terça-feira, 2 julho, 2024
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    Os advogados e a autoridade extralegal dos juízes


    Em operação policial recentemente deflagrada, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes determinou, entre outras medidas restritivas impostas aos investigados, “a proibição de manter contato com os demais investigados, inclusive por meio de advogados. Surgem dúvidas sobre o real alcance da proibição: se ela afetaria os contatos entre o defensor de um investigado e outro investigado, pressupõe-se, em razão da ética profissional – ou se, além disso, atingiria comunicações dos próprios juristas entre si. No entanto, o cerne da questão é o mesmo: a limitação judicial carece de base legal, confronta a Constituição e desafia até mesmo o bom senso.

    O panorama geral
    A fim de termos uma ideia das consequências dessa decisão, proponho deixarmos de lado o caso concreto – um caso que, pelas suas diversas nuances, representa uma situação que testa os limites do sistema, senão o próprio sistema – e projetarmos a aplicação desse modelo decisório ao conjunto de casos criminais, orientando a ação dos mais de 13 mil juízes brasileiros (considerando que o precedente vem do STF, não é improvável que isso venha a ocorrer em breve). Se a perspectiva é preocupante, não podemos, professores e advogados, nos omitirmos: devemos discutir o assunto, examinar detalhadamente esse modelo decisório, escrutinar seus fundamentos e questionar a fonte do poder do qual emana.

    Do ponto de vista prático, a replicação desse modelo de restrição judicial da atividade profissional geraria complicações que iriam desde sua viabilidade até sua ineficácia. Afinal, o Estado passaria a monitorar o convívio profissional (em escritórios, antessalas de audiências ou tribunais) ou mesmo social (almoços, jantares, congressos) dos advogados? O investigado X, eventualmente cliente do advogado do investigado Y, poderá seguir tratando com ele? E como seria cumprida a proibição na situação de dois ou mais investigados (por exemplo, pai e filho) representados pelo mesmo advogado? Nessa hipótese, a restrição ainda produziria uma desigualdade processual entre investigados que possuem uma representação profissional comum e aqueles que não a têm: a restrição pesaria apenas sobre parte dos investigados.

    Direito de defesa
    Entretanto, mesmo que desconsideremos essas questões relevantes, é no meio jurídico onde os problemas se agravam. Eles são diversos. Em primeiro lugar, desde o momento em que optamos pelo caminho da civilização, estabelecemos que o poder não é absoluto. E que esse poder – agora dividido – estaria limitado, fundamentalmente, pelos direitos individuais. Em segundo lugar, em matéria penal, eventuais restrições a direitos e a prerrogativas profissionais correspondentes são questões reservadas à lei; não podem ser criadas judicialmente. E em terceiro lugar, uma lei com essa finalidade, inexistente até o momento, apenas poderia ser promulgada com respeito ao conteúdo essencial dos direitos e garantias fundamentais implicados.

    Nesse momento, é essencial considerar o direito de defesa, do qual se origina, entre tantos outros, o legítimo direito de investigados e advogados de permanecerem em silêncio diante do Estado, de comunicarem-se reservadamente – ou seja, longe dos ouvidos das autoridades – e, se necessário, de alinhar uma estratégia de resistência à ação persecutória do Estado, o que denominamos direito de estratégia, um corolário da liberdade e da independência profissional legal e constitucionalmente asseguradas ao advogado [1].

    A advocacia é uma atividade com significativo nível de regulação. Respeitando as normas de orientação do exercício profissional (Constituição, Estatuto e Código de Ética),A defesa tem a permissão para exercer em juízo – ou perante o órgão de investigação – uma atuação estratégica. Talvez, naquela situação, a oposição pacífica e sutil à ação muitas vezes ostensiva e surpreendente (e até mesmo violenta) do Estado se torne o conteúdo mínimo de uma defesa diante de um Estado que não é pequeno, que não é dócil, que detém o monopólio da força e que se apresenta, no contexto de “operações policiais”, na fisionomia de diversas instituições investidas de poder, muitas vezes unidas em forças-tarefa.

    O poder extralegal dos juízes
    Vamos abrir os olhos: ao aceitarmos a disseminação desse modelo decisório, estaremos dando um largo passo para que se passe a considerar movimentos defensivos dessa natureza como “embaraço” da investigação – logo, crime de obstrução de Justiça, tipificado em lei. Será crucial que o STF se manifeste sobre isso, como já prenunciara que assim ocorreria o ministro Gilmar Mendes (STF – HC 141.478-MC, relator: ministro Gilmar Mendes, j. 5/4/2017), oportunidade em que o tribunal poderá reafirmar: “compreende-se no direito de defesa estabelecerem os corréus estratégias de defesa” (STF – HC 86.864 MC, relator: ministro Carlos Velloso, j. 20/10/2005).

    Spacca

    Sob a perspectiva da percepção da sociedade, é bem possível que não haja consenso acerca do perímetro da liberdade de ação dos advogados, alguma ou outra vez figurados como meros entraves ao poder penal do Estado. Descontado o adjetivo, e o preconceito que o cultiva, é isso mesmo o que devemos ser diante do abuso de poder. Do contrário, seremos substituídos por um critério de eficiência diretamente associado ao incremento do poder extralegal dos juízes, em relação ao qual, a propósito, a sociedade também tem manifestado suas desconfianças.

     

    Sobre isso, ainda valeria uma palavra final: é inegável que uma maior restrição de direitos representaria um ganho estatístico de condenações criminais. No exemplo limite da tortura, física ou moral, ninguém duvidaria que pessoas sujeitas a tais circunstâncias estariam mais suscetíveis de confessar a prática de crimes, mesmo que não os tenham cometido – assim como pessoas desassistidas juridicamente estão mais sujeitas ao infortúnio em julgamentos criminais (aqui, uma breve lembrança dos pobres de tão pretos e pretos de tão pobres [2]). Ocorre que em similar proporção estaríamos elevando o índice de condenações não apenas injustas, mas degradantes à condição humana.

    O ponto está aqui: ou reconhecemos o investigado como sujeito de direitos e a advocacia como função essencial à Justiça, na exata configuração que lhes dão a Constituição e a lei, ou passaremos gradativamente a ceder ao avanço de um poder penal extralegal, ditado a golpes de sentença, oferecendo contexto de realidade à hipótese daquela famosa produção hollywoodiana: “Afinal, o que significam 10 mil advogados acorrentados no fundo do mar?”. E o interlocutor responde: “um bom começo”.

    [1] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa – A Tutela Jurídica da Liberdade na Perspectiva da Defesa Penal Efetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 4ª ed. 2024, pp. 179-183.

    [2] Expressão contextual e simbolicamente utilizada por Reinaldo Azevedo, em comentário crítico à execução de políticas de segurança que acabam apontando sua ação a grupos vulneráveis (reinaldoazevedo.blogosfera.uol.com.br/2019/08/13/0-e-da-coisa). Adaptação, também, da letra de Haiti, de Caetano Veloso.

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