sexta-feira, 5 julho, 2024
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    Sustentabilidade ambiental das organizações financeiras


    Causou grande tumulto no meio jurídico, especialmente entre a comunidade dos advogados que atuam na área ambiental, a notícia de uma sentença, de dezembro de 2023, pela qual a Justiça Federal em São Paulo julgou improcedente pedido de entidade financeira para desfazer sanção administrativa a si aplicada, pelo Ibama, devido a ter financiado atividades irregulares no bioma amazônico.

    O empréstimo concedido pela referida organização financeira teria sido utilizado para desenvolvimento de atividades rurais ilegais, sobre área embargada, o que acarretaria responsabilidade desta organização financeira por omissão, visto que teria deixado de verificar a veracidade de “afirmação de que não existem embargos vigentes de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel”, conforme estipulado no Manual de Crédito Rural 2-1, conforme redação estabelecida pela Resolução Bacen nº 3.545/2008.

    Portanto, a ação para desfazer a sanção administrativa foi julgada improcedente, mantido válido e eficaz o auto de infração aplicado.

    O ponto a ser examinado, aqui, refere-se ao dever de cautela.

    A norma, já revogada, diga-se de passagem, invocada pelo juízo da causa, porque na época válida, estabelece condições para a concessão de crédito, pelas organizações financeiras, a agentes econômicos que pretendam realizar atividades nos municípios situados no bioma amazônico.

    O texto da norma invocada apresenta a seguinte redação (os destaques são nossos) para o ponto que trata da condição referente à ausência de restrição ao desenvolvimento de atividades econômicas devido a embargo pendente sobre a área objeto do financiamento:

    “a) apresentação, pelos interessados, de:

    I – Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR vigente; e

    II – afirmação de que não existem embargos vigentes de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel; e

    III – licença, certificado, certidão ou documento equivalente comprovando regularidade ambiental, vigente, do imóvel onde será implantado o projeto a ser financiado, emitido pelo órgão estadual responsável; ou

    IV – na ausência dos documentos citados no inciso anterior, atestado de recebimento da documentação exigida para regularização ambiental do imóvel, emitido pelo órgão estadual responsável, ressaltado que, nos Estados onde não for disponibilizado em meio eletrônico, o atestado deverá ter validade de 12 (doze) meses;

    b) verificação, pela entidade financeira, da veracidade e da vigência dos documentos mencionados na alínea anterior, por meio de conferência eletrônica junto ao órgão emissor, dispensando-se a verificação pela entidade financeira quando se tratar de atestado não disponibilizado em meio eletrônico;”

    O texto normativo acima transcrito determina os limites do dever de cautela ao qual deve se submeter a entidade financeira que concede o crédito. A restrição tem um objetivo claro, de contribuir para o controle e combate à prática de atividades econômicas irregulares no bioma amazônico.

    A legislação e a jurisprudência sobre o tema da responsabilidade das organizações financeiras em questões ambientais
    A Lei nº 6.938/81, pela qual foi criada a Política Nacional do Meio Ambiente, estabelece a responsabilidade em termos administrativos através do artigo 14.

    A jurisprudência, em decisão do Superior Tribunal de Justiça, reconhece que a responsabilidade administrativa, em matéria ambiental, tem caráter subjetivo, sendo necessário verificar o elemento culpa para punir um agente específico.

    Mesmo na esfera cível, em que a responsabilidade em questões ambientais se impõe pela modalidade objetiva, ou seja, sem necessidade de comprovação de culpa, bastando estabelecer um nexo de causalidade entre determinada conduta eum prejuízo, os precedentes judiciais delimitam os limites à culpabilidade de instituições bancárias, reconhecendo a responsabilidade somente quando devidamente comprovado que a instituição financeira, intencionalmente – nos termos da decisão que verificou a responsabilidade, quando a instituição financeira, apesar de ter plena “consciência do dano”, continuou liberando parcelas de um empréstimo ao poluidor – e intencionalmente, concedeu recursos facilitadores da atividade poluidora.

    Neste sentido, apenas seria cabível imputar responsabilidade à instituição financeira se houvesse uma violação do dever de precaução, um uso indevido diante de uma norma restringindo a liberdade de contratar. E tal raciocínio se aplicará, includa a variável culpa, para a responsabilidade administrativa: só poderá ser punida a falha ao dever de precaução se deliberada. O abuso precisa ser evidente e intencional.

    O dispositivo normativo que se depreende do texto legal que, no caso em questão, teria sido infringido
    Para que se analise o fato que, em princípio, constituirá o fato gerador da responsabilidade em matéria ambiental, é necessário definir, sucintamente, o que significa o descumprimento do dever de precaução.

    – dever de precaução e violação
    Os dispositivos normativos estabelecem — e precisam ser claros, pois o uso de termos jurídicos imprecisos impede que o texto normativo alcance seu objetivo, que é, pela definição do termo jurídico, estabelecer seus contornos e limites — o direito, a exigência a que se refere e os limites desse direito ou exigência.

    O descumprimento objetivo, por meio de uma determinada conduta ou omissão, de um limite imposto ao exercício de um direito ou de uma exigência, caracterizará a violação, que acarreta direitos e deveres secundários àquele que deixou de cumprir.

    Todo direito, exigência, obrigação que não é cumprida, configura uma violação. A violação, como já discutimos, é uma forma de desrespeito à regra estabelecida para harmonizar a convivência social e regular as relações econômicas, um “negar” a ordem em nome de algum interesse.

    O dicionário Aurélio traz definição em que abuso significa “falta de justiça, ordem; injustiça, desordem, excesso”.

    O desrespeito, enfatizamos novamente, deve ser específico, resultante de um descumprimento objetivo de um comando estabelecido no texto normativo de maneira clara e direta; não haverá desrespeito a menos que um determinado texto normativo estabeleça um direito ou exigência, delimitando-o de forma clara, sem o qual a configuração da violação não será clara ou será mesmo impossível.

    O dever de precaução, portanto, sempre decorrerá de um comando normativo específico, que ganhará vida quando um fato se enquadrar nele.

    – o comando normativo do caso em análise, e a configuração de violação aos seus termos
    O comando normativo invocado como fundamento para a decisão, no caso em análise, está redigido da seguinte forma (os destaques são nossos):

    “a) apresentação, pelos interessados, de:

    I – Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR válido; e

    II – declaração de que não há embargos em vigor por uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente na propriedade; e

    III – autorização, certificado, certidão ou documento equivalente comprobatório de regularidade ambiental, válido, da área onde será implementado o projeto a ser financiado, emitido pelo órgão estadual competente; ou

    IV – na ausência dos documentos mencionados no inciso anterior, atestado de recebimento da documentação exigida para regularização ambiental da área, emitido pelo órgão estadual competente, exceto nos Estados em que não estiver disponível em formato eletrônico, o atestado deve ter validade de 12 (doze) meses;”

    b) verificação, pelo agente financeiro, da veracidade e da vigência dos documentos mencionados na alínea anterior,

    por meio eletrônico junto ao órgão emissor, dispensando a verificação pelo agente financeiro quando se tratar de atestado não disponibilizado em meio eletrônico;

    O comando vigente à época, ensejador da obrigação, é o de que o interessado em acessar recursos financeiros junto à instituição bancária apresente, destacamos, afirmação de que não existem embargos vigentes de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel.

    A afirmação é documento de ordem unilateral, que vincula quem a realiza aos termos em que posta. O limite de veracidade e validade de uma afirmação é a palavra de quem a expressa, e ao destinatário da afirmação, salvo expressa imposição pelo texto normativo, não é dado ou se impõe desacreditar ou investigar a veracidade do quanto afirmado.

    Note-se, a este respeito, que à instituição bancária não se impõe verificar a veracidade e validade da afirmação, mormente porquanto o exige o texto normativo em exame, como obrigação imposta, apenas no tocante a documentos outros listados como requisito ao acesso ao crédito, especificamente aqueles postos no inciso III do dispositivo em questão.

    Eis portanto que, posta a estrutura do texto normativo, e os comandos que dele derivam, e dada a máxima de que a interpretação do texto normativo há de ser sistemática, de seu todo, e jamais de um único inciso ou comando — afinal, o direito não se interpreta em tiras — isoladamente, verifica-se que à instituição bancária à qual o interessado pleiteia a concessão de crédito, no cumprimento ao dever de cautela, não caberia verificar a veracidade da afirmação de inexistência de embargo sobre o imóvel em que pretenda o interessado exercer atividades econômicas.

    O abuso, aqui, consistiria na dispensa, pela instituição bancária, do recebimento da referida afirmação como requisito à concessão do crédito. O fato de o conteúdo da afirmação não condizer com a realidade é fato de responsabilidade exclusiva do declarante.

    Não há, aqui, ofensa ao dever de cautela, daí derivando não haver abuso, descabendo, portanto, impor-se responsabilidade à instituição bancária pela falta de verificação da veracidade da afirmação, emitida pelo interessado, que ao depois revelou-se inverídica.

    A instituição bancária, destinatária da afirmação, de boa-fé, e na forma do quanto estabelecido no texto normativo, deu-se — e devia mesmo dar-se — por satisfeita com o recebimento da afirmação. A verificação de seus termos, de sua efetiva identidade com a realidade, constituiria excesso ao dever de cautela, que seria bem-vindo, mas cuja falta não pode sujeitá-la a responsabilidade por falta ao dever de cautela.

    Conclusão
    Neste breve resumo de estudo realizado acerca do tema trazemos a ponderação de que o apontamento de responsabilidade a uma determinada pessoa, física ou jurídica, sob a premissa de desatendimento a um dever de cautela, demanda exame aprofundado da natureza, extensão e limites da obrigação apontada como desatendida, para que não se dê ao dever de cautela extensão que exceda o limite do comando normativo de que deriva.

    No caso tirado como exemplo, o exame sistemático do texto normativo de que lançou mão para a imputação de responsabilidade demonstra o equívoco derivado de emprestar-se excessivo lastro ao dever de cautela que, no caso concreto, limitava-se ao formal preenchimento de requisito cuja validade é de responsabilidade exclusiva daquele que o declara cumprido, não cabendo, na forma do texto normativo, e da obrigação dele derivada, estender-se o dever de cautela para uma obrigação de verificação eu o texto normativo não traz.

    O exemplo aqui lançado cuida de texto normativo já revogado, de sorte que não lança qualquer ponderação para casos futuros, limitando-se à ponderação de que, para o período em que vigente tal texto normativo, a obrigação de dever de cautela, para as instituições bancárias, quanto ao ponto específico, limitava-se a uma postura passiva de recebimento de uma afirmação.

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