quarta-feira, 3 julho, 2024
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    Supremo Tribunal Federal equivoca-se com despenalização interpretada como descriminalização



    Controvérsias Jurídicas

    Portar entorpecente para uso próprio não é mais um delito e o transporte de até 40 gramas de maconha já não configura crime, pois até essa quantia, presume-se que seja para consumo pessoal. A atitude permanece proibida, passando a ser considerada uma infração administrativa, com as penalidades previstas no artigo 28, I e III, da Lei de Drogas, a saber: advertência sobre os efeitos das drogas e obrigação de participar de cursos educativos.

    Spacca

    Por outro lado, a punição do inciso II desse mencionado artigo 28, que consistia na realização de serviços comunitários, foi revogada. As penalidades serão impostas pelo Juizado Especial Criminal e não mais possuirão natureza penal. Assim deliberou o plenário do STF, por pequena maioria (6 a 5), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, com repercussão geral (Tema 506), tendo como relator com voto vencedor o ministro Gilmar Mendes.

    Os ministros André Mendonça, Nunes Marques, Cristiano Zanin, Dias Toffoli e Luiz Fux discordaram desse entendimento. A decisão foi fundamentada na liberdade individual e no direito à privacidade (CF, artigo 5º, X). Ficou estabelecido que, como a Lei de Drogas não havia estipulado a quantidade necessária para caracterizar tráfico de drogas, essa avaliação, na prática, acabava sendo realizada de acordo com as particularidades de cada caso específico, intensificando, no cotidiano, uma discriminação seletiva contra jovens pobres, pardos e negros.

    Assim, chegou-se à conclusão de que seria aconselhável estabelecer um parâmetro quantitativo para presumir o consumo pessoal, admitindo, contudo, prova em contrário. Resumo da decisão: (a) não configura mais delito quem adquirir, guardar, ter em depósito, transportar consigo ou transportar qualquer droga para uso pessoal; (b) as penalidades perdem sua natureza penal e tornam-se estritamente administrativas; (c) mantêm-se as sanções de advertência sobre os efeitos da droga (art. 28, I) e participação em programas educativos; (d) a punição de realização de serviços comunitários foi cancelada; (d) as sanções que foram mantidas, embora não penais, serão aplicadas por juiz criminal; (d) a quantidade de até 40 (quarenta) gramas de maconha presume-se destinada ao consumo pessoal, admitindo prova em contrário.

    Agora é preciso analisar as possíveis consequências dessa decisão. A atual Lei de Drogas, Lei nº 11.343/2006, encerrou a confusão gerada pela anterior Lei nº 10.409/2002, que revogava todo capítulo relacionado a crimes e penas por ser considerada inconstitucional. Com isso, a parte penal da antiga Lei n. 6.368/76 permaneceu em vigor. Assim, criou-se um monstro jurídico, regido na parte processual pela Lei nº 10.409/2002 e, na penal, pela legislação de 1976. Esta, em seu artigo 16, definia o crime de posse de droga para uso pessoal da seguinte forma:

    Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que gera dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e o pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa.

    Como se nota, em vez de usar o termo droga, essa lei erroneamente empregava a expressão substância entorpecente, que é apenas uma das diversas espécies de entorpecentes: (a) psicolépticas ou entorpecentes: que causam adormecimento ou torpor, como os anestésicos, barbitúricos e tranquilizantes; (b) psicoanalépticas ou estimulantes: que provocam excitação, como a cocaína e as anfetaminas; (c) psicodislépticas ou alucinógenas: que geram alucinações, como a heroína, o ácido lisérgico (LSD) e a maconha, que pode levar a alterações cognitivas que variam de estados depressivos a psicoses e esquizofrenia, dependendo da quantidade consumida, grau de dependência ou vulnerabilidade do usuário.

    Todo esseantiquada legislação foi anulada pela moderna e bem elaborada Lei nº 11.343/2006, a qual, em seu artigo 28 começou a dispor: “Artigo 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penalidades: I) advertência sobre os efeitos das drogas; II) prestação de serviços à comunidade; III) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo“.

    Na época, houve o mesmo debate que agora divide o STF. Uma primeira corrente afirmava que houve descriminalização, passando a detenção para consumo pessoal a constituir uma infração sui generis, no âmbito do Direito Administrativo Sancionador. [1]

    Baseava-se no artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-lei nº 3.914/41): “Art. 1º. Considera-se crime a infração penal à qual a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com pena de multa.” De acordo com essa interpretação, não há crime se não for cominada no tipo legal, ao menos alternativamente, pena privativa de liberdade.

    Nossa interpretação [2]

    Não houve descriminalização porque: (a) o artigo 28 encontra-se no Capítulo III da Lei de Drogas, que trata “Dos Crimes e das Penalidades”, em clara sinalização legislativa de que não é infração administrativa; (b) a Lei de Introdução ao Código Penal é um emaranhado legislativo do Estado Novo, em descompasso com a atual ordem jurídica [3]; (c) a CF previu, em seu artigo 5º, XLVI, que as infrações penais podem ser apenadas com prestação social alternativa e suspensão de direitos; (d) não se pode confundir despenalização, que é a eliminação da pena privativa de liberdade, com descriminalização, que é a revogação do crime; (e) as penas previstas no artigo 28, I, II e III, da Lei n. 11.343/2006 são aplicadas pelo Juizado Especial Criminal, cuja competência legal se limita ao julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo; (f) se fossem penalidades administrativas, não poderiam ser aplicadas pelo Jecrim, por falta de competência legal [4]; (g) a criminalização do porte para consumo pessoal não viola o princípio da alteridade, na medida em que não se pune o uso, mas o perigo social representado pela potencial circulação da droga; (h) a lei não pune o usuário por fazer mal à própria saúde, mas seu comportamento gerador de risco à sociedade, logo, não há que se falar em violação de privacidade ou liberdade individual, mas tutela do interesse coletivo; (i) estratégias de combate ao tráfico de drogas refogem ao âmbito da competência constitucional do STF, sendo atribuição típica dos Poderes Executivo e Legislativo, pois comportam decisões discricionárias de natureza administrativa e política. Era exatamente esse o anterior entendimento do próprio STF:

    O art. 1º da LICP – que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que a lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da Lei n. 11.343/ 2006 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). Questão de Ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/2006 não implicou abolitio criminis [5].”

    A decisão do STF, ao confundir despenalização com descriminalização, vai gerar novamente insegurança jurídica.A Legislação de nº 11.343 vigora desde 8 de outubro de 2006, sem declaração prévia de inconstitucionalidade. A escolha política do legislador em tipificar o perigo de circulação da substância deve ser respeitada, pois, além de não contrariar a Constituição Federal, está em conformidade com o que determina o seu artigo 5º, cabeça, que requer proteção eficaz ao bem jurídico. A norma seguiu o princípio da razoabilidade, ao não imputar pena privativa de liberdade e atendeu aos requisitos do princípio da alteridade, não criminalizando o consumo, apenas a posse para uso futuro. Além disso, estabeleceu clara distinção em relação ao comércio ilegal, punido em patamar mais elevado de repreensão (reclusão de 05 a 15 anos e multa considerável). Trata-se de uma legislação equilibrada e detalhada.

    Paulo Pinto/Agência Brasil

    A exagerada incursão principiológica tem levado o Poder Judiciário a anular leis, fundamentando-se em princípios amplos, priorizando concepções individuais dos julgadores sobre a intenção objetiva da legislação. Os princípios devem agir de forma excepcional, visto que são ordens vagas de otimização, carentes de conteúdo definitivo e com mudanças conceituais em seus comandos [6].

    Se levado às últimas consequências, um princípio poderia até mesmo invalidar a humilhante derrota sofrida pela seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014, por violação, em tese, ao princípio da razoabilidade. Apesar do caráter jocoso da analogia ser evidente, ela serve para ilustrar o alcance ilimitado dos princípios quando utilizados para anular regras objetivas.

    Situações de falta de punição

    Ademais, a nova postura do Supremo Tribunal Federal deve acarretar situações de falta de punição. Ao considerarmos que um cigarro de maconha pode pesar 0,3 gramas, imaginemos a situação de alguém parado na entrada de uma escola ou casa noturna com 120 cigarros de maconha. Sua condição será presumivelmente a de usuário e não poderá ser preso em flagrante por tráfico de entorpecentes. Ainda que relativa, essa é a presunção que passa a ser adotada no momento da abordagem policial. Concretamente, o art. 28, § 2º, da Legislação de Drogas prevê outros critérios de avaliação, como já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça [7], porém a quantidade de até 40 gramas de maconha passa a ser o critério principal, com o risco de a autoridade incorrer na Lei de Abuso de Autoridade, caso se aventure a discordar [8].

    Se o indivíduo estiver na posse de até 40 gramas de maconha, haverá agora uma presunção de natureza objetiva que relega a segundo plano os demais critérios de avaliação. A decisão do Supremo Tribunal Federal, embora embasada em preocupações justas acerca de abordagens preconceituosas contra grupos socialmente mais vulneráveis, não levou em conta que tais equívocos são pontuais e podem ser corrigidos na audiência de custódia.

    Por outro lado, o novo critério de presunção levará as organizações criminosas a atualizarem suas táticas de distribuição, espalhando a maconha em pequenas porções por traficante e recrutando distribuidores ainda sem registro criminal, que atuarão disfarçados de falsos usuários. Ao serem abordados pela polícia, se limitarão a afirmar que estão dentro da margem de presunção de atipicidade e qualquer medida de restrição será vista como fruto de suposição arbitrária e discriminatória, configurando abuso de autoridade. É evidente que tal risco já existia anteriormente, porém agora há o respaldo judicial da descriminalização pelo critério quantitativo, que é objetivo. Por esta razão, seria aconselhável ao Supremo Tribunal Federal reavaliar esta decisão.

    _______________________________________

    [1] GOMES, Luiz Flávio. BIANCHII, Alice. SANCHES DA CUNHA, Rogério. TERRA DE OLIVERIA. William. NOVA LEI DE DROGAS COMENTADA. SP: Revista dos Tribunais, 2006, p. 108-113.

    [2] CAPEZ, Fernando. LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL. São Paulo: Editora Saraiva, 19ª edição, p. 615/616, 2024.

    [3] CAPEZ, Fernando. LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL. São Paulo: Editora Saraiva, 19ª edição, p. 615/616, 2024.

    [4] Lei número 9.099/95, artigo 60: “O Juizado Especial Criminal, provisto por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, considerando as normas de conexão e continência”. Artigo 61: Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a legislação estabelecer pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa” (grifamos).

    [5] Supremo Tribunal Federal, RE-QO 430.105/RJ, 1ª Turma, relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 13 de fevereiro de 2007.

    [6] CAPEZ, Rodrigo. CÁRCERE E MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2017, p. 50/51.

    [7] Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, Agravo no Agravo em Recurso Especial 1740201/AM, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgamento em 17 de novembro de 2020

    [8] Lei número 13.869/2019, artigo 27: “Solicitar abertura ou iniciar procedimento investigativo de infração penal ou administrativa, contra alguém, sem qualquer indício da prática de crime, de transgressão funcional ou de infração administrativa”.

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