terça-feira, 2 julho, 2024
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    O papel da Justiça do Trabalho frente às alterações no mercado de mão de obra

    Desafio de Identidade

    Se há uma crise no trabalho, isso significa que a Justiça do Trabalho também está enfrentando uma crise. Não se trata de uma crise de produtividade ou de funcionalidade, nesse ponto ela está se saindo bem, obrigado. Na verdade, em comparação com os outros ramos do Judiciário brasileiro, a Justiça do Trabalho tem o menor número de processos pendentes e é mais ágil em seus julgamentos. A crise da Justiça do Trabalho é uma crise de identidade, quase existencial, e se manifesta principalmente na disputa com o Supremo Tribunal Federal para estabelecer o alcance de sua competência.

    O principal marco legal da Justiça do Trabalho sempre foi e ainda é a CLT, o código trabalhista com 80 anos de idade e emendas que o atualizaram até os dias atuais. O debate gira em torno da questão de saber se o modelo antigo de trabalho, com direitos e garantias conforme previstos na CLT, ainda é válido. E se o novo modelo de trabalho, com suas diversas formas de relacionamento laboral e com poucos direitos e garantias, ainda pode ser enquadrado no marco legal da CLT.

    Essa disputa coloca em oposição duas visões distintas sobre o trabalho. Uma delas é a visão econômica, que dá destaque ao valor econômico do trabalho, considerando-o apenas como um fator de produção, uma mercadoria com um preço estabelecido. A outra visão prioriza o valor social do trabalho, que além de ser um meio de produção, também é um instrumento para que o trabalhador desenvolva seu projeto de vida com dignidade.

    Segundo Douglas Alencar Rodrigues, ministro do Tribunal Superior do Trabalho, também há um aspecto ideológico em discussão: “Estamos testemunhando uma acirrada disputa de narrativas sobre as virtudes e defeitos dos dois modelos normativos, o primeiro, em que o Estado seria o grande protetor social, estabelecendo um direito individual interventivo, totalmente vinculado e absolutamente imutável pelos atores sociais em negociações coletivas; e o segundo, no qual os atores sociais, respeitando um núcleo mínimo de direitos considerados inegociáveis, teriam ampla liberdade legislativa para celebrar contratos coletivos, o que estaria em conformidade com as Convenções 98 e 154 da Organização Internacional do Trabalho, ambas ratificadas pelo Brasil.”

    O ministro não questiona, no entanto, a importância da Justiça especializada: “Acima de tudo, a Justiça do Trabalho foi criada para solucionar conflitos individuais e coletivos no mundo do trabalho. Este papel permanece intacto hoje. No entanto, a Justiça do Trabalho, com base na experiência acumulada ao longo de tantas décadas, tem transcendido essas fronteiras tradicionais e tem buscado contribuir para estabelecer relações de trabalho dignas e equilibradas.”

    O primeiro desafio a ser superado é a definição dos limites da competência da Justiça do Trabalho, ou seja, a preservação de sua autoridade judicial. Originalmente, o artigo 114 da Constituição afirmava que “cabe à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os conflitos individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores e outras disputas decorrentes da relação de trabalho”. Nesses termos, a Justiça do Trabalho tinha competência para casos relacionados à relação de emprego. A Emenda Constitucional 45/2004, também conhecida como Reforma do Judiciário, ampliou sua área de atuação ao estabelecer que cabe à Justiça do Trabalho resolver os conflitos decorrentes de todas as relações de trabalho e não apenas aquelas de emprego.

    Em um momento em que as formas de relação de emprego estão se tornando mais restritas e as relações de trabalho estão se multiplicando, essa definição se tornou crucial para a própria existência da Justiça do Trabalho. A ministra do TST Maria Cristina Peduzzi destaca a necessidade de o sistema judiciário se adaptar à nova realidade: “Com o surgimento de novas formas de trabalho, é necessário, nesse contexto, reinterpretação e possivelmente reconfiguração do escopo da CLT. Assim, enquanto algumas das novas relações de trabalho podem ser enquadradas na CLT, outras exigirão que a Justiça do Trabalho se adapte às novas circunstâncias, reconhecendo e respeitando a diversidade das novas formas de organização do trabalho. Isso pode envolver, por exemplo, o desenvolvimento de novos tipos de contrato e regimes de proteção mais adequados à realidade do trabalho em plataformas digitais.”

    Nesta guerra para preservar seu território, a Justiça do Trabalho tem sofrido algumas derrotas e conquistado algumas vitórias. No caso da ADI 3.395/DF, por exemplo, o STF decidiu que processos envolvendo servidores contra o Estado não pertencem à competência trabalhista. Também decidiu que não tem autoridade para julgar processos penais (ADI 3.684-0). No entanto, reconheceu que cabe à Justiça especializada decidir sobre o Direito de greve e sobre indenização por dano moral de empregado contra empregador.

    O confronto mais recente levanta questões surgidas a partir da aplicação das alterações introduzidas na CLT pela Reforma Trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017). Um dispositivo pouco discutido introduzido pela reforma na CLT é representativo do desconforto que a nova legislação causou aos juízes alinhados à jurisprudência trabalhista mais conservadora.

    A reforma incluiu na CLT a figura do empregado “hipersuficiente”, definido como o trabalhador com nível superior de escolaridade e salário superior a duas vezes o teto de benefícios do INSS (R$ 14 mil, em valores de 2023) e que poderia ficar fora da proteção conferida pela legislação, uma vez que teria igualdade de condições para litigar com a empresa. Para o legislador que introduziu essa novidade na legislação, esse trabalhador pode ser tratado em igualdade de condições com a empresa que o contratou.

    Independentemente da validade dessa questão, essa inovação abala um dos fundamentos da Justiça do Trabalho, que é a fragilidade do trabalhador diante da considerável força do empregador. O debate sobre fragilidade levanta outra questão sobre a Justiça do Trabalho, que é a narrativa de que ela tende a proteger excessivamente o trabalhador. Além do fato de que a legislação trabalhista existe justamente para proteger o trabalhador e que é responsabilidade da Justiça aplicá-la, os números comprovam que a Justiça do Trabalho não tem um viés tão pró-trabalhador como afirmado. Por exemplo, dados de 2022 do TST mostram que a Justiça do Trabalho deu resolução a 1,7 milhão de processos. Chama a atenção que metade desses processos sequer foi a julgamento: 13% deles foram extintos sem decisão de mérito. E, mais notável ainda, 38% foram resolvidos por meio de acordos entre as partes, através de conciliação, uma etapa do processo em que a Justiça do Trabalho tem o maior índice de sucesso entre os ramos do Judiciário.

    Dos processos decididos pelos juízes, 11% foram considerados improcedentes, ou seja, favoráveis ao empregador, mais do que os 7% que foram considerados procedentes e favoráveis ao trabalhador. Também é verdade que, em relação aos 30% considerados procedentes em parte, a maioria deles beneficia mais o empregado do que o empregador. Ao analisar o cenário de forma geral, os resultados não são tão desfavoráveis para as empresas como se apregoava.

    A análise dos temas mais julgados revela uma aparente distorção no uso, ou melhor, no abuso da Justiça do Trabalho, o que a faz parecer mais vítima do que algoz. Com base no movimento processual de 2022, verifica-se que entre os 12 milhões de demandas levadas às varas do Trabalho em todo o país, 3,3 milhões, mais de um quarto do total, tratam da rescisão do contrato de trabalho.

    Fausto Augusto Júnior, diretor-técnico do Dieese – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (leia entrevista à página 34), afirma que a Justiça do Trabalho poderia ser chamada de Justiça dos Desempregados. Porque nos termos atuais, em que se estabelece aRelações entre trabalhador e empregador tendem a resultar em reclamações sobre possíveis irregularidades após a demissão ou a saída do emprego, devido ao predomínio do contrato individual de trabalho no Brasil, segundo Fausto. Em contrapartida, em outros países, destaca-se o contrato coletivo, no qual as infracções contratuais são prontamente contestadas pelo sindicato, sem exposição a represálias individuais.

    De acordo com dados do Caged, 20,6 milhões de profissionais foram demitidos ou pediram demissão em 2022, o que equivale à metade dos trabalhadores formais. As ações pós-rescisão são impulsionadas tanto pela postura dos empregadores, que preferem aguardar por decisões judiciais para efetuar o pagamento de verbas rescisórias, contando com a possibilidade de que alguns demitidos optem por não buscar os seus direitos na Justiça, quanto pelos trabalhadores demitidos, que reivindicam os seus direitos, ainda que fictícios, sem correrem o risco de sofrer prejuízos, mesmo que percam os processos.

    O corregedor regional do TRT de São Paulo, Eduardo de Azevedo Silva, acredita que a judicialização dos casos é resultado de excessos cometidos por ambas as partes: “Há, de fato, excessos pontuais tanto por parte dos trabalhadores, que frequentemente reclamam de direitos que sabem não possuir, quanto por parte dos empregadores, que negam direitos que estão cientes de serem obrigados a cumprir.”

    As demandas mais frequentes nas varas do Trabalho dizem respeito à jornada de trabalho (18%), salários (17%) e contrato individual de trabalho (9%), a maioria relacionada a questões fáticas, como pagamentos ou horas trabalhadas, sem abranger especificamente questões de Direito. Em quinto lugar, encontram-se disputas envolvendo a responsabilidade civil do empregador e pedidos de indenização por danos morais e materiais aos empregados (7%). São questões que envolvem as condições de trabalho e a dignidade dos trabalhadores e que cada vez mais passam a fazer parte das políticas de conformidade das empresas com uma gestão mais moderna.

    Dentre as 20 demandas mais comuns no Judiciário Trabalhista, o reconhecimento de relação de emprego se destaca, com 230 mil pedidos distribuídos em 2022, abrangendo novas formas de trabalho, como terceirização, uberização, pejotização, MEI, trabalho intermitente e trabalho autônomo. A lista inclui também os representantes comerciais e, até mesmo, advogados e seus escritórios.

    Em 2022, aproximadamente três milhões de processos chegaram aos 25 tribunais e 1.587 varas do Trabalho do país. No mesmo período, juízes (3,5 mil), desembargadores (585) e ministros (27) do Trabalho julgaram cerca de 2,8 milhões de processos. Deste total, aproximadamente 1,8 milhão obtiveram uma solução final, sendo que metade nem chegou a ser julgada e um terço foi resolvido por meio de acordos. Menos de dois milhões de processos aguardam julgamento, o que equivale a dois terços do total de casos julgados pelos juízes em um ano. Nada alarmante. Isso indica que, do ponto de vista da eficiência operacional, a Justiça do Trabalho está seguindo seu curso normalmente.

     

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