terça-feira, 2 julho, 2024
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    Seis décadas do putsch, uma década da ‘lava jato’: nunca mais


    O mês de março acumula datas que assinalam sombrio faceta da história brasileira, o golpe civil-militar de 1964, de 31 de março, e a operação “lava jato”, inaugurada em 17 de março de 2014.

    Agência Senado

    Ambas assinalam processos que resultaram no enfraquecimento democrático e atentaram contra garantias civilizadas essenciais.

    Ontem, como no presente, a resistência manifestou-se nas ruas e nos tribunais. Advogados beligerantes, em meio aos destroços da tragédia, ainda buscavam obter da Justiça os últimos suspiros do Estado democrático.

    A comparação entre 1964 e 2014 é cada vez mais evidente

    O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes deixou a analogia clara ao afirmar que a operação lava jato tentou instituir sua própria versão de um “Ato Institucional nº 5” ao tentar cassar o direito ao Habeas Corpus em suas “dez medidas contra a corrupção”.

    Mais recentemente, expressou a necessidade de implementação de uma “Comissão da Verdade” da operação lava jato, movimento que qualificou como “o maior escândalo judicial da história”.

    Paralelos foram identificados também pelo ministro Dias Toffoli em decisão proferida em 6 de setembro de 2023 (Rcl 43.007), na qual declarou inúteis provas obtidas em acordo de leniência realizado no âmbito da “lava jato”.

    Na decisão, o magistrado constata que os operadores da lava jato “não distinguiram, intencionalmente, inocentes de criminosos”, e utilizaram-se de “verdadeira tortura psicológica, um pau de arara do século 21, para obter ‘provas’ contra inocentes”.

    Divulgação/Podemos

    A escala da barbárie praticada pela ditadura militar não permite comparações literais, mas tanto os abusos da operação lava jato como a ultraviolência do regime militar possuem traços autoritários comuns.

    Ambos reproduzem o mesmo método de manipular o medo fundamental do “inimigo interno” para angariar apoio das massas, justificar excessos, instaurar um Estado de exceção e conquistar o poder.

    O estado de perigo é o caminho para o arbítrio. A cilada autoritária de 1964 manipulou o imaginário popular do “comunismo”; mais recentemente, o fantasma da vez foi a ameaça da “corrupção”.

    Lançado o circo da “lava jato”, o país presenciou prisões sumárias, supressão do devido processo legal, confissões extraídas em método similar à tortura, perseguição a familiares, arruinamento de negócios, humilhações públicas.

    Houve denuncismo infundado, medidas coercitivas sem fundamento fático, suspensão de direitos fundamentais, abolição de direitos políticos. Assim como nos anos de chumbo, durante a operação lava jato, contra os “inimigos” tudo era permitido. O intento real, posteriormente revelou-se, era tomar o poder.

    Justiça de transição

    A comparação evidente sugere a necessidade de providências semelhantes para transpor o trauma autoritário e evitar que a tragédia se repita. A tradição política e jurídica de superação de episódios autoritários denomina esse processo de “Justiça de transição”.

    O objetivo é resgatar a dignidade das vítimas, expor as violações dos culpados e registrar na memória coletiva o perigo das aventuras autoritárias. Isso ocorre por meio da responsabilização dos autores das violações praticadas em nome do Estado durante o período de exceção.

    As medidas incluem solicitações públicas de desculpas, sentenças que declaram a culpa, condenações por abusos, compensações financeiras, reparações simbólicas.

    Na Argentina, o processo pós-ditadura militar (1976-1983) a “Justiça de transição” adotou como método a penalização judicial de autores de crimes de Estado nos julgamentos das Juntas Militares, episódio retratado no filme “Argentina 1985”, de Santiago Mitre.

    Na Alemanha, após o término do regime nazista em 1945, o processo envolveu responsabilização e reconciliação, somando julgamentos públicos à preservação da memória histórica, com a transformação de marcos das atrocidadesem ambientes educacionais e monumentos.

    Felipe Santa Cruz

    No Brasil a “Justiça de Transição” é apelidada por especialistas como “transição inacabada”, juntando medidas tardias e parciais. A criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012, são combinadas à acomodação de atrocidades cometidas sob o regime militar (1964-1985).

    O desfecho são declarações de imunidade e isenções de culpa, como a concedida pela Lei de Anistia de 1979. A carência de uma Justiça de transição efetiva no Brasil sem dúvida criou condições para a crise democrática atual. Repetir o equívoco é solicitar mais do mesmo.

    Os abusos da “lava jato”, denunciados desde seu início pela advocacia, vêm sendo expostos e remediados pelo Poder Judiciário, com a anulação de atos e reconhecimento de abusos. O momento histórico exige mais.

    A promoção de uma Justiça de transição em relação ao período de exceção, com a reparação das vítimas atingidas por arbitrariedades de natureza autoritária, é passo imprescindível a restauração do Estado de Direito.

    A solução demanda medidas efetivas que não só reconheçam os direitos violados, mas tragam a esse ato consequências materiais. O fim não é apenas tentar compensar as vítimas por danos irreparáveis, mas passar à sociedade uma mensagem: nunca mais.

    Os danos causados pela lava jato estão mais do que claros. Foram reconhecidos pelo ministro Dias Toffoli ao afirmar que a “lava jato” foi um “conluio a inviabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa”, com “desvios de função e danos graves a pessoas naturais e jurídicas (…) de maneira coordenada com finalidade política” (Rcl. 43.007/DF).

    Fernando Augusto Fernandes

    O aviso também foi dado por decisão Justiça Federal de São Paulo que determinou reparação ao advogado Roberto Teixeira, alvo de abusos da operação “lava jato”.

    O acórdão sinaliza o caminho da Justiça de transição, reconhecendo o direito à reparação por danos causados pelo Estado (TRF-3, ApCiv. 00080341620164036100-SP)

    Quando magistrados e procuradores atuam com abuso do direito (artigo 187 do CC), impondo ilegalmente restrições a direitos fundamentais, obrigando terceiros a suportar danos excessivos, desproporcionais e anormais (artigo 21, Lei 13.665/18), inadequadas ao bem que se pretende tutelar (artigo 2, Lei 9.784/99), é o Estado civilmente responsável a reparar o dano (artigo 37, § 6, da CF/88). Com direito de regresso, em caso de dolo ou culpa (artigo 43 do CC) e na hipótese de fraude, ao tratar-se de magistrado (artigo 143 do CPC).

    Há também dever de reparação por erro judicial, nas hipóteses do artigo 621 do Código de Processo Penal judicial (artigo 5, inciso LXXV, da CF/88), conforme nossa jurisprudência.

    Lembrar para não repetir

    A Organização das Nações Unidas promove há anos a campanha “Lembrar para não repetir”, estimulando países com histórico autoritário a falar sobre seu passado.

    Os alemães possuem um termo específico para designar este processo de “reconciliação com o passado” (Vergangenheitsbewältigung). Este mês de março convida-nos à prática e aprendizado institucional.

    A falta de uma justiça de transição e a anistia àqueles que atentaram contra a democracia nos trouxe à crise atual.

    Caso repitamos o erro histórico, absurdos e arbítrios como da operação se repetirão no futuro. Relembrar, responsabilizar e reparar, portanto, não é uma volta ao passado. Mas garantia de um futuro democrático.

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