quarta-feira, 3 julho, 2024
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    Qual a tipologia jurídica do tombamento de bens do patrimônio cultural?



    Ambiente Jurídico

    Previsto inicialmente, de maneira genérica, no artigo 46 da Lei  nº 378, de 13 de janeiro de 1937, e regulamentado pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, o tombamento é um dos mais essenciais instrumentos de proteção dos bens que fazem parte do patrimônio cultural brasileiro, pois atribui à coisa tombada a qualidade de imutabilidade e impõe obrigações positivas e negativas com o objetivo de preservar o bem protegido, que fica sob um regime jurídico especial.

    A história extensa do instituto possibilitou o desenvolvimento de uma doutrina e jurisprudência substanciais, embora nem sempre concordantes até os dias atuais.

    Tipicidade jurídica do instituto

    Um dos pontos ainda debatidos em quase nove décadas de presença no ordenamento jurídico nacional do tombamento é a sua tipologia jurídica, que gera diferentes correntes de pensamento.

    Sob a perspectiva da doutrina administrativa clássica, existem quatro correntes acerca da tipologia jurídica do tombamento.

    A primeira delas classifica o tombamento como instrumento para efetivar o exercício do domínio eminente do Estado; a segunda corrente afirma que o tombamento tem natureza de servidão administrativa, a terceira sustenta a natureza de limitação administrativa do instrumento, enquanto a quarta afirma que o tombamento é ao mesmo tempo uma limitação e uma servidão administrativa.

    Recentemente, o tombamento tem sido objeto de estudos pela doutrina do direito ambiental (que considera o patrimônio cultural como uma das facetas do meio ambiente lato sensu) e também por aqueles que defendem a autonomia do Direito do Patrimônio Cultural, trazendo novas abordagens sobre a tipicidade jurídica do instituto do tombamento, em contraposição às concepções clássicas do Direito Administrativo.

    Ensinamentos dos estudiosos

    Vamos analisar a seguir as principais correntes formadas sobre o tema e suas consequências correspondentes.

    De acordo com Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o domínio eminente do Estado constitui um aspecto da soberania sobre bens que compõem o território do Estado ou que a ele se integram ou aderem, sendo que nos bens privados isso se manifesta através do poder de polícia, que restringe o exercício de direitos inerentes à propriedade privada, alterando a disposição e a finalidade utilitária desses bens [1].

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    Seguindo a mesma linha de raciocínio, Hely Lopes Meirelles ensina que o poder regulatório do Estado se estende não só aos bens de seu domínio patrimonial, mas também às coisas e locais particulares de interesse público. Dentro desta categoria estão obras, monumentos, documentos e áreas naturais que, embora de propriedade privada, passaram a integrar o patrimônio histórico e artístico da nação, como bens de interesse da coletividade, sujeitos ao domínio eminente do Estado [3].

    Compreendemos que a tese mencionada acima versa sobre o fundamento no qual se fundamenta o instituto do tombamento, mas nãoadequada ao seu cerne legal, pois, na realidade, esta última implica na delineação dos elementos basilares que compõem a estrutura específica de determinada figura, contrastando-os com o conjunto mais próximo de figuras legais similares com o intuito de categorizá-la.

    Por conseguinte, a supremacia estatal eminentemente embasa institutos como as servidões governamentais, restrições governamentais, desapropriação, tombamento, poder de fiscalização, entre outros, cada um com suas peculiaridades próprias, motivo pelo qual a afirmação dos estudiosos mencionados, em nossa opinião, não se dirige precisamente à caracterização da essência jurídica do tombamento.

    Servidão governamental

    Em continuidade, sustentam a proposição de que o tombamento possui natureza de servidão governamental os estudiosos Celso Antônio Bandeira de Mello, Ruy Cirne Lima, Lúcia Valle Figueiredo, Diógenes Gasparini e Adilson Abreu Dallari, “porque, ao contrário da simples restrição governamental, incide sobre imóvel específico, acarretando a seu proprietário ônus maior comparado ao suportado pelos demais membros da coletividade” [4].

    A servidão governamental pode ser descrita como um direito real de desfrute sobre coisa alheia, instituído em favor de entidade diferente da sacrificada, existindo do lado passivo um coisa servil e, do lado ativo, uma coisa dominadora, ideia que, aliás, deriva do próprio termo vínculo de serviço, significando submissão [5].

    Contudo, a proposição encontra obstáculos especialmente porque no tombamento a restrição não é imposta em benefício de coisa afetada a um fim público ou de serviço público, não havendo, portanto, a coisa dominadora, essencial para a caracterização do instituto da servidão. Além disso, o tombamento não se configura como direito real [6]. Logo, compreendemos que a proposição não esclarece a verdadeira essência jurídica do instituto do tombamento.

    Restrição governamental e dupla natureza

    Em contrapartida, defendem que o tombamento possui natureza jurídica de restrição governamental os juristas José Cretella Júnior, Themístocles Brandão Cavalcanti e Sônia Rabello de Castro. A proposição, entretanto, vem sendo questionada porque, enquanto a restrição governamental tem como característica a generalidade (engloba um número indeterminado de bens), o tombamento se distingue por abranger bens específicos, individualmente identificados administrativamente em função de suas particularidades.

    Por fim, Antônio A. Queiroz Telles argumenta que o tombamento é, simultaneamente, restrição e servidão governamental, de acordo com os seus reflexos, respectivamente, no direito de propriedade e no bem tombado [7]. A necessidade de recorrer a uma possível dupla natureza jurídica do tombamento em nossa opinião enfraquece tecnicamente a precisão exigida na classificação do instituto, de modo que não contribui para a sua elucidação.

    Categoria específica e peculiar

    As teorias acima, enfim, sustentadas em conceitos e raciocínios clássicos próprios do Direito Administrativo, não conseguem explicar satisfatoriamente a essência jurídica do tombamento, a ponto de a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro ter revisado o seu posicionamento anterior, passando a “considerar o tombamento categoria específica, que não se enquadra nem como simples restrição governamental, nem como servidão” [8].

    Também José dos Santos Carvalho Filho afirma que o tombamento “não é nem servidão nem restrição governamental. Trata-se de instrumento especial de intervenção restritiva do Estado na propriedade privada, com fisionomia própria e única emerealidade.As diferentes formas de intervenção. No contexto do Direito Ambiental, que não está sujeito às amarras do pensamento administrativo clássico, não se considera a inclusão do tombamento nas típicas modalidades de intervenção do Estado na propriedade, como as servidões e as restrições administrativas. Paulo Affonso Leme Machado e José Afonso da Silva, por sua vez, argumentam que os bens de valor cultural são “bens de interesse público” sujeitos a um regime jurídico especial devido às suas características particulares e importância coletiva.

    Defendendo a independência do Direito do Patrimônio Cultural em relação ao Direito Ambiental e ao Direito Administrativo, mas buscando conciliar as ideias acima expostas, já deixamos claro que compreendemos o tombamento como um procedimento administrativo que implica em uma restrição concreta, peculiar, ao direito de propriedade, que atribui ao bem protegido a qualidade de bem de interesse público, submetendo-o a um regime jurídico especial quanto à disponibilidade, conservação e fruição.

    Considerações finais

    É importante ressaltar que o tombamento, regulado pelo Decreto-Lei nº 25/37, é uma ferramenta para efetivar o princípio da função social da propriedade e suas restrições estão em harmonia com o disposto no artigo 1.228, § 1º, do Código Civil: “O direito de propriedade deve ser exercido de acordo com suas finalidades econômicas e sociais e de forma a preservar, de acordo com o estabelecido em lei específica, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, além de evitar a poluição do ar e da água”.

    Por isso, o uso do instituto do tombamento, dentro dos limites estabelecidos pela legislação, não dá ao proprietário do bem tombado o direito de reclamar indenização devido às restrições incidentes sobre sua propriedade, que já nasce direcionada para atender aos interesses da sociedade, conforme o artigo 5º, XXIII, da Constituição da República.

    [1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense. 1997. p. 249.
    [2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. p. 282.
    [3] MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 555.
    [4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 25ª ed. 2012. p. 154.
    [5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 25ª ed. 2012. p. 155.
    [6] Segundo a doutrina: Destinando-se a operar contra toda a coletividade, não pode qualquer direito real ser reconhecido juridicamente se não houver prévia norma que sobre ela faça previsão. Portanto, inseridos em regime de ordem pública, os direitos reais são numerus clausus, de enumeração taxativa, localizados no rol pormenorizado do art. 1225 do Código Civil e em leis especiais diversas. FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010. p. 10.
    [7] TELLES, Antônio A. Queiroz. Tombamento e seu regime jurídico. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1992, p. 43-45.
    [8] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 25ª ed. 2012. p. 154.
    [9] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 26. Ed. 2013. p. 809. No mesmo sentido: ZANDONADE, Adriana. O tombamento à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros. 2012. p. 245.
    [10] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Ação Civil Pública (ambiente, consumidor, patrimônio cultural) e Tombamento. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1986. p. 71.
    [11] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. 2. Ed. Belo Horizonte: 3i. 2023. p.176.

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