terça-feira, 2 julho, 2024
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    Combinação de informações entre agência de inteligência financeira e agentes de persecução penal


    Ponto de Vista

    No ano de 2022, o STF (Supremo Tribunal Federal) já havia afirmado que, em um Estado democrático de Direito, “o serviço de inteligência do Estado (…) é necessário, mas não pode ser desempenhado fora de estritos limites constitucionais e legais, sob pena de comprometer a democracia em sua instância mais central, que é a de garantia dos direitos fundamentais” (ADPF 722).

    Marcello Casal Jr./Agência Brasil

    Há mais de duas décadas, o Coaf, órgão de inteligência financeira, mantém um volumoso banco de dados de transações financeiras de cidadãos brasileiros e estrangeiros. Segundo informações do próprio órgão, em 2024, já eram mais de 50 milhões de comunicações de transações envolvendo número ainda maior de pessoas, físicas e jurídicas.

    É válido, portanto, o receio de que essa enorme quantidade de dados sigilosos, privados, e muitas vezes sensíveis, possa ser instrumento de abuso se compartilhado com outros órgãos do Estado dotados de poderes de persecução: Polícia e Ministério Público.

    Por esse motivo, o legislador foi cauteloso ao conferir esse amplo poder informacional ao Coaf sem conceder, simultaneamente, poderes de investigação, restringindo sua atuação à produção de relatórios quando constatar, de forma espontânea, que há indícios concretos da prática de crime de lavagem de dinheiro.

    A suspeita permite a remessa dos relatórios aos órgãos com poder de persecução que possuem extensos poderes de intervenção em direitos fundamentais (investigação, indiciamento, pedido de prisão ou de quebra de sigilos etc.), mas que não possuem acesso direto ao banco de dados do Coaf.

    O objetivo do legislador com essa distinção é garantir que a vida privada, a intimidade, a honra e os dados pessoais estejam salvaguardados contra possíveis abusos de autoridades estatais, estabelecendo um equilíbrio: quem possui mais conhecimento, detém menos poder; quem possui mais poder, menos conhecimento. [1]

    Separação informacional de poderes

    Essa estratégia é conhecida como separação informacional de poderes. Ela é um instrumento fundamental de contenção do poder (também informacional) do Estado, um recurso do cidadão contra intervenções estatais arbitrárias.

    Por um lado porque, como nossa história muito recente recorda (ADPF 722), não é raro que agentes públicos, motivados por interesses pessoais, persigam seus críticos e opositores, sejam eles empresários, parlamentares, ministras/os de Estado, legisladores/as, governantes, jornalistas, membros de movimentos sociais, docentes, magistrados, promotores, delegados de polícia etc.

    Por outro, não é difícil perceber o quanto a existência da simples possibilidade de perseguição é fatal para a democracia: ela inibe a livre expressão do pensamento de forma intensa, ubíqua, disseminada e oculta.

    Sem o respeito à separação informacional de Poderes, o uso dos dados por órgãos estatais para perseguir cidadãos se torna tarefa simples. Por exemplo, em um contexto como o nosso, no qual os delitos tributários se baseiam em uma legislação complexa, confusa e em constante mudança, e no qual o delito de lavagem é interpretado com uma condescendência prejudicial, bastaria fornecer aos órgãos de persecução o acesso a um volumoso banco de dados de transações financeiras como o do Coaf e, voilà, estariam abertas as portas para investigações contra quaisquer pessoas que possuam alguma renda por suspeita de sonegação.

    Legalidade dos relatórios

    É por isso que havia grande expectativa, em 2 de abril último, quando a 1ª Turma do STF analisou a Rcl 61.944-AgR, na qual se questionava a legalidade da produção de relatórios de inteligência financeira pelo Coaf a pedido de delegados e promotores de justiça.sem embasamento legal e sem autorização judicial.

    Essa previsão se justificava porque a Emenda Constitucional que reconheceu expressamente o direito essencial à preservação de informações pessoais (EC 115/2022) é posterior ao posicionamento da Corte no RE 1.055.941 (de 2019), que foi contido na contenção da separação informacional, e porque, desde essa decisão, o STF exerceu em diversas ocasiões um papel crucial na proteção dos direitos essenciais afetados pela vigilância estatal, como, por exemplo, no renomado caso dos arquivos (ADPF 722) [2].

    Contrariando as expectativas e divergindo, em certa medida, da compreensão externada pelo tribunal em 2022, a Turma autorizou o acesso dos órgãos de persecução penal às informações do Coaf mediante solicitação, [3] o que acarreta, na prática, como uma espécie de fusão informacional entre agência de inteligência e agências de persecução penal: basta requerer ao Coaf os dados por ele armazenados contra alguém para obtê-los.

    Alegou-se diretriz do Conselho de Segurança da ONU e que a restrição do compartilhamento direto limitaria as ações das autoridades de persecução penal. No entanto, esses argumentos não parecem corretos. Resoluções do Conselho de Segurança da ONU que “sugerem” medidas para coibir o financiamento das organizações terroristas Isil (também conhecido como Daesh) e Al Qaeda e dos indivíduos, grupos, empresas ou entidades a elas relacionadas, não são normas imperativas de Direito Internacional.

    O decreto que adota essas sugestões ao direito interno não modifica sua essência: permanecem sendo apenas sugestões, como aquelas do Gafi (ou seja, recomendações). Se medidas mais severas contra terroristas certamente devem ser objeto de especial atenção do legislador, não há que equivaler suspeitos de crimes tributários a suspeitos de atos terroristas.

    Além disso, os limites menos rigorosos para a coleta de dados pessoais pelo Coaf só se justificam porque, em princípio, as informações coletadas não estarão plenamente disponíveis para órgãos autorizados a intervir nos direitos essenciais, ou seja, da polícia e do ministério público. Caso fosse outra a intenção do legislador, deveria ter revogado a necessidade de autorização judicial para a quebra de sigilo bancário e determinado que as pessoas obrigadas encaminhassem as comunicações de operações em espécie e suspeitas diretamente para a polícia ou para o ministério público.

    A opção cautelosa e consciente do legislador brasileiro não é a primeira e nem será a última restrição imposta a atividades de investigação. Trata-se do custo de viver em um Estado Democrático de Direito, contrário que é à vigilância estatal.

    Não se pode menosprezar os riscos decorrentes desse entendimento da 1ª Turma. Conforme lembrou a ministra Cármen Lúcia na sessão de julgamento, “nós vivemos períodos muito difíceis na história brasileira”, e a intromissão abusiva na vida financeira de certos magistrados ainda está “muito recente na memória do brasileiro”. [4]

    Apesar de a Corte já ter rejeitado e com firmeza a prática da conhecida pescaria de provas (fishing expedition), abre agora as portas para que agentes públicos, bem ou mal intencionados, ao invés de irem em busca do suspeito de prática de um crime, possam recorrer ao Coaf em busca de um crime para um suspeito. Sem rodeios, pescaria.

    ___________________________

    [1] Para detalhes e mais referências, cf. Orlandino Gleizer/Lucas Montenegro/Eduardo Viana, O direito de proteção de dados no processo penal e na segurança pública, São Paulo: Marcial Pons, 2021, pp. 31 ss., especialmente, 56 ss.; e Heloisa Estellita, O RE 1.055.941: um pretextopara delimitar certas restrições à transmissão, distribuição, comunicação, transferência e disseminação de informações pessoais pelo COAF, publicação de Legislação Pública, volume 18, número 100, 2021, páginas 606-636.

    [2] Ver também, os seguintes exemplos: IBGE (ADIs 6.387, 6388, 6389 e 6390), da ABIN (ADI 6529), e do SERPRO, CNHs, ABIN e Cadastro-Base do Cidadão (ADPF 695 e ADI 6649).

    [3] Não apenas de membros do Ministério Público, mas também de autoridades policiais, como evidenciado na recente posição da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no RHC 147.707 julgado em 7.5.2024 (versão impressa do acórdão ainda não disponível), adotado em conformidade com a decisão tomada pelo STF no caso em discussão. Primeiras análises da imprensa sobre a decisão em: Órgão policial pode contatar Coaf diretamente para obter evidências, revisa STJ, aqui no Conjur.

    [4] STF Rcl 61.944-AgR, julgado em 02/04/2024 (versão impressa do acórdão ainda não disponível).

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