sexta-feira, 5 julho, 2024
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    Por qual motivo a manifestação do ser humano precisa ser resguardada pela Legislação? (parte 1)


    A manifestação do ser humano, o acontecimento da linguagem, o resultado vivo da nossa interação no mundo, por quais motivos isso precisa ser protegido pela legislação?

    A resposta parece simples. Contudo, não é.

    Não é simples, pois, da mesma maneira que ocorre com a cláusula geral da liberdade de expressão – a exemplo dos incisos IV e IX do artigo 5º da Constituição brasileira de 1988, que afirmam ser livres a manifestação do pensamento, sendo proibido o anonimato, e a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença —, os argumentos que sustentam essa liberdade evocam ideias tão fluídas e abstratas que, mesmo que seu enunciado geral não gere controvérsias, para atribuir a elas algum sentido prático é inevitável adentrar um campo de discussões e disputas políticas acirradas.

    É intuitivo presumir, em abstrato, que a manifestação deve ser livre. No entanto, a liberdade só se justifica concretamente quando os motivos para proteger a manifestação se mostram mais fortes e convincentes do que os motivos para restringi-la. Os conflitos sobre liberdade de expressão lidam sempre com um choque entre argumentações — a justificação para garantir a preservação da manifestação contra a justificação para sua regulação.

    Alguns autores afirmam que a liberdade tem precedência diante de outros direitos e interesses tutelados e perseguidos pelo Estado, e teorias longas e sofisticadas foram desenvolvidas a partir dessa ideia — a ideia de que ser livre é um objetivo prioritário, pois a liberdade corresponde ao estado humano mais natural —, mas, mesmo para perspectivas como essas, quando restrições à liberdade são postas em discussão, é necessário fundamentar a prioridade, explicar a primazia, expor e defender os motivos pelos quais a liberdade é mais valiosa do que sua limitação.

    Isso acontece, na verdade, porque todo direito é interpretado frente à realidade na qual é aplicado, e o que genuinamente importa é o porquê da liberdade — o porquê de, em alguns casos, a manifestação ser livre e o porquê de, em outros casos, não ser. Direitos constitucionais complexos, dentre eles a liberdade de expressão, são na verdade direitos cuja proteção se justifica segundo razões múltiplas e sobrepostas. Estudá-las é essencial, já que é com base nelas que o intérprete define seu posicionamento em casos difíceis e controversos [1].

    Liberdade de expressão possibilita identificação da verdade

    Embora existam muitos motivos para tutelar a manifestação do ser humano, cinco teorias se destacam. Em resumo, a manifestação deve ser livre, pois isso possibilita a identificação da verdade e estimula a produção e a propagação do conhecimento; viabiliza o autogoverno e impede a tirania; viabiliza a autoafirmação da identidade e garante a preservação de uma cultura de independência; assegura a legitimidade das escolhas coletivas; e catalisa o pluralismo social, político, artístico, cultural e étnico.

    Em uma série de cinco artigos, proponho mapear, destrinchar e, por consequência, sistematizar esses argumentos.

    Meu objetivo é oferecer às pessoas que estudam o Direito Constitucional e trabalham com ele, bem como à sociedade — que o vivencia diariamente —, um cabedal organizado das principais razões pelas quais se entende que a manifestação do ser humano deve ser protegida pela legislação, não apenas para habilitar essas pessoas a assumirem posições consistentes nas discussões jurídicas e políticas mais recentes, mas também, e especialmente, para deixar claro que nenhuma liberdade é um valor fechado em si mesmo.

    Como todo propósito perseguido e tutelado pela legislação, a liberdade de expressão é um interesse que depende de justificação.

    Teoria de Mill

    Começamos com a defesa mais difundida e influente da liberdade de expressão no mundo moderno:a filosofia de John Stuart Mill.

    As ideias dos Estados Unidos sobre a autonomia, que impactaram, de várias maneiras, as conversas sobre o tema em diferentes locais do Ocidente, têm como base essa doutrina, e há pelo menos cem anos que a Suprema Corte dos Estados Unidos e os acadêmicos que pesquisam o assunto recorrem a ela em seus debates, seja para apoiar a proteção da autonomia, seja para argumentar sobre a importância de limitá-la [2].

    De acordo com Mill, em um contexto em que a comunicação se movimenta livremente, os cidadãos se tornam mais capazes de identificar a veracidade, repudiar enganos e gerar e disseminar o saber. A comunicação deve ser liberada não porque seja valiosa para seu autor.

    Na realidade, a comunicação livre é um privilégio de toda a sociedade, das gerações presentes e futuras: a propagação de uma opinião ou de um pensamento beneficia menos aquele que o emite e mais aqueles que o recebem, especialmente aqueles que expressam pontos de vista ou pensamentos diferentes.

    Assegurar a autonomia de expressão implica garantir que as expressões humanas sejam não apenas divulgadas, mas principalmente recebidas, assimiladas, compreendidas, acumuladas, comparadas e contrastadas, proporcionando um extenso e enriquecedor aprendizado.

    Garantir a circulação da mais ampla variedade possível de expressões é fundamental para garantir que as compreensões e as convicções da sociedade sejam revisadas ou reforçadas.

    Tanto em um caso quanto no outro, a autonomia da expressão é concedida não em benefício de quem fala, mas em favor de todos. Bloquear a divulgação de um pensamento viola o interesse coletivo, pois, como disse Mill, “se a opinião está correta, somos privados da oportunidade de trocar o erro pela veracidade; e se ela está errada, perdemos algo igualmente valioso: a chance de produzir, a partir do confronto com o erro, uma percepção mais clara e uma impressão mais vívida da veracidade” [3].

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    Para Mill, os indivíduos são imperfeitos e, por isso, perpetuam preconceitos, embustes e falsidades, mesmo que de modo não intencional, ao solidificar visões e convicções, privando-as da renovação pelo debate coletivo. Impedir que um determinado ponto de vista, mesmo que amplamente aceito, seja questionado e debatido significa prejudicar o progresso intelectual da comunidade: como mencionamos, as pessoas são ou privadas da oportunidade de rever sua crença e enxergar a verdade, ou impedidas da chance de, ao perceberem a correção de sua posição, reforçar e, como resultado, aprimorar suas concepções. O silêncio impõe à inteligência coletiva uma amarga estagnação [4].

    É exatamente devido à falibilidade humana que é necessário estar aberto a um contínuo processo de revisão e aprendizado. Conforme Mill, embora a verdade absoluta não exista, é plenamente viável que a coletividade construa verdades adequadas à sua realidade.

    Entretanto, isso só se torna possível quando as pessoas se veem reciprocamente como interlocutores livres e iguais, quando o ambiente no qual interagem, debatendo as melhores soluções para os problemas da comunidade, está verdadeiramente aberto à divulgação, à propagação e à contestação de ideias e preferências [5].

    Esse fundamento é a base principal para a interpretação que a Suprema Corte dos Estados Unidos faz, desde pelo menos os anos 1960, do texto da Primeira Emenda à Constituição de 1787: “O Congresso não poderá produzir leis (…) restrigindo a liberdade de expressão ou de imprensa”.

    A experiência norte-americana ao aplicar a filosofia de John Stuart Mill revela uma grande preocupação com a justificação filosófica da necessidade de a expressãoser o mais independente possível. Mesmo diante de normas em que o controle da expressão é bem mais amplo, como nos estados da América Latina, a influência da jurisprudência norte-americana sobre autonomia de expressão — e, de forma indireta, do pensamento de Mill — é incontestável [6].

    O episódio Abrams vs. Estados Unidos

    Em seu voto divergente no caso Abrams vs. Estados Unidos, decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1919, o magistrado Oliver Wendell Holmes redigiu que a Constituição norte-americana demanda que os indivíduos acreditem, mais do que em seus próprios argumentos e convicções, “que o melhor resultado desejado é melhor conquistado pelo livre intercâmbio de ideias, que o maior teste da verdade é a capacidade de um pensamento de ser aceito na competição do mercado, e que a verdade é o único meio pelo qual os anseios dos cidadãos podem ser realizados com segurança” [7].

    Conforme Holmes, à luz da 1ª Emenda, para que a veracidade prevaleça sobre a mentira, e para que a comunidade, revisando seus entendimentos, desenvolva e propague novos saberes, contribuindo com o propósito coletivo de evolução intelectual, é essencial que discursos os mais variados possam circular e movimentar-se livremente, prevalecendo, a cada etapa, a concepção mais aceita no “mercado de ideias”. Esse é, com pequenas variações, a formulação consolidada na teoria de Mill [8].

    New York Times Co. vs. Sullivan

    Quarenta anos mais tarde, as colocações de Holmes foram invocadas pela Suprema Corte como base para uma postura menos tolerante com o controle da autonomia de expressão. Dentre muitos, um caso de grande relevância é New York Times Co. vs. Sullivan.

    Em 1960, o periódico The New York Times publicou um manifesto de apoiadores de Martin Luther King Jr. criticando a polícia da cidade de Montgomery, no Alabama, devido à maneira violenta como seus agentes haviam tratado os manifestantes de um protesto pelos direitos civis.

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    O texto continha uma série de equívocos e inconsistências, como, por exemplo, o número de vezes que King havia sido preso, a música que os ativistas haviam entoado, e o fato de estudantes terem participado das manifestações.

    Com base nisso, L. B. Sullivan, na época comissário de polícia de Montgomery, acionou judicialmente o The New York Times, alegando que o jornal havia difamado ele e seus colegas policiais. As instâncias inferiores deram razão a Sullivan, condenando o Times a pagar-lhe uma soma elevada a título de compensação.

    A Suprema Corte, por sua vez, reverteu a condenação, afirmando, em uma decisão unânime, que, quando a falsidade divulgada diz respeito a um fato da vida ou da atuação de um agente público, a difamação só estará caracterizada se ficar comprovado que o emissor veiculou a notícia com “má fé efetiva”, ou seja, ou agiu ciente de que estava mentindo, ou disseminou a informação sem levar em consideração a forte possibilidade de ela ser falsa [9].

    Em Make no Law, Anthony Lewis sugere que, em seu voto no caso Sullivan, o magistrado William Brennan não somente redefiniu as possibilidades e os limites dos processos por calúnia e difamação, mas verdadeiramente reestruturou as premissas da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos.

    Conforme Lewis, a liberdade de expressão garantida na Primeira Emenda foi majoritariamente entendida, ao longo de mais de um século, como uma cláusula que vetava a chamada “restrição prévia”, ou seja, a censura antecipada de determinado conteúdo. Nesse sentido, o autor de uma certa manifestação poderiaser responsabilizado civil ou criminalmente caso suas palavras se demonstrem falsas, perigosas ou ofensivas.

    Nos anos 1960 e 1970, como mencionado, a Suprema Corte começou a adotar a posição anteriormente defendida por Holmes e Brandeis, no sentido de proibir somente as expressões que resultassem em um “perigo claro e iminente”, mas, pelo menos inicialmente, dentre as exceções a essa norma (apontadas pela própria corte em decisões da mesma época), permanecia a possibilidade de responsabilizar o autor de um discurso pelos crimes de calúnia ou difamação.

    No caso de Sullivan, a Suprema Corte realiza uma mudança de direção [10]. Conforme Dworkin (que se considerava um admirador do livro de Lewis), “o caso Sullivan entrou para a história não apenas pela revisão do direito constitucional relacionado à calúnia e à difamação, mas também porque a linguagem e as imagens de Brennan passaram a definir todo o paradigma do direito previsto na Primeira Emenda” [11].

    Paradoxo

    Por trás do argumento que norteia a decisão em Sullivan, está, mais uma vez, a teoria de John Stuart Mill. De acordo com o raciocínio adotado pela corte, a transgressão ao direito está na má-fé do emissor, e não na informação falsa em si.

    Assim, mesmo que seja provado que determinada afirmação é falsa, ela ainda deve circular livremente no mercado aberto de ideias, pois é a própria abertura do debate público — a condição de a arena de discussão estar desimpedida, e de nela circularem pensamentos, visões e pontos de vista diversos — que permite às pessoas separar a mentira e reconhecer a verdade.

    Curiosamente, é a exigência da busca pela verdade que garante a disseminação e a propagação da mentira — uma ideia que, embora radical em sua orientação liberal, influenciou significativamente o debate sobre a liberdade de expressão tanto dentro quanto fora dos Estados Unidos.

     

     

    [1] DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: a leitura moral da Constituição Americana. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 196.

    [2] KALVEN JR., Harry. Uma tradição digna: liberdade de expressão na América. Nova York: Harper & Row, 1988, p. 76. Ver também LEWIS, Anthony. Make no law: o caso Sullivan e a Primeira Emenda. Nova York: Vintage, 1992, p. 46.

    [3] MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Londres: Penguin Classics, 2017, p. 66, tradução nossa. No original: “Se a opinião é correta, eles são privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errada, perdem, o que é praticamente um benefício igualmente grandioso, a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzida pelo seu confronto com o erro”.

    [4] Ibid., pp. 82-90.

    [5] Ibid., pp. 125-126.

    [6] SCHAUER, Frederick. Liberdade de expressão: um questionamento filosófico. Cambridge: Cambridge University Press, 1982, p. 35.

    [7] Estados Unidos da América. Suprema Corte. Decisão em Abrams v. United States, 250 U. S. 616. Washington/DC, 1919, § 58.

    [8] LEWIS, Anthony. Liberdade para o pensamento que odiamos: uma biografia da Primeira Emenda. Nova York: Basic Books, 2009, p. 48.

    [9] Cf. Estados Unidos da América. Suprema Corte. Decisão em New York Times Co. v. Sullivan, 376 U. S. 254. Washington/DC, 1964. Posteriormente, no caso Curtis Publishing Co. v. Butts, a Suprema Corte expandiu a tese da “má-fé efetiva” para os casos de calúnia e difamação envolvendo não apenas figuras públicas, mas qualquer pessoa pública. Consultar Estados Unidos da América. Suprema Corte. Decisão em Curtis Publishing Co. v. Butts, 388 U. S. 130. Washington/DC, 1967.

    [10] LEWIS, Anthony. Op. cit., 1992, pp. 14 e 95.

    [11] DWORKIN, Ronald. Op. cit., 1996, p. 201.

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