domingo, 7 julho, 2024
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    Revolução dos Sociedades Anônimas de Futebol e novos meios de capitalização no futebol


    A popularidade do futebol no Brasil é ímpar. Esta paixão é visível não apenas na quantidade de jogadores amadores e profissionais, mas também na grande audiência que acompanha os jogos pela televisão e pela internet. Contudo, o futebol no Brasil não é somente um esporte, é também uma poderosa indústria que movimenta bilhões de reais anualmente. Times de futebol, patrocinadores, emissoras de televisão, empresas de marketing esportivo e uma diversidade de pequenas e médias empresas se beneficiam da popularidade do esporte.

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    Mesmo sendo uma indústria gigantesca, é comum ver notícias que relatam o endividamento dos clubes, sejam eles grandes, médios ou pequenos. Em 2023, segundo levantamento da Sports Value, a soma das dívidas dos 20 clubes que mais faturam no país foi de R$ 8,9 bilhões.

    Como forma de atenuar as dívidas, os clubes têm investido cada vez mais em meios de capitalização, com destaque para tokens com mecanismo de solidariedade e Fidc’s, além da criação das Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs).

    O grande impulsionador que fez com que a indústria do futebol entrasse no mercado de capitais ocorreu em 2021, com a criação da Lei nº 14.193/21, que instituiu a SAF. Pouco tempo depois, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou o Parecer de Orientação CVM 41/2023, tratando das normas aplicáveis às SAFs que desejassem acessar o mercado de capitais.

    Os clubes brasileiros têm dívidas históricas e de longa data, e as SAFs são uma solução, à medida que trazem no rol de suas preocupações normas de governança, fiscalização, boas práticas, e tutela dos direitos dos acionistas.

    A Lei das SAF permite que os clubes de futebol sejam transformados em sociedades anônimas, estabelecendo normas especiais de governança corporativa, tratamento fiscal diferenciado e criação de novos meios de financiamento da atividade futebolística.

    Possibilidades

    Há três possibilidades previstas na Lei das SAF para a transformação dos clubes. A SAF poderá ter origem de um clube já existente, transformando a associação civil sem fins lucrativos em uma sociedade anônima. Também poderá haver a cisão do departamento de futebol, dando origem a uma SAF, de forma que o clube original continue com suas outras atividades e a sociedade siga com futebol masculino e feminino. Por fim, poderá a SAF ser criada originalmente por uma pessoa física ou pessoa jurídica ou fundo de investimento, ou seja, o surgimento de um clube que não existia anteriormente.

    Nas duas primeiras hipóteses, a SAF sucede compulsoriamente o clube de futebol nas relações com as entidades de administração, bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol. Já a terceira hipótese é entendida como uma alternativa de criação de uma sociedade totalmente nova, independentemente da existência de associação ou pessoa jurídica anterior.

    Ademais, é importante destacar que, para ocorrer a transformação dos clubes em SAF com segurança e sucesso, é necessário um cuidado especial com a governança. Entre outros, o estatuto social deve ser ajustado à Lei, bem como deve obrigatoriamente haver o registro da transformação/conversão na Junta Comercial do Estado em que está localizada a sede da SAF.

    Trata-se de mudanças relevantes, considerando que, atualmente, ainda há muitos clubes de futebol que se encontram estruturados como associações civis, sem fins lucrativos. Especificamente no que diz respeito à captação de recursos, a Lei das SAFs criou a possibilidade da emissão de títulos de dívida, denominado “Debênture-fut”.

    Títulos de dívida

    Os títulos somente podem ser emitidas por SAFs e deverão possuir, entre outras, as seguintes características: remuneração por taxa de juros não inferior ao rendimento anualizado da caderneta de poupança, permitida a estipulação, cumulativa,de compensação flexível, atrelada ou relacionada às atividades ou ativos da Sociedade Anônima de Futebol; prazo de término igual ou superior a dois anos; proibição de recompra da Debênture-fut pela Sociedade Anônima de Futebol ou por parte a ela vinculada e de liquidação anticipada por meio de resgate ou pagamento antecipado, exceto de acordo com as normas a serem estabelecidas pela Comissão de Valores Mobiliários; assim como a ocorrência de .

    É relevante salientar que as Debêntures-fut são semelhantes e seguem a mesma estrutura jurídico-financeira que as debêntures regulamentadas pela Lei das Sociedades Anônimas, devendo também ser observadas as previsões contidas nas Resoluções CVM nº 77 e nº 81. Dois dos contrastes entre as Debêntures-fut e as debêntures reguladas pela Lei das S.A. são:

    (i) As debêntures regulamentadas pela Lei das S.A. não possuem prazo mínimo de término, o qual deve ser acordado na escritura de emissão, conforme estabelece a parte inicial do art. 55 da Lei das S.A., ao passo que as Debêntures-fut devem ter prazo igual ou superior a 2 anos; e

    (ii) as debêntures regulamentadas pela Lei das S.A. permitem a eventualidade de resgate antecipado e de aquisição pela própria companhia que as emitiu, ao contrário das Debêntures-fut, que têm proibição de recompra pela Sociedade Anônima de Futebol ou por parte a ela vinculada, bem como de liquidação anticipada por meio de resgate ou pagamento antecipado.

    Somente futebol

    É relevante destacar que a Lei das Sociedades Anônimas de Futebol estabelece de modo claro que os recursos obtidos por meio da emissão das Debêntures-fut devem ser utilizados em benefício das atividades futebolísticas dos clubes ou para quitar gastos, despesas ou dívidas a elas relacionados, conforme determinado na Lei e nos estatutos sociais dos clubes.

    A CVM, em seu Parecer de Orientação 41, solidificou a interpretação para que as Sociedades Anônimas de Futebol possam promover a emissão de debêntures sem precisar de registro na autarquia, desde que a oferta seja destinada exclusivamente a investidores profissionais, ou seja, direcionada àqueles investidores que detêm mais de R$10 milhões aplicados e comprovados por declaração pessoal ou que possuam certificação técnica emitida pela CVM.

    Além da possibilidade da Debênture-fut e, como mencionado previamente, os clubes também têm a opção de se financiar por meio da emissão de tokens com mecanismo de solidariedade. Para compreendermos melhor esse sistema, é essencial definirmos o significado de “mecanismo de solidariedade”.

    O mecanismo foi concebido para ser uma retribuição aos clubes por terem capacitado profissionalmente um jogador ao longo dos primeiros anos de sua carreira. Trata-se de uma forma de “reembolso” por tudo que o clube fez pelo atleta durante sua formação, uma vez que a cada transferência internacional do jogador, o clube formador do atleta tem direito de reter para si até 5% dos valores envolvidos na negociação. No Brasil, a Lei nº 9615/98 (Lei Pelé) garante o mesmo percentual às transferências nacionais.

    Ao adquirir este tipo de token, o investidor assegura o direito de receber parte proporcional dos ganhos do clube provenientes do mecanismo de solidariedade pelo período estabelecido na oferta.

    Em termos práticos, a emissão e comercialização dos tokens não difere de outras transações envolvendo ativos financeiros: o detentor do ativo (time de futebol) contrata um prestador de serviços para estruturar a operação e emitir os títulos, os quais serão distribuídos ao público por valor unitário inicial previamente determinado pelo emissor. Posteriormente, esses títulos poderão ser negociados em mercados secundários, controlados pelo próprio emissor, sujeitando-se às variações e flutuações naturais de qualquer mercado.

    Grandes clubes já apostam neste mecanismo, incluindo o Cruzeiro (CRZ0) e o Coritiba (CFC0), os quais já captaram mais de R$ 2 milhões cada um. Outras equipes, como Vasco (SAF) e Santos, também aderiram à iniciativa. O produto, inclusive, já gerou bons resultados aos seus detentores. Os tokens negociados no Mercado Bitcoin, Vasco Token e Token da Vila (do Santos FC), já distribuíram R$ 3,59 milhões e R$ 10,85 milhões,respectivamente, em ganhos, até maio de 2024.

    Uma vantagem extra de se aportar nesses ativos é a oportunidade de ampliar a carteira, além do fato de que muitas das transações de atletas ocorrem em moedas mais valorizadas do que o real, como o dólar e o euro. A valorização dessas moedas também contribui para a remuneração ao investidor. Contudo, por meio de uma decisão de 2020 [1], a CVM firmou seu entendimento no sentido de que os tokens vinculados ao mecanismo de solidariedade não são títulos mobiliários, visto que não satisfazem plenamente os critérios que compõem o chamado “Howey Test” [2].

    O “Howey Test” é um referencial jurídico que se utiliza de quatro critérios para determinar se uma operação qualifica-se como um contrato de investimento: (i) para que haja o investimento no ativo, é necessário a aplicação de recursos financeiros, seja dinheiro ou outro bem passível de avaliação econômica; (ii) o ativo consiste em um empreendimento coletivo, que envolve a participação de terceiros; (iii) expectativas de lucro; e (iv) o êxito do ativo depende dos esforços de terceiros, geralmente através do trabalho dos gestores.

    Dessa forma, a não caracterização dos tokens baseados no mecanismo de solidariedade da Fifa como títulos mobiliários, gera uma lacuna regulatória que viabiliza a estruturação desse tipo de operação sem grandes impedimentos normativos. Por outro lado, a vigência do Decreto nº 11.563/2023 sobre os tokens estabelece que todo e qualquer criptoativo não considerado valor mobiliário pela CVM será de exclusiva responsabilidade regulatória do Banco Central. O BC, por sua vez, ainda não possui qualquer regulamentação a respeito disso até o momento.

    Direito de crédito

    Outra opção para os clubes que visam captar recursos são os fundos de investimento em direito de crédito. Os Fidcs podem ser utilizados por qualquer clube de futebol, mesmo aqueles que não se tornaram SAF, para antecipar o recebimento de valores futuros, investindo em créditos relacionados ao futebol, como direitos de transmissão (pay-per-view ou outros), vendas de ingressos de estádio e taxas de associação, sendo estruturado de forma a possibilitar que os clubes de futebol monetizem esses créditos antecipadamente.

    O Fidc seria constituído como um veículo de investimento que adquire esses direitos de crédito dos clubes, proporcionando-lhes liquidez imediatamente. Os clubes de futebol venderiam seus créditos futuros ao fundo, que, por sua vez, emitiria cotas para investidores interessados em participar do fundo. Esses investidores receberiam retornos com base nos fluxos de caixa gerados pelos créditos adquiridos. A estrutura do Fidc incluiria mecanismos de avaliação e gestão de risco para garantir a qualidade dos créditos e a capacidade de pagamento dos devedores.

    Assim, os clubes de futebol poderiam transformar receitas futuras em capital presente, permitindo investimentos imediatos em infraestrutura, contratação de jogadores ou outras necessidades operacionais, enquanto os investidores do Fidc se beneficiariam dos retornos gerados pelos créditos do futebol.

    Spacca

    O Fidc é uma excelente alternativa porque pode ser usado por clubes em qualquer estágio, para antecipar praticamente qualquer tipo de receita, representando uma potencial redução do seu custo de captação em relação às opções mais convencionais, como o financiamento bancário. Já para o público investidor, este pode ser um investimento com uma rentabilidade possivelmente maior em relação às alternativas mais comuns, como os títulos de renda fixa tradicionais.

    O São Paulo Futebol Clube é um exemplo de clube que obteve retorno positivo nesse segmento. Conforme o CEO da Ouro Preto Investimentos, João Baptista Peixoto Neto, gestor do Fidc do São Paulo, um fundo comgarantia no acordo de pay-per-view com a TV Globo e com vencimento em março de 2023, afirma que o Fidc previa uma arrecadação de R$ 37 milhões, oferecendo uma rentabilidade de 160% do CDI. A arrecadação estimada foi de R$ 40 milhões.

    A SAF do Cruzeiro seguiu essa tendência de investimento, com a criação do Fidc Zorro. O fundo emitiu cotas subordinadas júnior de série única e captou o montante de R$ 3 milhões em fevereiro deste ano.

    Ultrapassada a fase inicial de criação das SAFs e, diante das alterações trazidas com a Lei nº 14.193/21 e do aumento da procura dos clubes por recursos no mercado financeiro, já se torna possível considerar aberturas de capital na Bolsa de Valores, procedimento comum no exterior, porém que apenas deve ser realizado no Brasil após um amadurecimento maior da legislação e do mercado como um todo.

    Além das questões de segurança e previsibilidade jurídica, os investidores certamente vão exigir anos de demonstrativos financeiros e contábeis bem estruturados e auditados, bem como projeções de receitas mais confiáveis, gestão transparente, conformidade e boa governança corporativa.

    Alguns clubes ainda estão em processo de se tornarem sociedades anônimas, alguns já foram alvos de aquisição, como ocorreu recentemente com o Cruzeiro, mas é certo que será necessário tempo e uma administração eficiente das SAFs para viabilizar uma eventual abertura de capital na Bolsa de Valores. De toda forma, as perspectivas são animadoras!

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    Bibliografia

    Você compraria dívida do seu clube do coração? Debêntures de futebol vêm aí; conheça

    Entendendo o Howey Test: será que ele se aplica aos criptoativos?

    [1] Ofício nº 15/2020/CVM/SER

    [2] Conjunto de critérios utilizados pela Securities Exchange Commission, a CVM dos Estados Unidos, especificamente para este tipo de avaliação.

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