveria, ao contrário, reforçar a importância da prova pericial para verificar o labor especial em geral. Mais do que a decisão do tribunal, importa compreender as razões que a fundamentaram. O princípio constitucional da igualdade pressupõe tratamento equitativo entre os casos, mas vai além disso.

    No âmbito processual, a garantia de igualdade deve assegurar o acesso equânime aos direitos, cabendo ao Direito estabilizar e conferir coerência e integridade a essas e outras diferenciações. A aceitação da preliminar de defesa, principalmente em situações relacionadas ao IAC 5, suscita profundas reflexões e questionamentos. Ao comparar com situações já vivenciadas (entre colegas de trabalho), uma vez demonstrado que a prova pericial só é irrelevante até que seja feita, o que se busca é igual consideração por parte dos julgadores. É inaceitável que uma melhor sorte favoreça o segurado em cujo processo são observadas as garantias processuais, com especial atenção para o direito de prova.

    É preciso afastar-se do que é considerado óbvio e evidente por todos. No Direito do Trabalho, a prova pericial é essencial para atestar a insalubridade ou não das condições de trabalho. No direito ambiental, a análise jurídica considera as observações técnicas descritas nos laudos periciais para estabelecer a configuração do risco ou dano ambiental, que não se restringe ao cumprimento dos limites para a emissão de materiais ou substâncias. No direito previdenciário, alguns juízes consideram que um documento produzido pela empresa, fora do processo, é suficiente para negar definitivamente o direito.

    A credibilidade do formulário nem sequer pode ser questionada, pois a presunção — a priori — de que o documento é suficiente antecipa a valoração do resultado de qualquer prova em sentido contrário. A presunção — em desfavor do destinatário das normas previdenciárias — ignora qualquer dúvida sobre as repercussões que determinado agente nocivo pode causar à saúde do trabalhador. O devido processo científico deve ser sempre adotado com o objetivo de obter as melhores informações científicas sobre o ambiente de trabalho. No entanto, o direito previdenciário praticado cotidianamente ignora a ciência e suas discussões sobre os riscos abstratos, os limites de tolerância/letalidade, os efeitos sinérgicos dos agentes nocivos, evidenciando, assim, um certo amadorismo. Nesse contexto, a complexidade é reduzida a quase zero, em prol da harmonia plástica da composição. Nesse ponto, a doutrina ambiental nos deixa com muita inveja: “Assim, a atribuição de sentido a um evento como dano (ou risco ambiental) dependerá, por evidente, de um processo de integração de informações multidisciplinares que, por sua vez, atuarão como condição de possibilidade probatória para a formação da convicção judicial” [1].

    Em muitos casos, a comprovação do labor especial depende quase que exclusivamente das informações trazidas pelo perito judicial. No entanto, há uma clara diretriz que restringe a realização da prova pericial.

    A impugnação do formulário PPP aborda questões (informações) não jurídicas, sobre as quais se busca estabelecer o contraditório, devido à omissão de agentes nocivos, à ineficácia do EPI etc. Nesse sentido, a prova pericial é essencial para a interpretação e elaboração técnica do sentido jurídico do risco, ou seja, para a declaração do labor especial pelo magistrado. A discussão vai muito além da visão limitada de alguns juízes, que acreditam ser os únicos destinatários da prova — aqui se poderia falar do juiz (im)parcial que apenas nega a prova pericial. É claro que não podemos desviar o focopara os problemas de ordem prática (por exemplo: elevado número de processos, baixo número de juízes, cobrança e metas do CNJ); no entanto, eles não justificam a anulação de garantias processuais.

    Como advogado e professor, preocupado com os direitos fundamentais-sociais, defendo critérios procedimentais mais equilibrados e sensíveis, com respeito ao devido processo legal, que, na área previdenciária, consiste na necessidade de se assegurar a qualquer processo ou procedimento o direito de produção ou instrução probatória — observado, como já se viu, um padrão de dúvida relevante. Trata-se de uma orientação garantidora de um rito com a função de ser adequada para se verificar a real situação do labor — permitindo a ponderação mais atenta sobre a credibilidade das informações fornecidas pela empresa, em face do conflito de interesses em jogo.

    Por outro lado, a doutrina se tornou seguidora. Continuamos presos ao CPC de 1973, com a defesa de teses como a discricionariedade judicial, o livre convencimento, a livre apreciação da prova e jargões como “juiz decide conforme sua consciência” — uma linguagem privada que se sobrepõe à lei. Por evidente, o CPC 2015, que alterou profundamente a legislação processual, instituindo um modelo cooperativo, fundado no diálogo, não encontra receptividade, como sugere Hans-Georg Gadamer: “Quem quer compreender um texto, em princípio, deve estar disposto a deixar que ele diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto” [2].

    Talvez esteja exagerando, mas não me lembro de momento igual. As decepções que se somam e geram um estado de descrença, de impotência, enfim, de insegurança jurídica, colocam em xeque o papel do judiciário e, principalmente, da advocacia previdenciária, este último considerando o direito do autor de influir ativamente na construção da decisão. Prejudicar os segurados com o indeferimento da prova pericial é um dano a toda uma visão social que merece o direito previdenciário.

    Mas por que falar, no mesmo texto, em devido processo legal, prova pericial, segurança jurídica e coisa julgada? Porque está tudo entrelaçado e por um fio. A coisa julgada depende de um processo democrático. Por outras palavras, só podemos ter segurança jurídica à medida que for garantido o contraditório e a ampla defesa no processo. Nas palavras de Carlos Henrique Soares, a “busca pela democracia no processo jurisdicional é que vai permitir a formação da coisa julgada constitucional”. O jurista conclui: “a coisa julgada não tem a função de garantir a segurança jurídica. A segurança jurídica é que permite a formação da coisa julgada” [3].

    O nosso CPC encampou o paradigma do processo democrático, ou seja, uma decisão que não for gerada democraticamente, com a efetiva participação das partes, nunca ficará sob o manto da coisa julgada. A rigor, a coisa julgada “não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial” (CPC, artigo 503, § 2º). Também o artigo 123 prevê a possibilidade de discussão da coisa julgada quando, pelo estado em que aderiu ao processo, o assistente ficou impedido de produzir provas capazes de defender seus interesses.

    As decisões que não obedecem ao princípio da democracia — e são muitas — não são capazes de fazer coisa julgada. Eu sei, tudo isso é polêmico e merece um outro artigo! Nota mental para 2024: um ano  com mais diálogo, para debatermos seriamente estas e outras questões. O verdadeiro diálogo judicial ocorre quando atendidas as necessidades de sinceridade e respeito mútuo!

    Este artigo é resultado de um diálogo com a doutrina: CARVALHO, Délton Winter de. Gestão jurídica ambiental. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2017. p. 443-452.

    GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 405.

    SOARES, Carlos Henrique. Coisa julgada constitucional: teoria tridimensional da coisa julgada: justiça, segurança jurídica e verdade. Coimbra: Edições Almedina, 2009. p. 21.

    spot_img

    Últimas Postagens

    spot_img

    Não perca

    Brasília
    céu limpo
    12.5 ° C
    12.5 °
    12.5 °
    82 %
    0.5kmh
    0 %
    sex
    26 °
    sáb
    27 °
    dom
    29 °
    seg
    30 °
    ter
    29 °

    3.144.3.129
    Você não pode copiar o conteúdo desta página!